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Thursday, January 05, 2023

praça Tiradentes, 11:30 a.m.

CENAS DO CENTRO DO RIO

PRAÇA TIRADENTES, 11:30 A.M.


Um garotinho passa de mãos dadas com seu pai e vibra com as bandeiras dos países que disputaram a Copa do Qatar. Os dois ficam espiando os pavilhões e o menino dispara "Ih, Arábia Saudita!". Então logo me lembro do Fredão, meu amigo que era o único sujeito a ter um time de botão da Arábia Saudita, lindo, verde - atenção: não existe politização para colecionadores de botões, onde só o que importa é a beleza. 

"É, bonita, filho."

"O que tá escrito ali, pai?"

[Silêncio por alguns segundos, atenciosamente espero a resposta

"Não sei, filho. É na língua deles, que é muito diferente."

"E a espada?"

"Acho que é por causa das lutas que eles travaram."

[Quase ri. Crianças são o máximo. Eu queria ter sido criança para sempre, mas agora é muito tarde. Bom, ninguém coloca uma espada - ou adaga, é isso? - numa bandeira para falar de amor. 

Metros adiante, a padaria mais misteriosa do Rio de Janeiro tem a porta quase fechada. Quero dizer, uma parte aberta e outra com cadeado. A informação pode ter ter ficado tão boa, mas é sincera. 


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Uma garota bonita, de olhar extremamente triste, procurando algo inexistente no horizonte da Lavradio. Carrega uma mochila e uma garrafa d'água. Bonita, negra, nem baixa nem alta, com grande e belo cabelo desgrenhado, vestindo uma blusa do Fluminense e mirando a direção da Lapa, ao longe. 

Será que ela vai a jogos? Será que acompanha o Flu. A tristeza de seu olhar é natural ou fruto de seu momento. 

Então se vira, pega a garrafa, toma um gole e daí caminha para a mirada. Para onde irá ao certo? 

O Fluminense nos reúne por um segundo. Dois transeuntes num segundo, um desconhece o outro e a vida segue. 


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Quase na esquina da Praça Tiradentes há um ponto de ônibus e, bem perto, um poste cheio de anúncios das travestis empolga outro pedestre. Por sinal, ele veste a camisa de outro time de futebol, com um grande número 11.

Ele chega a ficar paralisado com as ofertas. Os olhos quase se arregalam. O rosto não tem nenhuma outra reação, que não permite saber se era espanto, preconceito ou tesão - quem sabe, tudo junto? 

As travestis dominam os postes, o que sobrou dos orelhões, os cercados e muitas paredes. A luta pela sobrevivência exige estratégias de marketing, que vão das sofisticações na internet até os bons e velhos panfletos. 


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Uma moça vira pra outra e diz alto: "Meu Deus do céu, esse cheiro de maconha tá forte pra c@r@lho."

A interlocutora: "Esse pessoal não tem vergonha de fumar na rua não? Isso é coisa que se faça em casa, discretamente."

[Pausa


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Bem em frente, seis pessoas em situação de rua, mais seus três ou quatro cães de estimação, vivem a morte em vida debaixo de uma marquise. Antes ficavam na porta do Teatro Carlos Gomes, mas as novas obras do local exigiram a mudança. 

Fome, miséria, vida sem rumo e um cigarro de maconha que lhes dê um mínimo prazer numa vida tão humilhante - que ninguém deveria ter, mas o ser humano médio é estúpido demais para pensar em empatia e solidariedade.

O sexteto fica em frente ao que já foi um bar, um depósito de bebidas e antes, muito antes, há uns 80 anos, funcionou uma camisaria que atendia os boêmios da região - muitos artistas de renome -, com horário de atendimento até às 22 horas e anúncios grandes na capa do Jornal dos Sports - imagine o sucesso. 

O que sobrou foi a desilusão. 


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O porteiro é gente boa demais. Chegou ao prédio há alguns meses. Não tem jeito: ele não decora meu nome nem para onde vou. 

Sexto andar, Sebo X. Eu sou o Paulo. 

O elevador está reformado, o prédio está vazio. Janeiro tem férias, desemprego e pouco dinheiro para os clientes.

Abro a loja, ligo o CD player e boto Paulo Lepetit pra tocar, "Peças", lançado pela Elo Music há tempos com uma turma da pesada: Hugo Hori, Adriano Magoo, Webster Santos - que vi ao vivo no Teatro do BNDES - e outros. 

Vamos à espera dos clientes. 


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Um poema ou algo semelhante perdido à mesa: 

"... vamos, vamos com vontade até o fim mesmo que seja nosso último dia, porque tudo deve ser feito com amor e dedicação até o final. A vida não é para os atos feitos pela metade, preguiçosos, sem garra! É preciso seguir navegando, descobrindo e se tiver chegado a hora do navio afundar, que ele seja elegante ao mergulhar para a morte nas águas que, de alguma forma, são capazes de nos fazer desaparecer de tão pequenos e insignificantes que somos, todos somos. Somos todos insignificantes diante da grandeza do universo."

Niemeyer disse algo assim em seu documentário. Faz todo sentido. Morto, ele ainda é um vivíssimo farol de lucidez. 

@pauloandel

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