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Thursday, March 25, 2010

FRED















Era hora da noite, era calor e frio ao mesmo tempo neste outono desenfreado e lembrei de meu velho amigo Fred.

Lembrei e relembrei tanto num momento que, subitamente, apanhei um CD da velha banda que escutávamos quando tínhamos uns nove ou dez anos, talvez. Naquela outra época, era LP, de capa grande e um desenho do qual eu tinha medo; faz muito tempo, o tempo que eu tinha medo de um desenho. Ninguém conhecia aquilo e nem sei de onde o Fred tirava aqueles coelhos se não usava cartola. Na capa, gnomos, gente decadente, um unicórnio. Eu tinha medo, mas achava as músicas legais, mesmo que parecessem um pouco tristes. Era nossa diversão da tarde, entre um e outro jogo de botão. Também tinha a pizza quadrada, inventada por ele; nós mesmos fazíamos a massa. Para beber, suco de caju. Sábado era dia de Chacrinha; mais tarde, viramos escoteiros e o mundo mudou. Durante a semana, pós-escola, futebol de botão na sala, dupla de praia na areia. Na volta do escotismo, coisa de garotos: vinho Cantina São Roque com biscoitos de travesseirinho de queijo. Tudo muito antes de um conhecido nosso virar transex. Debaixo da cama, um gavetão com todas as Playboys do mundo. Certa vez, Fred cogitou reclamar no Procon porque comprou uma revista sem título cuja modelo de capa parecia muito com a Natália do Vale; claro, no conteúdo, era outra coisa. O porteiro Ailton, irmão de Agnaldo, nos infernizava e ria: acho que gostava da gente.

Com o passar dos anos, veio adolescência. Fred embarcou na direita, eu era da extrema-esquerda. Era, não: sou. Serei. No fundo, tudo cristianismo: pensar no próximo, no mais pobre, na miséria do mundo que nos cerca. Juntamos uma turma da pesada: surgiu Gustavo, Jorge Pinto passou a freqüentar, Luiz Magno direto, o Marco já era nosso, assim como Ricardinho, cuja casa era uma espécie de clube de campo, filial do Fred. Uma enxurrada de meninas também. Dona Magda trabalhava praticamente o dia inteiro, de modo que a casa do Fred virou nosso quartel-general. Em tempos de poucos telefones e nenhum celular, o da casa era para recados de todo mundo: “Fulano, te ligaram confirmando o futebol mais tarde nos Bombeiros”. Muitos discos, alguns livros, um show de televisão, muita conversa fiada de alto nível e o jogo de botão (que nunca abandonei) foi trocado por rodadas de carteado, mais precisamente “mau-mau”. Entrei para faculdade, a casa era minha sala de estudos, entre canções do Kraftwerk, Alan Parsons e uma novidade juvenil chamada Guns n’ Roses (numa tarde de competição baralhística, a mesa de jogadores foi à loucura quando Gustavo quis debater Estatística comigo). Não tinha muito jogo na televisão, mas víamos alguns. A estupenda série “Grande sertão: veredas”, vimos toda. Um luxo ter Guimarães Rosa na tevê. Também tinha Flávio Cavalcanti, antes de ser tachado de fascista ou de protetor de comunistas: a verdade sempre tem dois gumes, no mínimo.

Colocando na tabuada, uns treze, catorze anos. Uma vida.

Um belo dia, Fred se mudou. Foi num sopetão. Um golpe. Passei tantas horas dentro daquele apartamento 1346 do Bloco F que, pensei, ele nos pertencia por direito. Ledo engano. Tudo tênue e rápido, feito a própria vida. Depois, mudou para um prédio e outro prédio e outro prédio. Eu também me mudei, Copacabana virou lembrança. Fomos trabalhar, tocar a vida e a distância numa vida sem internet ou outras modernidades nos custou treze anos de exílio. Perdemos o contato, até que um dia, graças aos e-mails e orkuts da vida, fizemos um almoço de domingo na Cobal da Humaitá. As amizades estavam intactas, faltava reatar a intensidade.

No pior dia de toda a minha vida, após o enterro de minha mãe, o Fred estava lá, atordoado. Segundo os que testemunharam minha tristeza, ele parecia mais transtornado do que eu. Acredito. Minha tristeza é infinita, mas eu estava completamente entorpecido pela dor. Ele, mais lúcido, via naquilo o horror que era um marco do fim da nossa juventude. Dia desses, éramos garotos fazendo pizza quadrada e esperando a sessão da tarde. Ali, éramos garotos, garotos mesmo, com os vincos da vida e de frente para a morte. Uma quinta-feira.

Sábado, toca o telefone. Do jeito que podia, lá estava o velho Fred preocupado comigo e querendo me convidar para sair – logo ele, a pessoa mais caseira que conheci. “Vamos no Rio Sul, cara, ver as gatinhas”. Era o jeito amigo dele de tentar me consolar. E esse consolo durou dois anos seguidos, semanalmente, com inúmeras preocupações dele por eu ter me tornado “alcoólatra” (com dois chopes por quinzena); minha réplica era nos maços de cigarros que ele consumia incessantemente. Havia um novo apartamento na Figueiredo Magalhães; não sei explicar como, a casa até podia ser outra, mas o ambiente, o clima, era literalmente o mesmo. Agora com uma gataria danada e Dona Magda, digna e merecidamente aposentada. Não havia mais o mau-mau das tardes, mas os lanches e a conversa fiada resistiram bravamente. Deu tempo de ver as tragédias aéreas, o Pan e lá estava de novo, firme e forte o velho Fred quando perdi meu pai, um ano e pouco depois. Se eu tivesse crença, iria achar que estava tudo programado: as dores surgiriam no meu caminho, e caberia ao Fred estar do meu lado, do jeito que era naquela já distante infância. Veio o fim do ano e mais uma mudança: enchi o saco dele para que comprasse um imóvel. Fiz as simulações eletrônicas, mostrei os planos, ele se animou, embora visse com maus olhos se tornar um tijucano depois dos quarenta anos, coisa que bem entendo. Fiz uma viagem ridícula perto do Natal, me despedi para sempre de uma mulher ridícula, virou o ano e, depois de dois meses, finalmente fui conhecer a nova casa que viria a ser a minha velha casa de sempre, a casa do meu amigo, uma casa tijucana. Que fosse noutro bairro, com a vista de outro morro, desimporta: era o quarto, o computador ligado no simulador de vôo, a televisão fincada no History Channel. E muita fumaça de cigarros convencionais. Rimos, rimos, falamos de coisa séria, Fred agora defenestrando o PT.

- Cara, tou com uma dor no braço que ta ródia.

- Pois é, eu que sou alcoólatra, né? Que tal ver isso no médico logo? Pode ser alguma coisa do coração.

Mais tarde, descemos para lanchar no Bob’s. Meu amigo Leo, que muitas vezes me traz de volta a alegria da juventude, estava contente: acabara de pegar um táxi novinho em folha para trabalhar, era seu primeiro dia. Me ofereceu uma carona, chamei-o para o sanduíche. Leo e Fred fanáticos por aviação, bom papo na certa. Durou uma hora de conversa e ainda fizemos pilhéria de nós mesmos quando demos carona ao Fred, que estava a cinqüenta metros de casa. Eu não tinha a menor noção de que era a última vez na vida em que estava compartilhando lazer com meu velho amigo de infância.

A dor no braço exigiu uma internação que durou quinze ou vinte dias, até que os malditos cigarros nos derrotaram para sempre. Nossa despedida foi muda: nem adeus, nem até breve. Derrota injusta, muito antes da hora e imperdoável para quem já tinha ficado sem família e sem Xuru.

Daqui a pouco isso, o nocaute, vai fazer um ano. Os trinta anos de antes eu lembro como nunca. São muito maiores do que a derrota recente.

O disco da velha banda com gnomos na capa não para de tocar no pensamento.


Paulo-Roberto Andel, 25/03/2010

3 comments:

NO BUTECO said...

Olá meu camarada. Nossa, já faz um ano? Apesar de tê-lo visto apenas 3 vezes foi o suficiente para ver como especial era. Logo de prima, apenas eu vc e ele esperando o pessoal do cícero no chopp no Leme e rimos a balde.
Tem coisas que ainda não cnsigo acreditar como simplesmente acabam nas nossas vidas. Coisas de quem é simplesmente humano, mas infelizmente acontecem. E foi com ele.
Que esteja em paz.
Abs

Lau Milesi said...

"Haja hoje para tanto ontem" , como dizia o grande Paulo Leminski". Amigo de verdade deixa um vácuo, "memories" e muita saudade. Posso avaliar o que você sente. E como...

O Fred deve estar feliz de te ler.

Um beijinho pra você, Paulinho.

Elika Takimoto said...

Queridíssimo Paulo,

Nelson acabou de me ligar, lá do meio do mar emocionadíssimo pedindo para que eu entrasse no seu blog e lesse "Fred". Disse ele que não comentou porque sei lá. Nem conseguiu.

O texto é lindo lindo lindo, mas retrata bem o espírito Highlander-kamikase masculino. Tudo acontece sempre com os outros. A vida já é tão curta. Tudo é tão breve e mesmo assim tem gente que parece que quer ir antes...

Tantos meios de ficarmos mais um tempo por aqui curtindo todo esse barato no meio dessa confusão e vcs homens insistem em não colocar o capacete.

Colesterol vai bem? Triglicerídeos ok? Exame de próstata em dia? Peso sob controle? Exercícios pelo menos 3 X por semana???

Hum hummmmm Hum hummmmmm

Um prazer sempre relê-lo.

Anda sumido da minha casa.

Saudades e saiba que não perco vc de vista.