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Friday, March 13, 2020

rotas da boa morte

"depois que morri, pude perceber que dentro do mínimo razoável fui um homem bom.

escutei as pessoas. não roubei. não prejudiquei ninguém seriamente. só fui verbalmente agressivo para me defender de violências.

não fui canalha. não traí. não deixei meus ex-amigos na mão. não fingi desatenção quando precisaram de apoios.

pensei no outro, no próximo, de verdade. não me limitei a esmolas para me livrar de gente sofrida. quem mendiga não merece ser tratado como mendigo. quem trata o mendigo como mendigo não é digno de consideração.

entendi que o mundo só funciona de verdade com solidariedade plena, de coração, sem hipocrisia e oportunismo.

tirei de mim qualquer mágoa dos que me prejudicaram, sabotaram e roubaram. pude ver alguns deles pagando a famosa lei do retorno. não adianta postar fotos felizes e, na calada da noite, olhar o teto do quarto como um espelho que estampa uma pessoa de mau caráter.

praticamente todas as pessoas que me amaram de verdade também estão mortas, salvo raríssimas exceções. mas não lamento. fui um homem bom. amei e fui amado. mesmo morto, sou capaz de amar.

fui um homem bom. agora caminho sozinho por ruas sem nome, entre pessoas sem rosto, olhando por entre os escombros de almas perdidas, solitárias, desmanteladas. pessoas mortas, que insistem em viver com fones de ouvido e smartphones à mão.

escrevi coisas que me dão orgulho. as melhores, quase ninguém leu. as piores foram aplaudidas de pé. as medíocres foram encantadoras. cada um tem os leitores que pode.

dia desses depois da morte, um jovem morto debochou de minhas ideias sem me conhecer ou sequer trocar conversas. usava um tom professoral e anglicismos ocos, típicos dos capachos intelectuais que sonham com dinheiro e poder em deslumbramentos corporativos, ou que acreditam que o próprio talento é inédito no mundo morto. olhei e ri, deixei o cadáver em silêncio. ele morreu muito jovem, perdido em manchetes ocas e pedantismo imaturo. é justo rir dos pedantes e depois deixá-los viver ao longe, longe.

ando numa cidade morta, que perdeu o viço e oferece calçadas vazias, ruas esburacadas, lojas fechadas e mãos estendidas por esmolas que adiem a morte e confirmem a morte em vida.

antes de morrer, minha mãe me disse que eu era um homem bom. foi meu maior orgulho. dei alegria a quem me deu sentido numa terra de dores, egoísmo, sofrimento e indiferença.

o brasil está morto. o rio de janeiro está morto. sou um estrangeiro em minha própria terra. às vezes alguém me dá bom dia no elevador. os funcionários do prédio são sempre solícitos. depois passo por um portão verde, ganho a rua e vejo uma solidão enorme. tenho fome, sede, dívidas, melancolia, cansaço. tenho dores físicas, mesmo morto. meus chinelos sempre me lembram de que fui um homem do povo, desimportante, apenas em busca de migalhas de felicidade, um bem precioso mesmo depois da morte.

caminho por uma rua sem movimento que não vai dar em nada. busco as últimas forças em locais improváveis. passo calmamente enquanto transeuntes celebram um fascista boçal. eles estão muito mais mortos do que eu."

@pauloandel

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