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Saturday, September 14, 2024

Nós somos muitas coisas

I

Enquanto James, a banda inglesa, toca ao vivo suas boas canções no Rock in Rio  - completamente desconhecidas no Brasil -, eu fico de lado, olho para cima e quase cochilo - o que aconteceu durante todo este sábado. Quase fecho os olhos, quase um REM, então vejo com dificuldade uma rua de terra que me lembra a Avenida Ruy Barbosa. Nenhum carro ou ônibus à frente, nenhuma pessoa além de mim - e não sei se estava num carro ou a pé. São apenas alguns segundos, mas volto setenta ou oitenta anos no tempo - quando eu sequer existia. E sigo em frente, a caminho do desconhecido, da morte, do que quer que seja. James toca uma canção simpática e doce, muito distante do meu caminho no quase sonho de quinze ou vinte segundos, depois de um sábado parado e psicologicamente cansativo por vários motivos que não cabem aqui. 

II

Estamos duros, eu e meu bem. Duros e com depressão. Duros e distantes. Mas uma simples palavra no WhatsApp ajuda a aliviar tempos calorentos e sufocantes, cremos. Fique bem bem, meu bem. 

III

James é um barato. Só Piccoli conhece. Eu conhecia. Ele conhece todas as bandas e viu todos os shows. Então levanto, passo a prestar mais atenção à TV e parabenizo a curadoria do festival: Kingfish e James são o que há. 

IV

Victor me alertou para algo sério: a quantidade de gente que, mesmo sem a menor felicidade ou satisfação, precisa mostrar vitórias em suas redes sociais o tempo inteiro. O tempo inteiro. Falamos por horas sobre a opressão do mundo. 

Mas, pensando bem, quem vive em função de suas postagens nas redes sociais realmente vive? Ou finge que vive? 

V

Enquanto o fogo destrói o verde do Brasil, negacionistas acreditam que é desejo de Deus contra o comunismo. Um pensamento tão estúpido assim me dá vontade de descer e comprar uma cerveja, ou sair andando pelas ruas do meu bairro, sem destino. Eu não vou fazer isso. Eu quase não desço mais à noite. Eu quase não faço muita coisa, mas produzo arte que encanta alguns corações precisos. 

VI

Um copo de água bem gelada. Parece pouco, mas é um privilégio. O mundo é tão mesquinho que 1/6 da população mundial não tem água. A maioria nem liga. 

Refrescante. 

O copo me foi dado de presente pelo Eric quando fomos ao Maracanã. Tem o time do Fluzão. O Fluminense me cerca desde pequeno e, até alguns anos atrás, eu tinha certeza de que me acompanharia até a morte, já que eu tenho prazo de validade, ao contrário da bela instituição decretada por Nelson Rodrigues como vocacionada para a eternidade. Entretanto, se algumas picaretagens realmente prevalecerem, chego a ter medo do futuro - e aí me lembro de uma pichação que vi na Rua de Santana em 1993 ou 1994: "Para que ter medo se o futuro é a morte?"

Um copo de água bem gelada é uma benção. Eu me sinto muito infeliz porque muita gente perto da minha casa não pode beber um copo de água bem gelada. Eu me sinto muito infeliz todos os dias há muitos anos, o que tem piorado com o envelhecimento, mas nas horas vagas trabalho, faço pequenas artes e consigo alegrar meia dúzia de corações distantes. 

VII

O show do James é excelente. As pessoas estão felizes na plateia. É um ótimo show. Tem pop, rock, soul, sopros, percussão, violino. Música faz bem à alma. Ouço música desde criança e tive o privilégio de ouvir muitas coisas por intermédio de meus pais e do Fred. Estão todos mortos, mas penso neles diariamente. 

Se minha mão doer menos, escreverei um pouco mais tarde. Tenho dois livros para revisar também. Está um calor infernal. 

Ainda são nove da noite. Ainda é sábado. Posso ter ficado milionário e não sei. Talvez converse com as pessoas pelo WhatsApp. Talvez veja vídeos antigos de gols imortais no velho Maracanã que os picaretas destruíram. Um filme, talvez. Será que vai ter outro show bom? A conferir. 

Posso também virar de costas até fechar os olhos e quase sonhar com outra rua de antigamente. Ou pensar e pensar nas situações opressoras que tenho visto e vivido. Ou pensar em quem está longe para sempre. Posso desistir de tudo e procurar um calmante no YouTube: desenhos animados, especialmente os de Dick Vigarista e Penélope Charmosa mais Tião Gavião (Silvester Soluço), a Quadrilha de Morte e o Calhambeque Chugabum. 

Piccoli está em Laranjeiras. Marina está em Paciência. Victor está no Espírito Santo. Eric talvez esteja no Maranhão ou em outra capital a trabalho. A Anne viajou. A Ana está voltando ou já voltou da França. 

Cada um de um jeito no mundo.

Amanhã tem o Fluminense. O Fluminense. Mas vivamos o sábado, mesmo que entrincheirados em casa. 

VIII

Nós somos muitas coisas. 

Muito muitas coisas. 

Nós somos muita saudade. 

@p.r.andel

Wednesday, September 11, 2024

Cadê o Russo?

Hoje faz 19 anos que meu amigo Xuru morreu. Amigo mesmo, de verdade, não é conversinha pra boi dormir. Nunca me deixou na pista, nem eu a ele. Passei situações muito difíceis que jamais teria passado com ele vivo. 

Estivemos juntos por 21 anos em mil paradas, shows, bares, jogos, acampamentos, sinucas. Do campeonato de botão na casa do Luiz à roda punk no show do Jello Biafra, no Sindicato do Chope ou na Vila Mimosa, no Maracanã ou na Atlântica. 

Ele vivia na noite, eu não, mas conjugávamos bem as diferenças. Eu nunca gostei de sair à noite, nem de festas e loucuras, mas isso em nada atrapalhou nossa amizade. Pelo contrário. 

Chamava minha mãe de mãe. Ela o adorava. 

A última coisa que conversamos foi algo engraçado. Ele riu, fui embora. Nunca imaginei que aquele seria nosso último encontro. 

São tempos que o Russo faz muita falta. Dado o inevitável, fica o registro e a lembrança de um amigo, amigo mesmo, não daqueles que vê você se fud#$@&$do e faz cara de paisagem. Amigo é outra coisa.

Tuesday, September 10, 2024

Sobre a Seleção

Pensando bem, são muitos os motivos que explicam a queda de padrão do futebol brasileiro, e que naturalmente desaguam nos caminhos da Seleção. Muitos, muitos. Passam por dirigentes escroques e tenebrosas transações. E dão um livro grosso.

Contudo, o maior deles se repete inclusive noutros esportes, mas foi uma espécie de guilhotina cortando a excelência que, um dia, já povoou nossos gramados: o desprezo que o talento passou a receber em troca da atenção absoluta da parte físico-tática.

Em pouquíssimo tempo, o futebol no Brasil virou uma verdadeira febre. Quando o Brasil conquistou sua primeira grande colocação, o terceiro lugar na Copa de 1938, já tínhamos super craques como Domingos da Guia, Leônidas, Romeu Pelicciari e outros. Vinte anos depois, encantamos o mundo com Pelé e Garrincha. Dali, até 2006, com grandes colocações e quase sempre entre os cinco maiores do mundo, sempre tivemos grandes jogadores aos montes, a ponto de todo treinador da Seleção ser cobrado por ausências em sua lista de convocações. 

De onde vinham esses craques todos? De milhares e milhares de campinhos Brasil afora. Éramos uma verdadeira fábrica de craques em larga escala. Campinhos de terra, de areia batida, de pedra inclusive. Milhares e milhares de garotos enlouquecidos pelo jogo em vielas, favelas, vilas, praças, na praia, onde desse pra jogar. E dessa multidão tiramos, durante décadas, dezenas de craques que inundaram o mundo com dribles, passes e jogadas geniais, descobertos por olheiros dos clubes. Foi o que fez a fama do futebol brasileiro, não necessariamente aliado ao rigor tático, mesmo tendo treinadores competentes e especializados. 

Um golpe violento veio com a Copa de 1982. A derrota para a Itália levantou o argumento de que o "futebol arte" era inútil e deveria ser substituído pela força. A nova onda perversa dominou o Brasil, mas nosso petróleo da bola era tão farto que ainda aguentamos 25 anos com as reservas técnicas. E tome Romário, Geovani, Bebeto, Ricardo Gomes, Branco, Valdo, Raí, Leonardo, vários desses tetracampeões em 1994. E tome Amoroso, Edilson, Djalminha, Marcelinho, Kaká, Ronaldinho Gaúcho, Roger, Alex, Felipe...

A Lei Pelé deu alforria aos jogadores. Em compensação, espatifou os clubes, saqueados por dirigentes e empresários. Em paralelo, os garotos passaram a ser formados para o combate em vez da criação. Veio a era dos volantes brucutus. Enquanto isso, os campinhos foram desaparecendo, os garotos descalços foram desprezados, os empresários tomaram o lugar dos olheiros e a indústria exige porrada e força em vez de destreza. E nós, que antigamente tínhamos vinte ou trinta jogadores para escalar onze, chegamos à Era Neymar, a do time de um talento só que seria responsável por resolver tudo em campo. Como se viu, não deu certo. 

Há trinta e poucos anos, o sonho da Venezuela era marcar um gol no Brasil. Apesar da tradição, fazer seis gols no Paraguai e cinco no Uruguai não era difícil em 1979. O futebol mudou e muitos evoluíram em seus cenários. Nós, não: abrimos mão do melhor que tínhamos - nossa habilidade, capacidade de improvisação e perspicácia - para nós tornarmos inferiores às seleções que, um dia nós invejavam. Jogamos fora o principal combustível do nosso protagonista, o talento. Em compensação, temos uma indústria de marcadores. 

O problema maior não está numa derrota para o Paraguai, hoje normal. Até segunda ordem, a classificação para a Copa do Mundo ainda não parece ameaçada. O problema mais grave é que, se conseguirmos confirmar o passaporte para o Mundial, ele será o de coadjuvantes. O problema é verdade que, nesta derrota de quarta, o Brasil não tem um único desfalque expressivo - o time que está lá é o que temos e só. Quem ali realmente faz diferença do ponto de vista da qualidade técnica? 

Alguém espera por Neymar? Quem ainda acredita em sua volta ao futebol profissional de qualidade? 

O Brasil precisa refundar suas divisões de base e valorizar o talento, se não quiser se tornar de vez um centro inexpressivo do futebol. Precisamos voltar a fabricar craques em série e recuperar a identidade do nosso futebol. 

Peço a compreensão dos mais jovens, não se chateiem comigo. Não é saudosismo, mas apenas meu olhar de criança como torcedor. Se naquele tempo alguém falasse de um camisa 10 (ou 8) talentoso e importante, você poderia lembrar facilmente de Dicá, Ailton Lira, Renato, Zenon, Pita, Adílio, Cléber, Zico, Rivellino, Guina, Palhinha, Sócrates, Jorge Mendonça, Falcão, Mendonça, Enéas, Douglas e outros. 

Hoje falamos de quem? 

@p.r.andel

Saturday, September 07, 2024

Serious

Para mim, é a melhor e mais subestimada música já feita pelos ingleses do Duran Duran. Tem a coisa do fim dos anos 1980, que tinha sua mágica, algumas perdas e mudanças - remete imediatamente. A gente jogava muito botão na casa do Luizinho, que era um livro à parte - quem sabe? -, estava sempre no Bar Sniff's e também no nosso quartel general, que era a casa do Fred. Hoje, eu fico tentando entender como dava tempo para todos os lugares. E ainda tinha os jogos do Fluzão, corrida e futebol na praia, mais a faculdade de noite. 

Minhas aulas na UERJ começaram em 1988. Uma vez ou outra eu faltava ou não tinha aula mesmo. No Fred a gente começou a ter muitos encontros de tarde. Uma vez ou outra eu encontrava o Jorge e íamos para o treino do Flu - hoje é impossível. 

Eu frequentei o apartamento de 1978 a 1992. Nunca fiquei três dias sem ir lá. E o Fred era caseiro demais. Ele gostava muito. Depois a turma aumentou, vieram as garotas, as pequenas loucuras e tínhamos grandes momentos na nossa bolha particular. Jogando cartas, ouvindo LPs, vendo TV ou conversando sobre qualquer coisa. Filmes. Cotidiano. Aprendi muita coisa por lá. Não éramos intelectuais, mas antenados de alguma forma. 

Quando chegou a virada para os 1990, a faculdade começou a apertar, perdi as tardes livres com os estágios, o tempo encurtou. Fred foi trabalhar, o apartamento continuou um QG mas sem a presença diária. A gente não se deu conta, mas era o fim de uma era e o início de outra - como grupo, nunca mais nos reuniríamos, salvo por excepcionalidades, uma delas muito triste: a própria morte do Fred, há 15 anos, muito antes do razoável. Ele tinha 42 apenas. Eu contava com ele para ser meu amigo de conversa fiada na velhice que já se avizinha, mas não deu. Não tivemos últimas palavras: na cama do hospital, ele chorou com os abraços e sabia que era a despedida. Fui o último a cumprimentá-lo. Apertamos as mãos, nos olhamos e por uns dez segundos, atravessamos trinta anos. Ele faz muita falta. 

Perdemos os anos 1990. Em 2003, marcamos um encontro na Cobal. Todo mundo duvidava que Fred fosse, já que só saía de casa para trabalhar. Ele foi. Mesmo assim, mantivemos contatos esparsos. Tudo mudou no dia do velório da minha mãe, a quem ele chamava de tia. De janeiro de 2007 a março de 2009 voltamos a nos falar como nos velhos tempos, passei a encontrá-lo novamente em Copacabana. Ele me ajudou muito quando perdi minha família. Parecia tudo planejado: meses depois, ele é que se foi e levei mais um duro golpe. Desde então, fiz muitas coisas mas isso fica para depois. 

Agora, depois da meia noite, se fosse há quarenta anos estaríamos deixando o apartamento do velho bloco F, ou saindo da casa do Ricardinho (nosso QG alternativo, cuja vista da sala era um paraíso verde). Descer a Santa Clara, atravessar a Boca do Lobo, a praça do Bairro Peixoto, não fazer barulho na Anita Garibaldi para não atrapalhar o sono de Angela Rô-Rô, chegar a porta do prédio, abraço, tchau, amanhã começa tudo de novo. Não tínhamos um tostão nem grandes perspectivas, mas tínhamos grandes goles de felicidade diária. Devíamos estar todos juntos agora. Bem, não se pode vencer todas. Paciência. 

Duran Duran diz muitas coisas. 

@p.r.andel