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Tuesday, April 17, 2012

HELIO, FRED, ALEX E OUTRAS HISTÓRIAS





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Estes dias de abril definitivamente não são fáceis.  Dia 15, aniversário do meu irmão. Sumiu por vontade própria, fingiu que eu não existia, abriu a porta e disse adeus, nunca mais vamos nos ver. Dia 17 de abril, aniversário do Helio, meu pai, que foi embora em 2008 naquele fatídico jogo do Fluminense contra o São Paulo – meia hora antes, para ser mais exato.

Nunca teve festa em minha casa, meu pai era iconoclasta. Não sei ao certo se por ter sido alijado da família quando meus avós faleceram – os outros adultos honestos e respeitáveis estavam de olho em duas joalherias do meu avô, daí não hesitaram em colocar meu pai e meu tio num colégio interno – ah, sim, e entregar minha tia Reizel para que outra família a criasse. O fato é que meu pai seguiu revoltado para todo o sempre, e reconheço sua razão. Falávamos pouco em casa, bem pouco. Depois que ele perdeu patrimônio, ficou ainda mais irascível. Eu era criança, depois jovem, não podia fazer nada. Quando consegui alguma coisa, ele já estava doente, parou de trabalhar, talvez tenhamos vividos os últimos treze anos juntos com algum conforto e debaixo de relativa paz.

Era uma pessoa de muita inteligência pelo que eu percebia, mas as mazelas da vida o torturaram. Isso fez minha mãe querida sofrer muito tempo e trouxe-me claras dificuldades. Nosso último ano de parceria foi bem razoável: com a perda da minha mãe, eu achei que os remanescentes iam ficar mais unidos. Com meu pai, isso aconteceu. Com meu irmão, não.

2

Mesmo impedido de andar por problemas de saúde, meu pai resolveu assumir coisas de casa: lavar, cozinhar, arrumar, tudo do jeito dele. Era admirável ver seu esforço em ser útil, e fazer o coletivo, num mundo cada vez mais egoísta e estúpido em que vivemos. Não tínhamos luxo algum, mas gostei de comprar um pacote de jogos de televisão: ele via todos.

Vou a todas as partidas do Fluminense. Escrevo sobre isso. O que me fez não ir ao estádio em 21 de maio de 2008 não tem explicação lógica. Resolvi ver em casa, com os dois.

Fui ao mercado, comprei ingredientes para cachorro-quente, voltei para casa, preparei tudo. Cerca de oito da noite. Meu pai tinha pego comigo uns cem reais emprestados. Veio à sala, me devolveu, levei o cachorro-quente para ele, comeu satisfeito. Minutos depois, meu irmão gritou, fui acudir, Helio tinha falecido em sua cama, sem dizer nada, via infarto fulminante -  a mesma cama onde comecei a engatinhar. Eu tinha perdido minha mãe há pouco mais de um ano quase da mesma maneira e na mesma cama. Foi duro.

3

Horas depois, alguns amigos chegaram lá em casa. O primeiro deles, Fred. Desceu comigo para fazer as providências na agência funerária, talvez a pior coisa que uma pessoa tenha que fazer quando se trata da vida de outro. Outro dia mesmo brincávamos de carrinho no velho apartamento 1346 da Figueiredo Magalhães, agora era hora de lidar com a morte, o fim. Fred me amparou, mas estava muito fragilizado – ele sentia muito mais os impactos da perda do que eu, até por ter religiosidade. Eu sinto muito os impactos, mas nem sempre deixo transparecer.

4

Os meses passaram até o dia em que meu irmão resolveu ir embora de casa sem dar notícias, sem falar o endereço, sem qualquer razão aparente, como se me cortasse de sua vida da mesma maneira que fazemos ao tirar alguma nervura do bife a ser frito. Sete de novembro de 2008. Fred foi um grande amparo. Mesmo eu não tendo a menor condição de raciocinar muito naqueles tempos, por motivos óbvios, alguma lucidez me bateu no sentido de enchê-lo para que finalmente comprasse um apartamento, mesmo que fora de sua Copacabana querida. Era um amor de coração: Fred não era um homem da praia ou dos bares, do carnaval e raramente saía de casa, mas amava Copacabana. Com muito custo, ele aceitou a ideia: financiar um imóvel na Tijuca era menos da metade do que no bairro de amor. Mudou-se para perto da Saens Peña. Convidou-me para o Natal, mas eu perdi qualquer condição de confraternizar nestas datas.

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Dois meses, três meses de arrumação, e nos vimos num sábado. Conversamos bastante. Fred sentia uma dor forte no ombro, voltei a amolá-lo para que fosse a um médico: podia ser algo do coração. Tinha acabado de fazer um check-up, mas nunca se sabe. Águas de março. Ainda fizemos um lanche no Bob’s, ele e Leo conversaram, os dois fanáticos por aviões.

Chegou ao Copa D’or na segunda-feira.

Nunca mais saiu.

Nossa última conversa não teve adeus. Ele apenas apertou minha mão e chorou. Ali, tive certeza de que tudo estava irremediavelmente perdido. Calei-me e aguentei a nova cruz. Quando voltei para a nova visita, ele tinha perdido os sentidos para sempre.

6

Ri várias vezes do Alex. Achava engraçado seu jeitão de pegador mesmo que as companhias femininas não fossem lá da melhor estética. Gostava de saber que era um rapaz esforçado, que tinha lutado muito para concluir um curso superior. Era engraçado em tudo: um professor de educação física que não sabia jogar bola. Todos ríamos, ele sempre tinha alguma história divertida, ao lado de outros geniais sujeitos que, se o tempo me permitir, vão servir de inspiração para um livro. Eram tempos de bares, do Tocão, do falecido – e querido – Calamares da Lopes Quintas. Foi lá que o velho Xuru de guerra riu a valer quando o Santo André venceu o Flamengo.

Enquanto tive alguma saúde, há nove ou oito anos atrás, joguei futebol de salão com os amigos na quadra do Carioca do Jardim Botânico. Ainda fiz uma ou outra jogada bonita, mas nada que chegasse à unha do que eu fazia quando era jogador de praia e sonhava pisar no Maracanã. Isso foi outro dia e já tem mais de trinta anos. Certa vez, alugamos o society do Clube Condomínio, sempre simpático. E fui para o ataque. A dois minutos do fim do jogo, fiz dois gols e vencemos, 11 x 7, não me lembro. O último foi bonito: recebi pela meia-direita e chutei no alto. Alex era o goleiro. O último gol de minha vida.

7

Em 16 de abril de 2009, estávamos eu, Marco, Ricardinho e Gustavo de Caux na cafeteria do Copa D’or. Faltou Jorge Pinto. E o querido Luiz Magno. Pela primeira vez em nossas vidas, nossa reunião não tratava de ir para o Gordon, jogar mau-mau ou ouvir algum LP novo da coleção do Fred, mas sim tentar entender o momento da morte do amigo, tão injusta e precipitada. Quando Luiz faleceu, estávamos sem contato: eu tinha mudado de Copacabana, Marco morava em Niterói. Soube ao chegar em casa: minha mãe me contou em lágrimas naquele promissor 1994.

8

Em 17 de abril de 2009 era o sexagésimo-oitavo aniversário de meu pai, Helio, enterrado meses antes - minha mãe também - no mesmo São João Batista onde Fred foi velado. Apareceram jovens e velhos, pessoas que há muito não se viam, bons e maus, eternas mulheres lindas. Fred sempre foi um aglutinador, mas eu nunca pensei na hipótese de ter que carregar seu caixão – o que acabei fazendo. Havia pensado a mesma coisa em relação ao Xuru e a meus pais, ingenuamente.

Quando encerrou a cerimônia, ainda paramos um tempo perto da capela. Senti medo de nunca mais vê-los e não estou certo do que virá, mesmo passados tantos dias. Tomei um taxi, disse o que pode ter sido adeus, voltei para o trabalho, na mesma sala refrigerada, alva, solitária e querida de sempre.

Sentei em minha cadeira oficial e, uns trinta segundos depois, o telefone tocou. Zé na linha. Sempre quando liga, é de se esperar algo engraçado ou inusitado. Desta vez, não foi. Contou-me que o corpo de Alex tinha sido localizado por outro amigo nosso, que trabalha na polícia.

Quando desliguei o telefone, nunca me senti tão frágil e ciente de minha completa inutilidade diante do tamanho do mundo, das coisas e da vida. Não sou nada. Posso cair aqui neste instante e em poucas horas, serei massa podre. Nada além disso. Não somos quase nada, exceto nossos bons sentimentos e gestos, nossos pequenos momentos divertidos. Alguém diz que é dono da própria vida? Um pateta.

9

Hoje é dia 17 de abril de 2012. Meu irmão nunca mais falou comigo e só espero que esteja bem, longe do crime, da doença. Helio nunca mais reclamou do Fluminense. Fred nunca mais reclamou das mulheres e do dinheiro. Alex nunca mais falou suas adoráveis besteiras que tiravam um pouco da minha tristeza, a mesma que sinto agora em perceber que, se estão vivos em minha memória, um dia todos desapareceremos e nada fará sentido. Mais do que tudo, sinto saudades. Viver é, de certa forma, sentir dor.

Paulo-Roberto Andel

2 comments:

Roger de Sena said...

Bravo, Nicanaton! :)
Cada vez mais à espera desse livro de memórias de Copa!
Braxxxxx!
8-)

Tatiany Melo said...

Eu li este post ontem e, com os olhos cheios dágua fiquei pensando: A vida também é morte.
Morte de um sentimento, de sonhos e esperanças, da vida a cada vez que alguém se vai... Por quanto tempo mais suportanto essa dor, ausência e pranto? Um dia, um mês, um ano, tantos anos, talvez pra sempre...

Concordo com vc, somos gordos. Sim, e daí? Com certeza, somos melhores que a mulher alho... :)