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Wednesday, June 05, 2019

o primeiro dia do inverno que não existe

lá fora estava frio, frio como não se viu neste ano. não liguei muito por mim, já que sou gordo e tenho meu próprio aquecimento, mas pensei no monte de gente que está sofrendo nas calçadas, a gente tão desprezada por esse governo filhadaputa, e então senti tristeza. sei que continua frio, pois não é preciso ligar o ventilador turbão que temos no quarto. pedi um sanduíche, o moço da entrega veio de casaco. tudo bem que por aqui todo mundo coloca casaco com vinte graus, mas o vento é frio mesmo. é menos pior do que aquele calor demoníaco que tira todas as forças, mas depois de um certo tempo em que você desenvolveu sua preocupação para com o próximo, fica impossível não torcer para nunca ter chuva - os barracos desabam, os mendigos ficam ainda mais desamparados, a cidade é um choro triste de criança abandonada. acabou o futebol, o fluminense perdeu, na televisão tem um documentário sobre badi assad. pensei no frio, me bateu certa melancolia e, enquanto fui espiar o facebook, vi a foto de um menininho que parecia meu irmão e me deu mais vontade de chorar. estou deitado na mesma cama onde fui um garoto de trinta centímetros de altura e hoje tenho mais de cinquenta anos. onde meus pais viveram e morreram. eles agora estão longe demais e eu sou a pessoa mais sozinha do mundo. felizmente sou covarde, pois já pensei muitas vezes no que significaria um voo de morte à janela, mas a minha covardia repele o pensamento - alguns dizem que é lucidez. acabou mais um dia, ou está acabando - eu já vivi mais de vinte mil dias, talvez em vão, talvez sem nenhuma importância e nem um tiquinho da lembrança de pessoas das quais lembro muito bem. deixando a tristeza de lado e ouvindo ao longe os sofredores lutando na loja de recicláveis, carregando sacos enormes em troca de moedas sofríveis. há um silêncio lá fora e algum frio. as pessoas sofrem muito e isso me corta feito uma facada verdadeira. num instante eu olho para o teto e vejo quarenta anos atrás com enorme facilidade. ou trinta ou vinte, quarenta e cinco às vezes porque tudo foi tão rápido que é fácil ver o ontem em 1973. já não está tão frio, talvez seja bom para um banho, colocar o pescoço debaixo do chuveiro até a tristeza escorrer enquanto os gols não aparecem no noticiário. e pensar que a tristeza não passa nunca, mas ela sempre pode ter intervalos até generosos. 

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