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Thursday, October 04, 2012

Centro do Rio? (fragmento)






... enquanto os respeitáveis cavalheiros brindam com o chope dourado da felicidade no Paladino, o armazém centenário que fica na esquina de Uruguaiana com Marechal Floriano. Sanduíches apetitosos, finas iguarias, nenhuma modalidade de pagamento que não seja dinheiro cash. Certa vez estive lá com Sheila, ela em grande forma, maravilhosa, deliciosa, os sujeitos faltavam lamber as mesas para secar a baba enquanto fui seu escorte triunfante. Apesar do cash, pode ser considerado um restaurante favorito - ainda que feche cedo - mas o fato é que somos quase todos quarentões e não temos mais paciência para noites alcoólicas intermináveis – ora, vamos beber o que basta. 

Nos arredores, o esplendor continental da avenida Presidente Vargas desemboca na beleza da igreja da Candelária, marcada pela triste lembrança da chacina dos adolescentes moradores de rua há vinte anos ou menos. A igreja ainda é linda, mas não há como não se pensar na dor e morte que aqueles jovens sem futuro experimentaram apenas porque eram pobres e negros, num pais que ainda trata seu racismo de forma despudoradamente hipócrita.  Somos tão respeitáveis e andamos com nossas mochilas e malas cheias de pequenos objetos importantes, tudo enquanto nas principais ruas do coração da cidade a diferença entre a vida e a morte de mendigos pode ser resumida em um pedaço de pão. Muitos não dão dinheiro: - Eu não sustento vagabundo. – Eles vão cheirar e beber tudo! – Não fui eu quem fez o mundo assim. Pessoas são assustadoras quando defendem suas posses.

Mais adiante, monumentos de cultura. CCBB, Casa França-Brasil, Centro Cultural dos Correios, Justiça Eleitoral idem, palácios de cultura e beleza nem sempre dotados do público que merecem. São gratuitos, mas a sofisticação que oferecem naturalmente espanta e constrange os mais populares, faz certo sentido. Eis um grande problema na disseminação das artes plásticas: elas deveriam ganhar as ruas, os pobres, os bons e não estarem limitadas aos pequenos guetos. Alguém dirá que os menos abonados não têm condições de apreciar arte como devido e darei uma sincera gargalhada: trata-se de xenofobia ignorante e mal-ajambrada. Nos centros culturais pode-se ver artes plásticas, teatro, música, encontros, debates, ver jovens garotas com roupas moderninhas e óculos retrô, as roupas disfarçando muito bem as formas saborosas e a pele geralmente alva, geralmente acompanhadas de rapazes com visual quase existencialista – e felizmente ninguém de cachecol ou pulôver nesta primavera equatorial do Rio de Janeiro. Todos falam baixo e parecem tão educados ou respeitáveis, mas penso que a qualquer momento possam ser integrantes de surubas praticadas em casas especializadas, aquelas das casas de swing que transbordam no bairro. Por cinco segundos cravados, torno-me um tarado perverso dentro de meus pensamentos; depois, sou um cidadão pacato e insignificante neste mundaréu de prédios e cores e gentes.

Na rua do Rosário, a livraria-restaurante Al-Farabi é um baluarte da região. Seu gerente é meu amigo Maurício Nascentes, velho amigo dos tempos da livraria Berinjela, subsolo do edifício Marquês do Herval, tempos em que conversámos com o jornalista Álvaro Costa e Silva – o Marechal, o poeta Carlito Azevedo, o advogado Daniel Veiga entre outros intelectuais, misturando prosas com altos teores de reflexão e outras que poderiam tentar traduzir a importância dos programas trash na televisão aberta do Brasil. Maurício tenta treinar boxe nas horas de folga, demonstra certa irritação com a hipocrisia cultural e jornalística que hoje paira pelos caminhos, nada vai ter jeito, a vida é uma merda, mas ainda há tempo para pequenos goles e algumas gargalhadas. Ficamos amigos num campeonato de botão que ele promovia, coisa de 1996, depois jogamos vários e eu não suportava o fato de alguns competidores chegarem às mesas de jogo sem cumprimentar as pessoas – deve ser minha eterna ojeriza ao pensamento republicano norte-americano, onde a figura do winner é essencial. 

Nos tempos de Berinjela, Marechal costumava fazer a dança do Siri-Patola, um tanto complicada e talvez impossível de ser descrita em palavras, cabendo apenas a memória de muitos risos quando de sua execução. Depois, o velho lobo jornalístico ia para o Tangará, boteco encravado no peito da Cinelândia, esquina de Álvaro Alvim e Francisco Serrador, academia da cachaça que perdurou por mais de sessenta anos até abaixar as portas. Carlito Azevedo olhava e ria, enquanto pensava sempre em seu roteiro tradicional pelas ruas da cidade: a Leiteria Mineira, o CCBB, as papelarias onde se pudesse comprar um caderno caprichado e nele desenhar poemas inimagináveis. Velhas rotinas dinâmicas, ora. Geralmente ao lado, a jornalista Kamille Viola sabia dizer tudo sobre o que havia de mais moderno nas noites modernas onde os jovens dançam, bebem e amam a valer, muito mais do que isso na verdade.

Mauricio fica num balcão baixo, quase sem ser visto por transeuntes da rua do Rosário, enquanto o computador reproduz música cubana ou jazz do Village Vanguard nos anos 60. Temos nos visto bem menos do que antes, geralmente quando faço-lhe uma visita. Paramos de jogar botão, está casado, eu quase, os tempos ficam escassos. – Sabe quem esteve aqui? Raul Sussekind, num vistoso terno, almoçando com um amigo. – E como ele está?  - Parece bem, falou do Fluminense, mora na Barra, reclama do trânsito. A cidade sofre com cada vez mais carros pelas ruas e parece claro que a solução está na melhoria do metrô e dos trens, mas quem realmente se importa com isso? Somos uma sociedade tão respeitável!

Atravessando a rua Primeiro de Março, logo você vê um terreno vazio, proveniente de um hotel que desabou anos trás, matando um casal de adúlteros e oferecendo notícias rodrigueanas aos jornais. Logo a seguir, a loja Escuta Som, uma das heroicas sobreviventes no mercado de CDs e LPs. O balcão central tem discos a dez reais, às vezes cinco, sempre algumas boas oportunidades. Quem gosta realmente de música precisa do CD e do LP como objetos físicos que são de um ritual: você deita na cama ou no sofá, ou ainda numa confortável poltrona, talvez sua cadeira predileta, mexe no encarte, lê as informações, letras, vê fotos e demais ilustrações, não é simplesmente um arquivo do tipo 2xde43g5 guardado em algum lugar do cérebro eletrônico.”


(segue)

paulorobertoandel04102012

1 comment:

Roger de Sena said...

E seguimos colocando conteúdo nesse livro de crônicas que já já vai pro prelo, né mesmo!?!? :)
Abração e SSTT!!!