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Thursday, November 09, 2006

Choro ambulante

Nestes dias de horário de verão, a cronologia artificial dá outros tons às coisas de rua, visões e panoramas diferentes. Seis da tarde não é bem seis, sim cinco. Mais ou menos por aí.
Era eu margeando uma lateral da Praça da República, que também é o Campo de Santa Ana, sem muita pressa de ir à academia de ciências. Sempre gostei de ver, desde criança, os bichos em saudável harmonia. Marreco, pato, cotia, gato, todo mundo junto como deveria ser sempre em nichos humanos - e que sabemos não ser. Parecem todos amigos em nossa visão que insiste em tornar tudo muito humano. Amizade e carinho não seriam bem os termos; agora, que há uma razoável respeitabilidade entre as turmas da natureza, facto é.
Da esquina de Vinte de Abril com Frei Caneca até a rua dos Inválidos, o que não falta é a bicharada satisfeita caminhando pelos verdes de Santana. Melhor quando chega o fim da reta: tem um colégio de infância dentro do parque. Criançada correndo para ver as mães na saída, mais bichos, brinquedos, tudo atenuante para um exaustivo dia de trabalho. Ver alegria de crianças acalma, alivia e alumia.
Exatamente o que eu queria. Mais do que isso, precisava. Calma e alegria, mesmo rasantes.
Pouco depois da metade da lateral percorrida e muitos bichos legais à vista, a mesma que dá frente ao histórico quartel dos bombeiros, tendo já passado o portão que fica sempre lacrado, cheguei a um ponto de ônibus, cheio de gentes, todos na ânsia das conduções, da volta para casa, outros lugares. Um batalhão de estranhos, ninguém conversava. Há quem pegue os mesmos coletivos todos os dias, nos mesmos horários, uns reconhecendo a fisionomia dos outros, mas nada de prosa. Brasileiros. Silêncio de vozes, barulho de motores em arranque, tudo misturado à poeira emergente do chão. Foi quando certa imagem deixou-me estático por segundos.
Um rapaz, apoiado na lata de lixo, chorava compulsivamente. Num dos braços, tinha um carregamento de balas, donde supus ser um ambulante; noutro, base de apoio na caçapa de plástico laranja.
Aproximei-me e perguntei se poderia ajudar em algo. Não perguntaria jamais o porque de estar chorando, coisa que abomino com todas as forças. Quem chora tem motivo na maior parte das vezes, excetuando-se corruptos, bandidos e outros desclassificados. O moço tinha, mas não me disse; falou apenas que era nada não, mas continuava a chorar. Insisti. não deu certo. Manteve-se impassível, não era nada que eu devesse me preocupar, reiterou. Agradeceu, em prantos.
Ao redor, populares fitavam-me quase assustados, mas absolutamente calados, com certa nuvem de repreensão. Manifestações, somente na expressão dos olhos. Senti certa curiosidade: eu não deveria ter abordado um desconhecido que chorava porque ele estava com vestes humildes e eu, nem tanto? Não caberia apartar um transeunte por não saber de quem se tratava?
Segui em frente. Dez passos depois, olhei para trás. O rapaz já se recompusera, nem encostado na lata estava. Continuaria seu martírio de honestidade e venda das balas, imagino. Tudo quase normal, feito o silêncio dos alheios parados no ponto.
Dois marrecos, duas cotias, três lágrimas e um gato depois, chegou a escolinha. Uma patrulhinha de crianças, todas de camiseta laranja, cor igualzinha à daquela lata de lixo, indo e vindo para os braços dos responsáveis. Era fim de expediente. Fim de tarde. Fim de jornada.
Dobrei a esquina. Deixei o Campo de Santa Ana para trás. Hora de ciências.
Dia desses, tem mais patos pelo caminho, mais crianças, mais noites com cara de dia. Mais gente nas ruas, gente de verdade, gente de querer bem.

Menos lágrimas, assim espero.

Paulo Roberto Andel, 09/11/2006

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