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Friday, August 17, 2018

cão

Eu sou o cão de olhar perdido em noite fria debaixo de uma marquise da Cruz Vermelha, enquanto meu dono desmaia de sofrimento, cansaço e indiferença. Não consigo latir nem brincar, apenas olhar para o nada que chamam de horizonte, enquanto também sou desprezado pelos transeuntes, que me consideram o símbolo de uma derrota. Eu olho para o nada e vejo outros cães noutras calçadas, muitos feito eu e outros tão bem tratados que sequer usam coleira. Eu sou um cão da noite triste e ninguém passa a mão na minha cabeça ou me oferece um nugget. Estou aos pés do sofrimento do meu dono e do meu mesmo, sem latir e pensar, irracional que posso ser. Metros acima, as luzes indicam que as pessoas estão comemorando gols, xingando políticos e rolando em berço esplêndido de cólera. Eu sou um cão sem dono, sem latido, sem futuro e fico tranquilamente apreciando todas as horas do fim, como se coubesse num poema de Torquato Neto. Cão, cachorro, bicho de estimação sem estima, o que me resta é a solidariedade do meu dono desmaiado em cima das frias e cortantes pedras portuguesas. Eu só queria um bife, uma coberta, um dia de vida em busca deste sentimento tão nobre - e vedado aos caninos - chamado de paz. Eu, tão cão da noite e do desalento, posso ser mais humano do que os humanos que me veem com nojo. Eu, cão triste, amigo sincero do homem que passa apressado para fugir da minha miséria. Ele, tão ser gregário, tão hipócrita e eu, contando mais um dia de vida ou de pena cumprida, ou ainda do caminho inevitável para a morte, outro verso de Gil.

@pauloandel

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