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Thursday, May 14, 2020

Misto quente sem presunto



O Sniff´s era o palco oficial de reuniões 
diárias de muita gente, mas honestamente para a vida líquida: cervejas, refrigerantes, caninha e sucos basicamente. Quando a fome apertava, em geral os jovens corriam para o Sumol, que fica na esquina de Figueiredo Magalhães com Barata Ribeiro – aberto até duas da manhã! Em noites de – rara –caixa alta, aquela pizza na Bella Blú da Siqueira. Para noites mais humildes, o caldo de cana da entrada do Shopping, na Figueiredo, já servia. Em caso de emergência, o máximo que rolava no bar do Seu Manel era ovo cozido ou amendoim. Às vezes uma porção de salaminho. 

Numa bela noite o Xuru, o bardo da turma dos escoteiros, chegou ao bar morrendo de fome. O problema é que o cardápio realmente deixava a desejar. 

Para se ter uma ideia, em meados de 1988 o misto quente da casa era mais barato do que o queijo quente, de tão barra pesada que era o presunto de ocasião. O jovem Russo então teve uma ideia: se pedisse um misto quente sem presunto, ele seria igual ao queijo quente, só que mais barato. 

Estava na cara que não ia dar certo. 

“Seu Manel, faz pra mim um misto quente sem presunto”.

“Ma com assm mninn? Com pód mist quente sem prsunt? 

O merderê estava consolidado. O bar virou o Coliseu de Roma. Xuru e Seu Manel protagonizaram um dos maiores debates da história do Sniff's, digno de eleições presidenciais que, naquela época, 
nem existiam. 

Com o regulamento nas mãos, tendo em vista que o presunto da casa era assustador feito o capeta, o jovem impetuoso que, um dia, faria história nas noites underground de Copacabana - e ganharia a alcunha de Russinho da Atlântica -, partiu com sua retórica para cima do velho comerciante lusitano:

"Seu Manel, eu quero um misto quente sem presunto e pronto. Não sou obrigado a comer esse presunto horrível."

"Ma num pod, mninn. Ond já c viu uma coisa dess? É que nem cazment sem noiva!"



Os dois elevaram o tom, o pessoal de longe começou a olhar, gente que passava na porta do Sniff’s parou e o cenário de alguma forma tinha a ver com a clássica canção de Aldir Blanc e João Bosco, “De frente pro crime”: “O bar mais perto depressa lotou/ malandro junto com trabalhador/ um homem subiu na mesa do bar/ e fez discurso pra vereador...”. 

“Ô, russim, mninn da Atlântica, você foi criad aqui, bom mninn, num pód uma coisa déss rapaiz.”

“Seu Manel, será que eu vou ter que chamar a polícia para atenderem meu pedido? O bar é público, eu estou fazendo meu pedido honestamente, posso ser atendido ou não?”

Silêncio na arquibancada do botequim. O veterano português saiu do balcão, chamou o russinho, os dois se afastaram uns trinta metros do Sniff’s, quase na esquina da portaria do Bloco D. 

Conversaram a sós, todo mundo esperando o resultado do fim do debate. 

O Xuru, baixinho, gesticulando muito. O Seu Manel, grandão, com as mãos para trás, de camiseta Hering branca. Ao longe, os torcedores do bar esperavam pelo capítulo final com grande expectativa. Até Souza, o antipático chefe da segurança do shopping, estava conversando e torcendo pelo misto 
quente. 

Um, dois, cinco minutos deconversa, um falava, o outro se calava. Num súbito, de longe se ouvem as velhas tamancas: Eduardo Victor Visconti, o Seu Visconti, o genial e excêntrico poeta e filósofo, vinha caminhado na direção 
tradicional e viu a dupla. Parou do lado deles, escutou os dois falarem algo rapidamente, começou a mexer os braços de forma alucinante, bateu as tamancas no chão com força e, plim, a conversa acabou.

Apressado, Seu Manel retorna para o balcão, cumprimenta os torcedores do bar e fala em tom baixo para o balconista Zezinho; “Faz lá essa porr desse mist sem prsunt pro Russinho duma vez”. Em seguida chega o triunfante Xuru, sorridente, e Seu Visconti começa a gritar: “SEUS DESOCUPADOS! NUNCA VIRAM 
NINGUÉM REIVINDICAR SEUS DIREITOS NÃO? VÃO ARRUMAR O QUE FAZER!”.

No outro canto do botequim, até Paulinho Cana – adversário histórico de Seu Visconti – balbuciou: “Esse velho é foda!".

(Publicado em "Um botequim de Copacabana", Vilarejo Metaeditora, 2019, página 49)

@pauloandel

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