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Saturday, July 16, 2016

cruz vermelha 22 horas

enquanto sorvia uma tigela de creme de ervilhas no meu bar predileto da cruz vermelha, eu vi o mundo no coração do Rio

os jovens garçons, rapaz e moça, cansados depois de uma jornada extenuante, enquanto espiavam a praça vazia e silenciosa

ao mesmo em que o vento firme levantava as folhas do asfalto e anunciava uma noite mais fria, natural do inverno

jovens negros da rua corriam com seus pertences de mendicância em busca de abrigo numa quadra sem marquises

e uma viatura policial entrava na contramão sem motivo de ocorrência policial, mas apenas para cortar caminho

ao terminar o caldo, me despedi dos amigos de bar e caminhei silenciosa e solitariamente por cem metros

e tive tempo de ver um grupo de adolescentes caminhando para uma festa, com os garotos cortejando a belíssima menina negra que os liderava

depois de ter passado pela portinha do sobrado onde meu pai sempre parava para conversar com meu irmão, a tempo ainda de ajeitar a cadeira de rodas

o posto de gasolina abandonado que serve de abrigo, moradia, estacionamento e muitas outras utilidades da rebeldia

do outro lado da rua, a tia do açaí atende a uma fila de clientes fiéis, alguns advindos de outros bairros, outros da praça

cem metros depois, eu e Maurício, o porteiro chefe do prédio onde moro, fazemos piadas dos moradores reacionários

deixo um abraço e tomo o elevador

no espelho do veículo, não me reconheço e penso no meu amor longe demais, enquanto a noite fria vai aterrorizar gente pobre e sofrida

quando encosto a chave no miolo, num segundo lembro de vizinhos idos, de gente que disse adeus, do que não deveria ter sido o vazio

depois deito, vejo a TV num filme onde Sandy parece tão linda e há silêncio demais, enquanto escrevo versos tristes e desaconteço

foi então quando entendi o que me disseram ainda menino, sobre a vida com brevidades demais, sem tempo para rancores

procurei abrigo nas imagens, na solidão do quarto vazio, nas dores do meu corpo, do tempo que me resta e que espero ser bem grande

e me encontrei sozinho, como sempre fui e estive, porque todos o somos e seremos neste estranho destino denominado vida

@pauloandel

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