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Wednesday, May 26, 2010

A VIOLÊNCIA (É?) TÃO FASCINANTE...


Uma grande canção de outra geração versava sobre o fato da violência ser tão fascinante. O que poderia parecer non sense virou lugar comum – assim não fosse, como justificar o carnaval de maldades que vejo ao ligar uma televisão, ouço ao ligar um rádio ou leio ao folhear qualquer jornal, desses de papel, com sabor de antigamente? Um fascínio em prol da loucura ou da desordem que hoje vivemos, que jamais deve ser confundida com ausência de ditadura, pois. O que sei é que penso na canção e em seu grande compositor, falecido muito antes da hora por conta dessa mesma violência fascinante que habita a terra, ritualizada em mídias, decantada a quatro cantos. A violência das síndromes e outras doenças. A violência que floresce no olhar dos que têm dignidade, quando se deparam com jovens remexendo lixo em busca de comida. A violência que espanta qualquer pessoa normal quando, num rompante, se sabe que um avô estuprou a neta. A violência de um sistema tido como liberal mas que, na verdade, é o principal elemento opressor da sociedade, colocando muitas vezes a grande maioria da população sob total penúria, impossibilidade de ascensão social e a real liberdade de expressão – tudo longe, mas muito longe de qualquer Cuba; não me venham com falácias mofadas. A violência fascinante do poeta era outra, claro; se vivo, hoje, ele diria outras coisas, escreveria outros poemas e talvez parecesse mais aturdido ainda diante de tanta cegueira, tanta insensatez, tanto egoísmo e indiferença para com o outro – tudo longe, mas muito longe de qualquer necessidade de crença religiosa: todas me fazem um indigente da fé. Nossas ruas celebram a violência, mas finge-se não fazer isso. A indiferença não é uma violência? Cinqüenta centavos de esmola por quatro horas de pedidos não é uma violência? A remoção das favelas, o choque de ordem, os hospitais superlotados, as colossais filas de desempregados à busca de uma única vaga, não são tudo a constituição da violência? A distorção das informações, a não-democratização dos acessos, a opressão do capital, a prática de monoculturas também não formam um abominável conjunto de violência? Alguém há de dizer que tudo isso é uma sonora bobagem diante dos assassinos cruéis, traficantes vis, estupradores e outros marginais, mas não seriam praticamente todos frutos da violência onde vivemos, em vez de agentes causadores? Do covarde assassino de hoje, quanto restou do menino maltrapilho e sem perspectivas de ontem? Não, a violência não é fascinante à vista, embora isso em nada diminua a monumental obra do grande poeta, que poderá ser entendida com mais clareza; ela, na verdade, é chocante, é assustadora, é temida e, principalmente, quando a vemos, estamos diante de nossas próprias falhas. Dentro de instantes, minha televisão ligada oferecerá um novo telejornal; é fácil prever que o hediondo estará presente de alguma forma, em maior ou menor escala. Em nome deste mesmo hediondo, pessoas falarão que, se vivêssemos numa ditadura, teríamos ordem e progresso; que seria tudo belo e perfeito e melhor. Nada poderia soar mais patife e leviano; mais cego, surdo, mas não mudo, dotado apenas de palavras rudes e de rasa essência no pensamento. E chega a hora de dar razão ao poeta: momentos como este é que desvelam o fascínio pela violência, entranhado na estranha contradição de que o agente violento de hoje nada mais é do que a vítima, direta ou indiretamente, da violência de ontem. E também porque aquele que parece não-violento, mas não ajuda a combater a violência em sua gênese é, involuntariamente, um agente propagador dela. Duro é rever as palavras do poeta e saber que, vinte e cinco anos depois, não fomos capazes de mudar uma vírgula do que já estava previsto nos versos. A violência escrota, ignara e pútrida é, ao mesmo tempo, para alguns, a violência tão fascinante; para outros, a verdadeira ordem vigente a ser mantida.


Inspirado em "Baader-Meinhof Blues", de Dado Villa-Lobos, Renato Russo e Marcelo Bonfá


Paulo-Roberto Andel, 26/05/2010

2 comments:

Nelson Borges said...

Nessa hora é que a gente percebe como alguns problemas sociais, que são objetos de teses e estudos complexos, têm soluções verdadeiramente simples.

Como dizia o profeta das ruas:

Gentileza gera gentileza.

bçs

Lau Milesi said...

Sua lucidez me comove e me orgulha. Concordo com o Nelson, quanto ao caminho para tantos problemas ditos "insolúveis".

Beijos, über amigo.