I
Grupo de homens em mesa de bar vira sempre convescote de meninos, com o melhor que se possa interpretar desta sentença. E o tempo? Homens de hoje, separados pelo tempo, pelos compromissos inevitáveis, pelo ir e vir que a vida moderna parece exigir. Você dá uma piscada de olhos, passa um ano. Dois espirros, cinco anos. A vida é mais breve do que qualquer poema já soube descrever. Por isso, o convescote vira celebração, mesmo efêmera. O que vale da vida é celebrar, ter o que comemorar, entre engarrafamentos, assassinatos, dar-de-ombros à dor alheia, jornais sem texto, música sem harmonia.
Vejo um bar de Botafogo como epicentro da reunião de velhos camaradas, que parecem companheiros de escola, tentando reviver bons e velhos tempos numa hora e meia. Tudo cronometradamente ali, naquela quadra sharonstoniana que avizinha o Estação e seus filmes heróicos, hoje infelizmente degustados por uma meia-dúzia. Muito tempo antes, era um cine pornô: as pessoas gostavam. Agora tem filmes de arte, meia-dúzia aplaude, alguns saem ser compreender o final das histórias. As pessoas gostam, eu gosto. Algumas. Sharon Stone está à solta no visual das garotas moderninhas com visual moderninho e, sem certeza, algo a dizer. Ou apenas o silêncio. Ou o arrebatador desconforto do nada.
Vejo os velhos camaradas naquele espiar de relógios para ver quem mais chegaria ao convescote. Bebericar, falar da vida, dos amores, das perdas. Pequenos acontecimentos do cotidiano que presenciaram e foram suficientes para, de alguma forma, garantir boas risadas rumo à posteridade. A ausência do amigo chato, mas divertido. Mais chato do que divertido, ressalte-se. Justiça é sempre desejável. Meu ouvido é um repórter investigativo. Comentar os tempos modernos, as maravilhosas invenções do homem, a grande tecnologia, a Internet, diferenças gritantes quando comparados os tempos de escola com os de sapato e gravata. E como era antigamente? Tudo era futuro, claro. O amanhã era a prioridade. Hoje, depois dos trinta e muito, dos quarenta e pouco, talvez exista a consciência de certa finitude do ser humano: não somos eternos como gostaríamos; melhor assim. Um deles questiona o formato de Deus; outro diz não se preocupar com isso. Alguém lembra que é possível, mas exatamente como? Se pudesse, daria meu palpite, recheado de desimportâncias. Importante é saber que estão a trocar prosas e prosas e pequenas prosas, assuntos variados que me remetem a pequenas canções de lascívia e afeto. Bob Dylan, talvez. Paul Mc Cartney. Papa Wemba. Outros discos. Nem tudo me soa a antigamente, exceto quando um deles, calvo, desconfia que o camarada ao lado pinte o cabelo para não aparentar grisalhos. Um dia, serei assim.
Parecem cavaleiros numa original távola redonda. Perto deles, noutra mesa, duas jovens mulheres. Uma, bonita. A outra, capaz de causar taquicardia ao primeiro olhar, na melhor acepção possível. Vocês vão entender.
II
Ao telefone, um elemento raro ao grupo finalmente sinaliza: chegará à mesa dentro de alguns instantes. Será breve: cuidar da filha é preciso. O tempo de algumas boas frases e um abraço na turba. Deu tempo para que eu percebesse ser ele um fã de Charles Bukowski, o que parece algo bastante animador, se é que me entendem.
Um deles, do grupo, parece metido com artes, coisa típica dos botequeiros da região. Fala de cinema. Meus ouvidos intrometidos notam sua rejeição ao músico de uma banda e, conseqüentemente, uma ode a outro músico. Tem o nariz adunco do Oriente. Eu diria que se trata de um Woody Allen à espreita de acontecimentos no bairro boêmio. A seu lado, outro jovem senhor, bem mais jovem do que sua eventual carteira de identidade possa apontar, muito parecido com um destes políticos da televisão, assiste a tudo e fala pausadamente. No meio do caminho, diz-se que João Barone, o grande baterista brasileiro, é fã declarado de Ringo Starr e isso poderia parecer um contra-senso, mas não é. Cada um idolatra quem quiser. Neste momento, eles denunciam que são jovens, mas de outro tempo: hoje em dia fala-se menos de Beatles e mais de Fresno, Restart, NX Zero. O rock errou? De longe, penso nos meus discos de jazz cubano e nos que comprei ontem: Strontium 90, a gênese do Police; o quarteto de cordas da UFRJ e a banda-de-um-homem-só: The The. Falei grego?
O homem do telefone chega. Todos se levantam, feito um tributo. Traz a pequena filha à mão. Risos explodem no bar. Coisas de velhos camaradas, creio: ficam dez, quinze ou vinte anos sem dividir um bate-papo mas, quando se encontram, é como se nada tivesse mudado. Chega, ri, cumprimenta a todos, percebe que o tempo é escasso – aí sim, um até-breve como aqueles de antigamente. Noto que ficam de marcar um novo chope, com mais tempo e comodidade. Ele sorri e se despede. Há um sentido da vida neste pequeno ritual.
Na mesa das duas jovens, a mais linda abusa de poses na cadeira-sofá. É senhora e consciente de sua colossal beleza alourada, com cabelos curtos, estatura de um metro e sessenta e coxas roliças, provocativas, instigantes, acolhidas por um vestido três dedos acima da marca regulamentar, cruzadas de forma intermitente. Por vezes, ri; noutras, dispõe de um ar blasé, quase entediado, como se nada lhe interessasse ao seu redor. Eu reparo que ela fita a mesa dos cavaleiros, mas com a maior das discrições – desnecessário dizer que a recíproca é verdadeira, entre espiadas e torcicolos. É linda, sabe ser linda e alva como a lua cheia que inunda a noite.
III
Deus existe, pode existir, algo existe. A mesa não chega a um consenso. Alguém fala de “another brick in the wall”; outro lembra que é a maior junção de baixo e guitarra da história do rock. O grupo está dividido quanto às eleições da próxima quinzena, mesmo que o jogo já esteja decidido, com as devidas cartas batidas à mesa. A divergência é a verdadeira reunião.
Um menininho negro, ao lado da irmã pequena ou parente, pede trocados e os ganha. Gosto de ver aquela pequena solidariedade, mesmo que ela seja um paliativo por minutos. Para quem precisa e espera, uma hora é a eternidade. Nos meus tempos de criança, os menininhos negros também pediam esmolas. Quem considera isso aceitável e normal não é digno da minha compaixão. Duro ver o mundo em suas expressões mais evidentes; daí, minha admiração pelos bravos ex-rapazes que se confortam com lembranças, risadas, opiniões e alguns chopes pela noite desta segunda-feira - eis aqui um outro dos poucos sentidos da vida.
Alguém telefona e tudo indica que é justificativa de alguém por não ter ido ao encontro. É normal: não se pode ganhar todas. Grupo de sujeitos em mesa de bar é assim: chamam dez, vêm cinco. E basta. Mesas muito grandes e muito cheias não comportam conversas coletivas, o que me parece frustrante.
O bar não está cheio. Se fosse o caso, duvido que qualquer homem heteroafetivo ali presente não tecesse loas à continental beleza da jovem de cabelos curtos e alourados, pernas alucinantes e um vestido curto que abastece desejos quase extraterrestres. Ela, pela terceira ou quarta vez, se levanta para ir ao toalete. Não resisto: quero vê-la de perto. Se meus cálculos forem bons, sairemos cada um de seus banheiros ao mesmo tempo, serie gentil ao deixá-la usar a pia unissex primeiro e, com isso, assegurarei meu direito de ver aquela estátua de carne terna bem de perto, por trás.
Confesso que meu diploma se fez bastante útil, ainda que somente por um fetiche masculino bobo, já que nada acontecerá além daquela admiração momentânea. Ou aconteceu, ou aconteceria. Compreendo que beijá-la integralmente, de cima a baixo, pode ser o paraíso... inatingível.
IV
Conta fechada e paga, todos com seus possantes cartões de crédito e débito, ainda gastam um tempo pós-bebedeira para trocarem mais prosas.
Subitamente, um furacão chamado mulher passa em definitivo pela mesa, trazendo inspirações e deixando saudade. A loura linda, provocante e visualmente saborosa vai embora, junto com a amiga que não é de se desperdiçar, mas infelizmente desaparece do cenário diante do monumento ao lado.
Um silêncio de morte. A beleza cerrou portas, mas a vida continua.
Velhos camaradas se abraçam. É hora da despedida. Hora de volta à realidade, até um novo encontro, novos chopes e, quem sabe, uma outra mulher linda a servir de colírio para o ambiente.
Seguem juntos até a direção da estação do Metrô, quando os perco de vista. Do jeito que pareciam à mesa, não duvidarei se um deles quase arrastar o outro trem afora para navegarem pela noite subterrânea do Rio de Janeiro, somente pelo prazer da companhia e nada mais.
Antes da última visada, percebo que quase todos carregam mochilas. Ao longe, me lembram uma turma de faculdade que muito curti, noutros Brasis atrás. E isso é bom.
V
Meia-noite já era. Ninguém me ligou.
A sala está vazia, exceto pela minha presença e pelo som do Strontium 90 no aparelho, mostrando o que o Police viria a ser um dia: espetáculo.
Leio um caderno cultural de algum jornal paulista.
Um escritor escolhe suas dez canções preferidas e fala do Pink Floyd como “a maior banda de todo o rock”. Tem propriedade.
A lua cheia da Cruz Vermelha é a mesma de Botafogo: ansiosa, exuberante, expressiva.
Cogito rever a beleza daquela linda mulher no bar. Uma rainha frente a seu império. Um boteco de Botafogo, mas imperial da mesma forma.
Uma frase em inglês me vem à cabeça: “There’s no more bricks in the wall”.
Quero fazer sentido. Em um outubro qualquer.
Paulo-Roberto Andel, 21/09/2010
2 comments:
Envolvente. A alegria do encontro, a nostalgia e todas as reflexões nas entrelinhas.
A mulher linda desconcentrando os meninos...dei risada.
Homens...tsc,tsc...
:-)
Querido amigo (20 minutos já se passaram há horas)[rs], sua escrita é única e especial como a de Bukowski. Belíssima sua crônica.D+ Paulinho.
Que loura, hein ?Tomara que ela não vá ao próximo jogo do Flu para não tirar a concentração do goleiro.[rs]
Gente, fiquei impressionada como estatísticos não descansam a cabeça nem nos bares da vida. Calcular o momento exato em que a loura sairia do "número um, número dois". Tá merecendo aumento.[rs]
Você arrasa em qualquer outubro, meu amigo. Parabéns!!!
Tá chegando a hora...
Beijossss
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