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Friday, June 23, 2006

As coisas que nunca mudam

Você está parado e, de repente, as lembranças sobrevoam pela mente feito pequenos outdoors, incessantes e permanentes. Basta silêncio que a memória há de agir navegando pelos passados. Pode ser um grande jogo, um motivo de risadas, a mulher amada, o amigo que se foi antes da hora, quase tudo. Nosso tempo é hoje, agora, já. Contudo, o passado, mesmo que devidamente bem controlado, guardado hermética e seguramente em compartimentos devidos, surge quando menos se espera. Aquelas caixinhas que ficam devidamente preservadas, que nos fazem quase sempre bem quando ressurgem – e que nunca mudam.

Uma vez, lá ao longe, eu gostei muito de uma garota. Coisas dos tempos de faculdade, quando tudo é encantamento, beleza e poesia. Ana. Era mais nova do que eu, mas já trabalhava, carteira assinada, assistia às aulas arrumada pelo rigor da profissão, era um encantamento. Logo que a vi, chamou-me atenção o fato de que falava pouco em público, parecia inicialmente tímida e era mesmo; muito depois, soltou os cachorros, mas era outra história. Timidez de lado, eu gostei de que não fosse uma daquelas garotas fúteis, que já trabalhasse e tivesse responsabilidades, me inspirava confiança e nem sei bem por quê. Adorava seus cabelos tingidos com as luzes, seu sorriso. Lia, conhecia jazz, bossa nova e, assim como eu, eleitora de Brizola. Assistimos juntos ao dia que Luiz Carlos Prestes concedeu uma de suas últimas palestras, na universidade da Guanabara. Ficamos amigos. Tinha namorado, separou-se. Fomos a uma festa em Niterói num agosto distante; o aniversariante, famoso no circuito colegial por suas conquistas, não tardou em assediá-la, mas foi educadamente dispensado. Acabei beijando-a na beira da piscina, sob aplausos de um casal de bêbados, na mesma rua onde, muitos anos depois, outra menina que depois namorei tinha uma casa. Coisas da vida.

Eu, menino pobre, gostava de suas conversas, de sua alegria, do fato de que ela gostasse da minha companhia mesmo quando andávamos de ônibus, íamos ao Bob´s ou caminhávamos na praia iluminada de Copacabana. Tudo simplicidade, mas deliciosa. Trocávamos presentes, ríamos, divertíamos um ao outro. Adorava aquele beijo. E por que não namoramos? Confesso que não sei dizer. Deve ser da garotada, quando você ainda não tem segurança para certas coisas, talvez.

Aconteceu, um dia, de a moça loura de tinta ir embora, ainda não sei se para sempre. Casou, separou, Perdemos contato há uns dez anos, melhor assim. Em mente, tudo devidamente arquivado.

Um velho amigo inventou de me colocar de novo em sala de aula, não para dar aulas, sim como aluno. Eu, que já tinha minha carreira tida como encerrada, dei fim ao fim. Houve um outro agosto, outra faculdade, outra ansiedade de estréia e tudo novo de novo. Os companheiros de sala foram apresentando-se, conforme instruções de uma professora. Um menina novinha, bonitinha, então calada, sentada à direita, fitei rapidamente. Casada, pelo anel à vista, respeitosamente. Passaram-se uns dois ou três dias, até que alguém conversava no fundo da sala por perto, e assustei-me: num instante, veio-me à mente o cabelo tingido, a boca escarlate, os dentes alvos, os olhos pequenos, depois de tanto tempo. Evitei olhar para trás no instante: pensei que Ana estivesse na sala. A voz, sim, a voz ali estava, timbre fino, agudo, quase inconfundível, como se aparecesse ecoando por meio de uma fita cassete interminável. Esperei mais alguns momentos antes de virar para trás e ver quem era a ressurreição da voz de Ana, já que a mesma nunca estaria ali. Melhor, quase nunca.

Quando vi, surpreendeu-me constatar que a dona daquela voz, em beleza sorridente, era idem a do lado direito de outro dia. Olhei e gostei. É bom rever boas coisas na memória, mesmo que a origem da produção das lembranças seja completamente involuntária, pois.

Ana? Não. Alívio? Ah, Lívia.
(Andel Roberto Paulo, 06/23/06)

1 comment:

Laura Medeiros said...

Interessante seu texto.