Era um sábado à noite, daqueles que fazem o Rio ficar mais Rio. Ou faziam, talvez. Milhares de jovens pulavam as catracas do tradicional Jockey Club, divisa de Jardim Botânico e Gávea no Rio de Janeiro. A maior banda do rock brasileiro de então, Legião Urbana, tocaria para uma multidão que até hoje, não se sabe precisar em números: pode ter sido quarenta, cinqüenta ou setenta mil pessoas. Na saída, uma confusão generalizada e um engarrafamento que parou a zona sul da cidade. Num dos carros, meu amigo Dino eternizou o momento:
- Cara, Legião Urbana é isso aí! Sexo, drogas e engarrafamento!
Durante o show, em muitos momentos Renato Russo parecia exalar certa solidão em momentos de silêncio contemplativo, diante de um Jockey que mais parecia o Maracanã em dia de decisão. Num outro, repreendeu a molecada que jogava terra à frente do palco. As canções inesquecíveis eram destoadas uma a uma, cantadas como se fosse uma procissão. Entretanto, entre uma e outra canção, um ou outro detalhe, pairava o danado do silêncio. Na verdade, aquela celebração de alegria tinha sido pulverizada logo pela manhã, quando correram rumores de que o esperado show da Legião poderia nem acontecer.
Cazuza tinha morrido.
Será?
”Mas se você achar/ Que eu tou derrotado/ Saiba que ainda estão rolando os dados/ Porque o tempo, o tempo não para”
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Sábado de manhã, dia sete de julho, desci de casa para tomar meu guaraná na lanchonete Kiosk da Siqueira Campos. Na banca, obituários viraram manchete. Por conta da doença grave, todos sabiam que a vida de Cazuza estava por um fio. Mas aconteceu que estávamos tão acostumados com aquele poeta sem-regras, que expirava literatura na música e, ao mesmo tempo, bebia e se drogava como nunca que, iludidos, talvez tivéssemos imaginado que ele fosse imortal de carne. Compôs e cantou até poucos dias antes da passagem, mesmo muito debilitado, e ainda pôde ver seu último grande hit tocar nas rádios com a fúria dos que viviam os primeiros meses da Era Collor – a mesma da Era Dunga:
”Vamos acabar com a burguesia/ Vamos dinamitar a burguesia/ Vamos pôr a burguesia na cadeia/ Numa fazenda de trabalhos forçados/ Eu sou burguês, mas eu sou artista/ Estou do lado do povo, do povo”.
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Num tempo em que não se entendia a AIDS direito e muitas celebridades morriam de “pneumonia fulminante”, já bastante doente, Cazuza topou fazer a capa da ex-revista Veja e uma entrevista emocionante. Provavelmente, seu gesto ajudou a salvar a vida de milhares de pessoas, mesmo que ele fosse um completo anarquista no bom sentido da palavra. Ninguém me contou. Eu vi. Nas ruas, nas conversas, na faculdade. Vinte anos depois, poucos foram tão corajosos num momento de tamanha fragilidade e risco de vida.
”Eu só peço a Deus/ Um pouco de malandragem/ Pois sou criança e não conheço a verdade/ Eu sou poeta e não aprendi a amar”.
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Renato Russo, durante o grande show do Jockey, parecia olhar para um horizonte muito longe e, talvez perdido. Quem lá esteve, entendeu sua tristeza. Mais do que isso, não sei dizer se ele mesmo já estava doente, sabedor ou não de sua situação. Isso pouco importa diante da perda irreparável dos dois grandes poetas contemporâneos da música brasileira. Logo depois, um desastre cala Chico Science, uma bobagem cala Cássia Eller e o prejuízo vira buraco sem fundo.
Sete de julho foi um dia estranho com uma noite estranha. Celebração e torpor ao mesmo tempo.
Os anos passaram e percebi que, muitas vezes, tentou-se priorizar o lado escrachado de Cazuza, principalmente por conta de sua sexualidade exacerbadíssima. A meu ver, o menos importante diante da grandeza do poeta, de seu talento inquestionável e que, hoje, vinte anos depois, continua vivíssimo.
“Eu andando pela neve/ Em pleno Central Park/ Com as estrelas do cinema/ Faço cenas no metrô/ Com meus tênis All Star/ Deixando as louras loucas/ Com meu latin style/ Não sou mais Paraíba/ Sou South American/ Aqui em Manhatã/ Aqui em Manhatã”
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Os gênios morrem jovens, não me perguntem o porquê.
Merecíamos bem mais de Cazuza, mais do que toda a sua obra fantástica que aí está, que lhe permite ser tratado com o devido título de poeta, contrariando os atrasados que ainda se recusam em ver o brilho das letras na música popular – como se Chico Buarque, Caetano Veloso, Cartola e Noel Rosa não fossem colossos obrigatórios em língua portuguesa. E Cazuza está nesse time, que fique bem claro.
O que o enfant térrible do Baixo Leblon teria escrito sobre a até hoje nublada deposição de Collor? Os mais afoitos vão falar de mensalão, mas ele iria muito mais fundo na ferida: o Caso Sivam; a reeleição durante o próprio mandato; Rubens Ricupero e seu “O que é bom a gente mostra; o que é ruim, esconde...”; Jader, Arruda, Roriz, Pitta, FHC. O poeta não era um raso.
A morte precoce de Cazuza nos tirou páginas brilhantes da crônica de costumes da vida brasileira.
“Vida louca vida/ Vida breve/ Já que eu não posso te levar/ Quero que você me leve/ Vida louca vida/ Vida imensa/ Ninguém vai nos perdoar/ Nosso crime não compensa”
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Ainda temos esperança. Zeca Baleiro tem muito o que dizer e escrever. Makely Ka é espetacular.
No mais, onde estão nossos poetas da música com menos de quarenta anos ou perto disso?
Não sei dizer.
Parece que as pessoas pararam de dar atenção ao que se canta. Vale qualquer coisa. Espero estar enganado. Não quero cair no velho erro de cada geração quando aponta as próximas como “sem brilho”, se comparada com a própria. Mas... cadê os grandes letristas jovens?
Resolvi escrever estas linhas ouvindo “A tempestade”, disco lançado dias antes da passagem de Renato Russo. É minha humilde maneira de homenagear dois sujeitos que foram parte muito importante da minha adolescência e, por isso mesmo, são presenças eternas na minha vida.
“Quando tudo está perdido/ Eu me sinto tão sozinho/ Quando tudo está perdido/ Não quero mais ser quem eu sou/ Mas não me diga isso/ Não me dê atenção/ E obrigado por pensar em mim”
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“eu queria que você estivesse aqui/ e me contasse uma longa história/ sem a necessidade de final feliz ou beijo de celebração/ bastaria ser uma história longa e diferente/ que trouxesse uma pequena chama aos corações solitários/ que oferecesse luz aos sentimentos entrevados/ e que fizesse da gente bem mais gente do que hoje somos/ um batalhão de estranhos a esbarrar uns nos outros/ ou matar por divergência de opinião/ enquanto as belas luzes dos grandes edifícios/ pouco alumiam a miopia da mente medíocre/ eu queria que você estivesse aqui/ mesmo que fosse para falar de dor e perda/ dor e morte/ ou pequenas derrotas cotidianas/ por que o melhor não estaria nos fatos/ mas sim na tua admirável narrativa/ eu queria que você estivesse aqui/ porque isso me faria jovem de novo/ com toda a vida pelo caminho e o direito de errar/ de arriscar/ de acreditar que este estranho mundo poderia ser o mesmo com o qual eu sonhei um dia/ talvez você esteja aqui/ talvez eu possa te ouvir/ e pensar/ no que já passou e no que ainda nos resta/ diante tanta indiferença/ e crenças que perseguem/ e ridículos valores que fazem do homem o mais primitivo dos bichos/ quero voltar a reconhecer o meu do eu”
Vinte anos voam.
(Obs: Há instantes, acabou de falecer Ezequiel Neves, o principal parceiro de Cazuza. Ironia do destino...)
Paulo-Roberto Andel, 07/07/2010
Foto: Ana Stewart - Agência Estado
3 comments:
texto lindo, lindo, lindo
Grande Andel, sua contextualização extrapola a morte. E nos deixa com (mais) saudades. Não do tempo em si, mas do que podíamos ter sido e seguido não fosse a morte (atual). Grato por suas palavras. Abraços, Pedro.
Caraca! Tem certeza que já fazem 20 anos???? Isso tudo foi ontem, nao é possível!
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