Desço do trabalho às cinco da tarde. O faturamento de hoje foi bom. Se fosse todo dia, eu não precisava brigar com o suicídio. Vendo coisas muito boas e difíceis, mas todo mundo está pobre.
Falo com meus amigos porteiros e aviso que Jocemar ainda está na loja.
Na calçada, pulo duas tampas de esgoto vazando.
Metros depois, bem em frente ao Teatro Carlos Gomes, fechado, seis pessoas em situação de rua se encolhem de frio. Uma delas brinca com um cãozinho minúsculo.
Boa parte da quadra seguinte tem as lojas fechadas. Cumprimento o dono da Loteria Regufe, sou cliente há 30 anos.
Chego à esquina da Lavradio. O bar está fechado e, na porta, está praticamente desmaiada outra pessoa em situação de rua.
[o primeiro dia útil do mês é gelado, cinza e deserto no fim do expediente.
[dizem que a economia está melhorando, mas só se vê vazio, silêncio e olhares tristes. paro e penso no que será feito para mudar essa tragédia.
Todos os bares estão de folga. As calçadas abraçam o silêncio.
Passam dois garotos humildes, com seus bonés e mochilas, passos apressados a caminho da Central e um pacote de biscoitos rachado. Provavelmente estão almoçando ou jantando. As pessoas fingem não ver, mas no Centro do Rio o prato de comida mais popular é o pacote de biscoitos. Sempre há jovens e adultos indo e vindo com biscoitos para disfarçar a fome. Sempre há pessoas fingindo que não veem nada.
A rua do Senado, outrora via de tráfego intenso, está completamente vazia. Na esquina com a Gomes Freire não há um único carro no sinal. O Armazém tem seus clientes de sempre. Hoje, poucos. Está frio.
Quatrocentos e cinquenta metros.
Na delegacia, o inspetor com a barba bem grande conversa com um colega de trabalho. Alguma coisa sobre games.
Olho para o prédio da Isys e fico pensando em que apartamento ela mora. Acabou que somos amigos há anos, vizinhos há meses e não sei. Tudo bem, não faz diferença, era só curiosidade.
Dois garotinhos chutam bola na porta do prédio ocupado. Ah, a bola, o futebol, esse amor torto que salva e destrói vidas. Tudo que eu queria era voltar a ser um garoto e chutar uma bola, nem que fosse as de isopor em Copacabana.
Setecentos metros.
[ontem eu conversava com Abílio bem na porta do prédio do Fred, em Copacabana. Tinha um causo da bola que fica para depois.
Na Nova Petrobras, descem batalhões de estranhos com suas roupas corporativas de cores neutras, suas mochilas com notebooks e fones de ouvido que ajudam a apagar o cotidiano triste. Todo mundo é muito parecido. Os mais ricos correm para os táxis, os assalariados seguem em comboio na direção do Metrô Carioca. Salários à parte, todo mundo é muito parecido. Mais à frente, uma turminha sempre se encontra com seus cachorros, é uma alegria. Eles brincam. Eu penso no cãozinho do moço sofrido na porta do Carlos Gomes, fico triste e ninguém se importa com isso - as pessoas têm mais o que fazer.
Passo na quitandinha recém-aberta, compro pão para depois fazer um queijo quente. Um guaraná também. Gosto da lojinha pequena, acolhedora, com jeito de antigamente. As pessoas são muito educadas lá. Os produtos são um pouco mais caros, mas eu sempre compro pouca coisa, então não tem tanto impacto assim.
Oitocentos e cinquenta metros.
Está frio. Não há carros na rua. Nem parece o primeiro dia útil do mês. Quais são os dias inúteis?
Atravesso para chegar à portaria do prédio. Falo com o Maurício, ele é bem legal. Sinto alívio: não é hoje que eu vou ser preso nem despejado ou deportado. Mas penso em todos os meus grandes amigos e quase todos estão definitivamente mortos, portanto sou o solitário repórter de meu tempo.
Novecentos metros livres.
Sou um artista anônimo, um camelô falido, um estatístico constrangido, um escritor deprimido, um cidadão humilhado num país de merda.
Pego o elevador e torço para que ele fure o teto e decole em velocidade estelar para o infinito. Dada a impossibilidade, salto no oitavo andar, me tranco na casa que não é minha, penso, choro, me vejo sem saída e então tomo um banho gelado, verdadeiro suicídio nestes tempos. Me deito e ligo a TV para me fazer companhia, pouco importando o que é dito ou exibido.
Preciso revisar um livro e não consigo me concentrar. Não tenho condições. Meus joelhos doem. Minha coluna dói. Deitado, tento procurar um bem precioso que nunca tive em mais de cinquenta anos: a paz. Isso não me impediu de dizer coisas alegres, escrever poemas, namorar belas mulheres, olhar o horizonte para tentar desvendar os mistérios do mar, nem de me divertir com meus velhos amigos - hoje quase todos mortos -, mas o fato é que eu não sei o que é paz. Chutar bola de garoto é coisa que passa rápido demais.
@pauloandel
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