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Friday, March 12, 2010

GLAUCO E OS CEGOS DO CASTELO










Há pouco, sem chance de defesa, Glauco foi fuzilado junto a seu filho.

Muito antes da hora, o Brasil, involuntariamente estúpido pela própria natureza de uma sociedade que preserva o individual em detrimento do coletivo, perdeu um de seus maiores artistas em todos os tempos. Artista na acepção da palavra, sem relação com acéfalos sexistas ou especialistas de PONE que borbulham em televisões, rádios, jornais e Veja (esta, uma ex-revista que só agrada aos endinheirados mais ignorantes da nação).

Quem matou Glauco? O imponderável? Ou um bandido armado, o mesmo bandido que por algum fator exógeno (uso de drogas, sede de riqueza etc) praticou tal barbárie, mas que, naturalmente, não nasceu com o ímpeto assassino?

Ainda estou impactado por ter visto ontem o desespero da mãe de um dos bandidos que matou o lutador Marco Jara, ao se encontrar com a mãe da vítima que, de tão lúcida, chega a nos comover: sabe que a mãe do bandido não tem culpa do que aconteceu. Ou a reprise sobre as adolescentes que são mantidas em cárcere privado pelo traficante sob a alcunha de "Berola": torturadas, seviciadas e estupradas diariamente, todas estão grávidas. Não falo do que ocorre em Paraopeba, Jaguariúna, Nazaré das Farinhas ou qualquer respeitável cidade brasileira. "Berola" é um criminoso em atividade na Tijuca, divisa com o Rio Comprido, a 5 minutos de carro do quartel-general da Polícia Militar e da Adademia de Polícia Civil.

Enquanto somos cercados por todo tipo de violência - que seria infinitamente pior se tivéssemos nas veias o sangue da vingança - os cegos do castelo, em seu deliberado ofício de desocupação, pregam a "sociedade liberal", o "mercado livre", a "competição acima de tudo" e o resultado aí está: num país esmigalhado pela brutal desigualdade econômica e que, somente em anos recentes, teve do governo um mínimo de atenção para com os miseráveis, a todo momento o que se vê nas peças de publicidade é a sugestão do "seja rico", "seja bonito", seja um vencedor". Milhões de jovens ainda nascem sem a menor expectativa de conforto, educação e progresso - a diferença é que, em cado canto do Brasil, tem alguma propaganda praticamente obrigando o minisujeito a ser alguém importante na vida, e qualquer ser dotado de raciocínio sabe que um modelo de "Estado Mínimo" é a cruel antítese desta possibilidade. Algum boçal há de dizer que uma sociedade progressista é bonitinha mas alguém tem que pagar a conta, e quem vai ser? Obviamente, os sonegadores e a iniciativa privada. Quem mais seria? Em suma, temos uma verdadeira máquina de propaganda que impõe o sucesso absoluto para milhões de brasileirinhos que vivem nas piores condições: eles vêem tudo, pouco ou nada podem fazer. Misture-se um coquetel de miséria, maus tratos e, principalmente, desagregação familiar e uso de entorpecentes. Qual o resultado? Gente que mata e nem sabe por quê. Gente que mata e acha normal. Gente que estupra e acha normal. Não é gente, assim como não é gente quem passa na rua e trata morador de rua como se fosse lixo.

Nossa sociedade sofre um processo de mediocrização, exacerbação do individualismo, auto-suficiência e descaso desde décadas. O resultado disso está numa classe oprimida que, de alguma forma, reage e causa muito, mas muito mal. Felizmente, a índole pacífica do brasileiro faz com que estes índices de violência sejam muito menores do que se poderia supor – basta imaginar quarenta milhões de miseráveis famintos, violentos e armados, fosse o caso. Não é assim.

Sempre haverá um idiota capaz de defender a opressão, o nazi-fascismo, a pena de morte e outras aberrações como alicerces de uma “sociedade de respeito”. Estamos condenados a viver a piora desta situação até que o último imbecil totalitário esteja vivo.

O que vemos nas ruas, nos tiros, nos estupros, nos “fornos de microondas”, nas favelas dominadas pelo tráfico, nas grandes vias, no interior é a germinação de uma semente maligna que foi plantada no Brasil e que, mesmo governos moderados de natureza progressista, como o atual, não conseguiram eliminar.

A malignidade de 1968, quarenta e dois anos depois, ainda prolifera nas ruas. A desagregação de nossa sociedade, o fascismo de parte dela, a indiferença de outra parte, a ignorância da maioria, tudo isso foi macabramente arquitetado pelos traidores da pátria em 1968, 1964 ou que data queiram. A junção desses fatores e a maldita herança do caos social desceu rio e desaguou no que vemos hoje: a vida que nada vale nas ruas, seja das vítimas de crimes ou de mendigos com as mãos estendidas no vento, esperando o último suspiro. E então, mata-se por nada, dane-se o outro, o que importa é vencer a competição, mesmo que seja preciso sonegar, burlar, prostituir: os mais abonados, bem-nascidos, lêem a sentença como sinal de constituição de riqueza; os desprezíveis, das classes mais baixas, muitas vezes cansados de lutar por uma oportunidade digna, deixam-se levar pela vida marginal. O resultado aí está: João Hélio, Lia Friendbach e mais oitocentos mil nomes de ricos e pobres que padeceram com a violência estúpida, brutal.

Não é possível crer que todos os jovens bandidos sanguinários deste país sejam vocacionados para o mal, o crime e a podridão desde a nascença. Há algo de errado não somente neles, mas na nossa sociedade. E muito. Um mar de hipocrisia que, se quisermos evitar que se transforme num tsunami, precisamos agir desde já. Tolos os que acham que mudanças nas leis resolvem o problema; mais ainda, os eternos repetentes do raciocínio que defendem o Estado totalitário: o que se precisa é de um choque no comportamento da sociedade.

O Brasil é maravilhoso sob vários aspectos.

Noutros, chega a assustar, dada a cegueira mental de parte da dita “classe média”, que pensa no seu conforto particular e dá uma banana para o resto.

Todos os dias, brasileiros são mortos por tolices, crimes imbecis, estúpidos, sem nexo.

Ontem, perdemos um de nossos grandes artistas por nada.

As ruas cheias de drogas, o tráfico financiado por grandes empresários e partidos políticos que se dizem moralizadores e democratas.

Não há outra palavra a dizer. Puto. O bárbaro assassinato de Glauco me deixou muito puto. Não há um sujeito que conheça o trabalho do espetacular cartunista e nunca tenha dado gargalhadas com seus personagens ou reconhecido seu traço fantástico.

Glauco, Laearte, Angeli, Adão e outros tantos antecessores como Jaguar e Ziraldo formam um imenso grupo que, com seu talento e humor, tem uma característica comum: a de, através da arte, apontar as mazelas do Brasil. Fazer o Brasil olhar para o próprio rabo e, se for, o caso, rir. Só que boa parte do Brasil hoje não olha para o próprio rabo: enquanto viúvas lacerdistas celebram a “ditadura” de Cuba, fingem não olhar a ditadura que nós mesmos nos metemos – a da violência cozida na miséria, regada a drogas baratíssimas com alto poder de auto-destruição, que passou a ser organizada com todo rigor a partir daquela outra ditadura imbecil, a de 1968, que nos pôs na lona e até hoje engessa a nossa mobilização... que precisa ser muito, mas muito maior do que meia-dúzia nas manhãs da Delfim Moreira.

Hoje à noite vai ter baile funk. Vai ter estupro e assalto.

Algum pateta na Guanabara vai suspirar com a “inteligência” de Diogo Mainardiota (oxímoro), a “crítica” de Jabor, antes de chamar Lula de “analfabeto” para, somente mais tarde, deitar no berço esplêndido da imbecilidade burguesa. E não vai enxergar que ele mesmo, pateta, ajudou a alimentar o mar de violência e hipocrisia onde estamos à deriva.

Glauco, descanse em paz. Uma pena que a burrice do Brasil tenha sido co-autora do crime contra você.

Paulo-Roberto Andel, 12/03/2010

5 comments:

Nelson Borges said...

Meu amigo,
Acho que mais do que "Um choque no comportamento da sociedade.", a solução, ou parte dela está na quebra do que alimenta esta cadeia de violência, que é a vasta reposição de material humano.

Temos que tirar as crianças desse sistema, e para isso já existem diversos estudos. Nossos saudosos Leonel e Darcy estavam visualizando isso aí.

Acredito que com boa vontade política e trabalho sério e honesto o quadro se reverteria no máximo em 3 décadas.

Talvez você tenha razão, não adianta alguns poucos políticos quererem mudar a situação, talvez tenha que vir realmente da sociedade este anseio, esta demanda.

bçs

Ana Guimarães said...

Fiquei chocada.
Beijo

Lau Milesi said...

Oi Paulinho! Seu texto, como sempre, impecável. Foi uma grande perda, sem dúvida alguma. Só não tenho uma opinião formada sobre o fato.Tudo envolto em muito mistério. Religião,fanatismo, Santo Daime, Chás...

Mas senti muito. Eu colecionei várias tirinhas dele ao longo do tempo.

Um beijo.

Elika Takimoto said...

Absurdo! Absurdo!!!

Isso deveria ser proibido por leis vindas do além!

Os artistas, sim, muito mais do que os simples mortais, deveriam ter uma proteção quadridimensional.

Muito triste...

Mariano P. Sousa said...

Meu amigo Paulo!
Se a sociedade quiser tudo é possivel, mas falta a conscientização e aí não poedmos contar com os meios de comunicação em massa, estes nã ajudam em nada.
É preciso mudar os rumos...
Abraço!