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Sunday, May 12, 2024

Jazz na beira da Baía

SAÍMOS do trabalho às cinco da tarde num outono calorento, deixamos a Praça Tiradentes e fomos até o Largo da Carioca, um percurso de 400 metros. Seguimos torcendo para que os bares cheios de cerveja e gentes ocupem a veterana rua cariocas hoje abarrotada de portas fechadas. No Largo fomos direto para a Banca do Vavá, o velho Olivar, livreiro politizado e consciente que há anos roda milhares de livros na porta da Estação Carioca. Livros, livros e CDs. Muitos clientes, claro, e também gente no vaivém que não está nem aí pra isso. 

Eu estava com fome. Eu sempre tenho fome. Gosto de comer. Sou gordo porque não posso mais praticar os esportes que gosto, mas também porque adoro comer. Muitas vezes fiquei sem saber se conseguiria almoçar ou jantar, por isso valorizo cada prato de comida. Então fomos ao Gaúcho, esquina de São José com Rodrigo Silva, desde 1935 na labuta. Tudo lá é gostoso demais. Pedi o pão com linguiça e molho, legítimo cachorro quente. Antes, eu e Jocemar pedimos dois bolinhos de carne. Bar cheio, todo mundo fica em pé, cotovelos se tocam, parece outro Brasil. Um barato é que hoje há grupos de mulheres em pé no botequim, e aí percebo como o machismo prevalecia nos bares da minha juventude: antigamente não havia nada disso. 

Fomos embora para o jazz, mas somente duas quadras depois Jocemar percebeu que havia esquecido o celular no balcão. Senhor! Saiu correndo, encontrou o aparelho, voltou feliz da vida e comemoramos, porque o telefone hoje é praticamente a nossa loja virtual - isso, claro, sem contar os dois barões de prejuízo caso não tivesse achado. Enquanto ele correu, eu fiquei parado olhando o passado, quando existia a Choperia do Papai que muito frequentei com colegas do passado. Logo ao lado tem o antigo Jirau que, ao que tudo indica, voltará atraindo as gatinhas da Cândido Mendes e Estácio. A velha UERJ que escorreu pelo tempo, mas que ainda alimenta lembranças belas - os tesouros da juventude. 

Um barato da Praça XV: skate. A rapaziada voando sobre as rodinhas. Sempre quis ter um quando era garoto, mas o preço era caro, então continuei pela praia jogando bola. Gosto das manobras, dos riscos, é um esporte com ousadia. E ainda tem um super skate instalado ali. Pena que o grande movimento de gente dos anos 1980 e 1990 não existe mais. A Praça ficou muito mais bonita, mas se esvaziou. Em trinta ou quarenta anos as coisas mudam muito. Nada das velhas roletas em cabines de madeira escura, nem do monte de trabalhadores vendendo amendoim nas filas - aquecido na latinha -, nem do cheiro de peixe, muito vendido ali por ora. Alguém se lembra disso? 

Aos pés da Baía de Guanabara, bem ao lado da loja de skatewear e da lanchonete - e também da Estação do VLT -, acontece o Jazz nas Quartas, dois sets a partir das sete da noite. O Guga Pelliciotti, excelente baterista com larga rodagem jazzy (Pedra do Sal, Cinelândia). Conheci o Vitor pequenininho e hoje ele é um senhor guitarrista. Por fim, o baixo elegante e preciso de Fábio Brasil. Jazz de respeito, alternando standarts com temas brasileiros da bossa e da MPB, de "Feira de Mangaio" a "A night in Tunisia". Ou seja, tudo que bons ouvidos musicais precisam, com entrada franca e lanches baratos - não deixem de ir. Eu precisava de uma Pepsi gelada e pedi; logo lembrei da minha amiga amada de anos, que conheci por uma foto, achei linda e o velho Xuru me deu um safanão - e depois fomos os três jogar sinuca aos pés do Siri da Ilha num domingo à noite no fim do século passado - tudo passa a 100 km/h. 

Quase oito da noite. Baixo, bateria e guitarra vão duelando maravilhosamente. O jazz é bom. O jazz liberta. Uma garota bonita escuta o show e escreve num caderno - ou seria uma agenda? Um casal namora harmoniosamente enquanto espia a apresentação. Alegre ao extremo, o Jocemar comemorava merecidamente a salvação do celular, que é praticamente a filial da nossa loja. Eu não tenho nada para comemorar, mas posso dizer que tive uma noite de quarta-feira de paz - me senti até gente, como não fazia há tempos. Venham à Praça XV ver e ouvir jazz nas quartas, a vida fica melhor. 

@p.r.andel

Saturday, May 11, 2024

Sabe?

Sabe aquela pessoa que te escolhe para falar de todos os problemas mas que, quando é a sua vez de falar, nunca tem tempo, está com pressa ou diz que você precisa apenas "levantar o ânimo" ou "ser positivo"? Não quero te decepcionar, mas ela não é tua amiga. Sua única intenção é se livrar de um problema, que no caso é você. Lembre-se disso. 


Um garoto, uma bola azul

Passei pela Pedro Lessa a caminho de um evento por volta das cinco e meia da tarde. Começo de mês, perto do Dia das Mães - cadê a minha? -, pelo menos a Banca do André estava cheia de gente na happy hour, uma das poucas saudades dos meus tempos de escritório. 

As pessoas bebendo em pé, em volta de mesinhas circulares cheias de long necks, rindo e conversando, salvando um pouco a imagem perturbadora que o Centro agora tem, de lugar abandonado e vazio. Do outro lado, o gourmetizado Amarelinho também tem sua turma. A partir daí, desolação. Não, na Santa Luzia tem um churrasquinho onde brota gente - e garotas bonitas paca. 

Ainda a Pedro Lessa. Quem diria que ali existiu um império de música por anos, com CDs espetaculares e muita movimentação? As bancas de metal continuam lá, completamente vazias. Há três anos, acho, ou menos, comprei um Morphine importado, a banda de rock jazz "sujo", underground, liderada pelo antológico Mark Sandman, que morreu em pleno palco se apresentando. Aquelas bancas metálicas vendiam sonhos: rock, jazz, bossa nova, sambas da antiga. Tudo passou. Ainda bem que tenho minha lojinha. 

Depois da turma bebericando, uns dez metros adiante, havia um garotinho, provavelmente filho de alguém ali. Dez anos de idade. Baixinho, magriço, vestindo uma camisa 9 amarela em algodão, bem longe das marcas oficiais. Será que era uma camisa da Seleção? Não sei. Um garotinho de menos de um metro e meio, de bermuda e chinelos, com sua bola de futebol azul escura. Ele e mais ninguém. Dava uns passinhos, chutava a bola num muro da rua, ele voltava e repetia, depois tabelava. Tudo sozinho, ele e mais ninguém. 

Eu me identifico porque apesar de já ter 56 anos de idade, nunca deixei de ser um garoto de dez no melhor que isso pode oferecer. Futebol, lanche, descanso e tudo, coisas que a gente vivencia quando criança da melhor maneira possível, e que carrega para sempre. Eu tinha dez anos em 1978 e o futebol me deixava louco: queria jogar na praia, na vila perto de casa, queria ouvir futebol na Rádio Globo, juntar figurinhas, jogar botão e esperava ansiosamente pela revista Placar toda semana - ela trazia escudinhos que você podia recortar para ornamentar seus botões.

O menino e sua bola azul. Ele toca para o fundo de um gol imaginário, faz da Pedro Lessa um Maracanã que ninguém vê. Comemora sozinho, não há torcida nem abraços, sou o único e silencioso espectador. Mesmo sozinho, ele se diverte. Um garoto com sua bola de futebol pode ser o mais feliz do mundo. É o que ele faz ali e me comove - é que eu também era daquele jeito dele quando eu tinha futuro. Lembro de tanta coisa em instantes: quem fui, o que sonhei e vivi. Chutei muita bola sozinho na vila, bem em frente ao colégio onde estudei, entre confusões, de 1977 a 1980.

[Pensei em oferecer meus serviços de ex-bom jogador ao garoto, mas desisti

Sigo a caminho do evento. Estou prestes a atravessar a rua México. Olho para trás novamente e, enquanto a Banca do André dita a festa do pedaço, o futebol continua vencendo. É o menino solitário em seu mundo particular, tabelando e jogando. Sozinho, ele tem o Maracanã e o Morumbi. Não importa quem não está, mas sim o que virá. Continuo voltando 45 anos no tempo, quando eu sonhava em ter uma bola adidas Tango, até hoje a mais linda de todos. E sonhava em ter alguém para jogar dupla de praia domingo. E ficava horas e horas na praia. É por isso que entendo a nobreza daquele jovem magriço, porque mesmo com 70 quilos a mais, o futebol tem sido meu remédio, oxigênio do dia a dia, alívio contra as piores causas. 

Sigo para o evento, o tempo não para. O garotinho, meu amigo desconhecido, insiste nas tabelas com o muro. Ele joga por ele e por mim, sem saber. O futebol insiste, e isso enche meu coração de esperança.

@pauloandel 

Sunday, May 05, 2024

And then there's just one

É só uma música. Bonita a música. Eu não a escutava há anos. Vi uma postagem e me lembrei. Ela me leva há 41 anos. Nós escutávamos direto na casa de Fred, o velho Fred que faz tanta falta. A nossa vida era futebol, botão, admirar garotas que só tinham olhos para caras cinco anos mais velhos do que nós. A nossa vida era a Lanchonete Gordon, o Cinema Condor, a trave do Juventus pra jogar dupla de praia. Era Kiss e João Gilberto, escotismo e traquinagem. Nada pode ser mais Copacabana. E quando escutei novamente a música, voltei os 41 anos no tempo e revi a sala de Fred, o toca-discos, a cama com gaveta cheia de revistas de mulher pelada, a TV grande e a bicicleta que ele quase nunca usou. Isso foi outro dia, eu lembro dos rostos e dos sorrisos, mas alguma lei do retorno fez com que exatamente agora eu seja o único sobrevivente daqueles dias, para não contar a história - apenas dividi-la de alguma forma. Nós escutávamos "Ballad of a big", fazíamos sanduíches baratos, quase não tínhamos dinheiro, mas achávamos até que podíamos ser adolescentes felizes. Fred se foi há 15 anos e isso é assustador.

Thursday, May 02, 2024

One more day

É o fim do dia. O fim do feriado. 

Dia do Trabalho. Do trabalhador? Não sei. São muitos trabalhadores humilhados diariamente num país de empresariado com tendência notoriamente escravagista. 

Eu trabalhei em casa. Por horas. Ganhei um sanduíche. Eu também sou um trabalhador humilhado, só que admito. A maioria esconde ou acha que é vontade de Deus. 

Ah, falando em trabalho, volto a 2017. Passou a maldição da reforma trabalhista, que destruiu sindicatos e condenou milhões de pessoas à morte profissional. Eu ainda era trabalhador CLT e convivi com alguns imbecis que defendiam aquela loucura. "Vai gerar muitos empregos". Estão esperando até hoje. Idiotas vassalos do patronato.

2

Meu time ganhou o jogo. Tá bom. 

Falei com a Marina. Tá bom. 

3

Ouvi TV por horas. Conversei com amigos pelo WhatsApp. Não estou bem, mas ontem foi pior: eu quase desmaiei e por um único segundo ou dois, achei que fosse morrer cedo demais. Por incrível que pareça, não me machuquei: os LPs me aguentaram. Estou bem agora, não como gostaria. 

4

Soube que houve um acidente horrível pertinho da minha UERJ. Um ônibus verde passou por cima de todo mundo. Que dor. 

Era feriado e foi mais do mesmo. Teve arrastão, assaltos e confusão. Teve gente inocente morta, assassinada por nada, uma criança inclusive. Nós somos cada vez mais uma sociedade doentia, onde a vida humana não tem valor algum. 

Vi também vídeos de bichos. É uma das minhas diversões. Elefante, coruja, cachorro, papagaio, jacaré, leão. Eles são maneiros. 

5

Eu pensei em mandar três ou quatro mensagens para pessoas desaparecidas, mas desisti porque não valeria a pena, por dois ou três motivos. 

Eu pensei em tanta coisa que se perdeu. Para sempre. E outras, tão distantes mas tão presentes agora. 

6

Acabou o dia, o feriado. Na cidade nada mudou para melhor. O desconforto é a regra. Menos mal que, no meio da semana, ele quebra o ritmo. 

7

Não desrespeito quem acredita no poder da palavra para superar as dificuldades, quem acha que é preciso "sempre pensar positivo", ok. Mas será que essa mudança de postura realmente mudaria a vida das pessoas? Será que todo mundo que sofre demais só pensa "negativo"? É um caso a pensar. 

8

Minha casa está feia, suja e bagunçada. Não importa. Eu só queria que ela fosse minha de verdade. É o único bem material que me interessa. 

9

E agora que o feriado já é passado e a madrugada está terminando, olho para a janela, encontro as primeiras luzes que ainda vão clarear o dia e me lembro de 1987, quando eu saía à essa hora para o Forte de Copacabana a pé. Tinha dezoito anos, era um garoto humilhado pelo sistema, atravessava o bairro para me apresentar à "pátria". Um dia me livrei daquilo tudo, mas não para sempre porque as lembranças de 37 anos continuam muito vivas. 

O serviço militar não me incomodava em nada. Ouvir berros, impropérios, conviver com bandidos, realizar tarefas estúpidas, sim. Pior ainda, atravessava o bairro a pé, já testemunhando toda a decadência que ainda iria abraçá-lo de maneira mortal.

Aquele sentimento de medo de sair continua. O bairro felizmente sobreviveu, apesar dos seus inúmeros problemas. 

10

"Moonlight/ Só o coração, batendo/

Calado, parando, mordendo/ 

Corpo fechado, destrincando/ 

A noite passa, e a minha é um tormento". 

"Moonlight Paranoia" é uma versão de Lobão para uma música antiga do Aerosmith, gravada para o disco "O rock errou". Acho a versão bem melhor do que a original. 

11

E daí que aquela turma de gente falsa se calou e sumiu? E daí? Foi muito melhor assim. Gente falsa, oportunista e interesseira só tem um único lugar bom para estar: longe. 

Como se fosse um aviso divino, na mesma hora da lembrança, ligam o sistema de luz do restaurante perto, faz um barulho às seis da manhã e some. 

Talvez ainda dê para um breve cochilo das seis e meia às oito. Vamos tentar.

12

O sol é para todos. 

Aos poucos, todos despertam. O rico, o pobre, o mendigo, a criança. 

As pessoas do Sul que passam tanta dificuldade.

O Brasil vai descendo a ladeira, a gente ainda não cai em si. 

Saturday, April 27, 2024

Andando na Lua

[parecia que a gente pisava na Lua, só que ela era feita de areia

A gente era de Copacabana. Pobre. No máximo o dinheiro do lanche e do ônibus. Então descobrimos o Leblon. Só para olhar as coisas, as gentes nos bares badalados, as garotas. Tinha um Gordon lá também, Cazuza vivia ali. Noutra vez ele estava em pé no balcão do boteco, acho que na Ataulfo de Paiva mesmo. Ele cantava alto, talvez um blues, todo mundo ria. Era o Rio. 

Muita gente ia pro Leblon. Outras galeras iam pro Baixo Gávea, que tinha uma grande concentração da turma ligada ao heavy metal e o rock também. No fim da noite, os ônibus circulares ficavam lotados. Claro, todo mundo descia em Copacabana, o astro-rei. Gente das coberturas, dos apês da Atlântica e dos quitinetes. Não havia distinção. 

Inventamos um jeito de prorrogar a noite. Simplesmente dava duas ou três da manhã, todo mundo tinha arrumado sua vida, a gente ia pra Delfim Moreira e voltava a pé até a Figueiredo Magalhães. Pela praia, na areia, na beira-mar.

Parecia que a gente pisava na Lua, macia, feira de areia fofa e clarinha. Vínhamos devagar, para saborear o passeio em pleno Atlântico Sul. De ônibus era mais rápido, só que a gente no fundo queria ficar mais tempo juntos, naquela beleza de visual.

Silêncio, silêncio, nossos risos. Às vezes éramos cinco, oito, doze, somente a gente e mais ninguém. O barulho misterioso do mar sereno do Leblon e Ipanema. Gente mesmo só tinha no Arpoador, mas não íamos até lá. Era virar geralmente na Francisco Otaviano e navegar Copacabana. 

Ninguém namorava entre nós. Garotos e garotas de quinze e dezesseis anos, na flor da juventude. Flertes havia, namoro não. Tinham inventado o negócio de ficar, que era um sucesso da época, então namorar estava careta por um tempo. Ninguém assumido também, só muito mais tarde. 

Engraçado que em Copacabana a gente não ia muito pela areia. É que o calçadão e a calçada eram verdadeiros acontecimentos, laboratórios humanos, gente doida de todas as regiões, idades e sexualidades. Não precisava de muita grana mesmo, tínhamos um programa de auditório a céu aberto, fervendo da Alaska até pelo menos a Santa Clara. Três da manhã, a turma do Juventus ainda fazia resenha na esquina da Domingos Ferreira. Deixávamos as garotas uma a uma em casa, nos despedíamos na porta do Shopping dos Antiquários. 

Geralmente era a pré-manhãzinha de domingo. Os Globinhos já estavam na luta, preparando a tonelada de jornais para serem entregues a domicílio. Meu amigo Silvio, gente boa, trabalhou lá até ingressar no TI. Ele era muito legal, nunca mais nos vimos. 

Sem tiro nem facada, a gente era pobre mas andava feliz pela areia da Lua de Ipanema. Foram dezenas e dezenas de vezes, até que, tal como diria o poeta Renato Russo, viramos pássaro novo longe do ninho - daí, voamos. 

@p.r.andel

Friday, April 26, 2024

Casilhas

Está lá há décadas, aos pés do Shopping dos Antiquários. Era o bar reserva da minha turma. Nosso aquário natal era o Sniff's, alguns metros depois, já dentro da galeria.

Uma vez ou outra o pessoal dos escoteiros passava lá. Eu, calouro de faculdade, voltava de Niterói e saltava na porta depois da baldeação, 996 até a Praia de Botafogo - Sears! - e 434 ou 435, o que viesse primeiro, até a Siqueira Campos.

Macedo, que foi nosso chefe no grupo e uma pessoa, digamos, excêntrica, gostava do boteco. Em certa ocasião, sabe-se lá por que, desandou a falar sobre a importância da higiene íntima masculina entre bebuns discutindo o jogo do Flamengo. Mais: declarou quantas vezes fazia a assepsia peniana diária e começou a questionar os interlocutores sobre suas estatísticas de combate ao esmegma. Entre risos, alguém foi curto e grosso: "Quer lavar pra mim?". Ele ficou put0 por alguns instantes, mas acabou rindo também.

Nosso grande ano pelo Casilhas foi em 1986 por dois motivos: a ascensão midiática do pagode com Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra e grande elenco, mais a Copa do México. Dois motivos para a realização de inúmeros churrascos, quase todos resolvidos na hora. Vai ali nos Supermercados Leão, compra carvão e bebida, alguém busque a churrasqueira, a carne a gente vê depois. Linguiça, asinha de frango, uma carninha e risos, muitos risos. Charlie, o também excêntrico gringo que morava nos arredores - e que desconfiávamos ser um mercenário de tanto que ia ao Paraguai, sem trazer qualquer muamba - passava pela calçada com uma estonteante negra de um metro e oitenta, para disparar seu brado clássico "OH, SCOTEIRRRRSSSSS". 

Um churrasco acabou triste, também por dois motivos, um à vista e outro a prazo. Copa do Mundo, Brasil e França. Perdemos nos pênaltis. Na outra Copa, ainda criança, eu nem fiquei triste pois achei que o time de 1986 seria o mesmo, uma doce ilusão. Muita coisa havia mudado. Mas a gente tinha confiança e o Brasil fez um partidaço, perdeu vários gols - Zico de pênalti, Muller na trave no último minuto da prorrogação (foi isso?) e acabou castigado. Ficaram as boas lembranças dos golaços de Josimar e Careca, Júnior no meio e o jovem Branco voando. Terminado o jogo, não teve samba. Continuamos comendo, mas com o silêncio que só o nunca mais proporciona. Nunca mais fizemos churrascos lá, nem em outro lugar. Anos mais tarde, aquela turma ia se separar para sempre.

Pelo Casilhas, volta e meia passava Ramiro, famoso não pedinte em situação de rua que vivia pela Siqueira Campos. Era silencioso e muitas vezes era visto picando papel, como se aquilo fosse uma terapia. Certa vez, do nada, acertou um soco num cliente na porta do bar e foi embora, sem falar nada. À primeira vista era uma agressão, mas a vítima era fascista. Vá entender. Mr. Éter, outro ícone das ruas do bairro, também passava por lá e bebia a purinha - na verdade era engambelado com água da torneira, o que pode ajudar a explicar sua longevidade depois de anos mergulhado em éter. 

O bar continua. João não está mais no balcão. Aos sábados tem calçada cheia, mesas e cadeiras - uma evolução - mais churrasco. Os personagens passam, mas certas coisas nunca mudam. É Copacabana, meu nobre. 

@p.r.andel

Thursday, April 25, 2024

saco cheio pacaraio

Estou de saco cheio.

Estou de saco cheio. 

Definitivamente estou de saco cheio.

Não é que eu tenha muito a perder. Na verdade, eu já morri. O que falta é finalizar. Enterrar, terminar, tchau e depois de duas semanas ninguém se lembra de mim ou de você.

Mesmo morto, eu estou com saco bem cheio é porque acho que o Brasil podia dar certo e o Rio de Janeiro podia dar certo. 

Mas não dá.

Eu tô de saco cheio de ver tanta gente chorando de fome na rua ou então desmaiada, maltrapilha, porque não tem absolutamente nada. Não aguento mais. 

Eu estou de saco cheio de ver em mil janelas anúncios de "vende-se" e "aluga-se quando eu não tenho onde morar. 

E estou de saco cheio de ver mil portas de lojas fechadas, com anúncios cujas negociações nunca mais vão se concretizar. 

Acabou. O comércio de rua de vários bairros do Rio simplesmente morreu. 

Eu tô de saco cheio do ódio, da ganância, da indiferença e do desprezo. Do desdém.

Eu tô de saco cheio do mau caratismo, da inveja, da maldade e da violência. Eu tô de saco cheio de ver gente arrogante, que se julga certa ao humilhar e menosprezar os outros, mas mal serve para respirar. Devia pagar imposto sobre respiração. 

E também tô de saco cheio de tanta gente boa que não tem uma mísera oportunidade de fazer coisas boas legais, progredir, porque todo esse sistema é opressor, excludente e humilhante ao extremo. 

Eu tô de saco cheio de andar na rua e ver o asfalto vazio. Sem carros como se fosse um feriado, simplesmente porque as pessoas não têm dinheiro pra botar gasolina nos carros velhos. E depois fico com mais saco cheio, porque minha única diversão é a televisão e quando ligo, ouço sobre PIB, emprego desenvolvimento, investimentos, mas nada disso coloca um único ovo a mais na minha geladeira vazia. 

Eu tô de saco cheio de ver as pessoas colocando as contas dos problemas alheios na falta de fé. Fulano sofre porque não tem fé, o fulano sofre porque não tem Deus, faça-me o favor. Será que Deus não tá olhando as pessoas que são humilhadas todo dia na SuperVia, nem está olhando todas aquelas que descem a Rua do Lavradio na hora do final do expediente pegando biscoito para almoçar, por que não têm dinheiro para outra coisa? Aí na TV o sujeito diz que biscoito recheado faz um mal horrível, mas não estão nem aí com o poder de compra do trabalhador, que obriga o biscoito. 

Eu tô com um saco tão cheio que até o meu time de futebol, que é uma das minhas pouquíssimas alegrias, volta e meia me dá aborrecimento e me tira a vontade de ir ao estádio, não pelo time em si, mas pelo que acontece em torno dele. Gente ruim, escrota, vendida, negócios escusos.

Eu tô de saco cheio daquelas pessoas que desaparecem e te deixam a ver navios, para depois te procurar quando precisam de alguma coisa pontual. Inclusive tem a eleição chegando e você já sabe: sempre tem alguém querendo te falar de um grande candidato, de uma grande maravilha, de um grande projeto que vai do nada a porra nenhuma e só serve para colocar gente empregada em gabinete. 

De forma alguma negando a importância da política das instituições, pessoal. É só uma constatação. Metade da Alerj está alinhada à milícia. Eu não sei nem dizer o que que tem na Câmara dos Vereadores, mas deve ser bem pior, vide o que fizeram com Marielle e Anderson. 

Eu tô de saco cheio de passar na rua e ver pessoas que acabaram de ter problemas, procurando ou a polícia ou a Guarda Municipal ou algum representante de instituição, e serem tratados com desprezo como se não fossem nada, porque ali não está um rico ali, não está alguém com sobrenome famoso, não está alguém que mora na orla do Rio de Janeiro e é assim que a maior parte das pessoas trata as outras nessa porra dessa terra, se você não tem dinheiro. Se você não tem um grande sobrenome e se você não mora na orla do Rio de Janeiro, você é ninguém. É exatamente assim que é uma parte das pessoas te trata. 

Nem a internet escapa. E aquele fulaninho ou fulaninha que nunca dá apoio a nada do que você faça, nunca compartilha nada contigo, não pergunta nem como você está durante anos, não interagem, mas basta que você publique qualquer coisa que minimamente a contraria e ela vem cheia de pedras, né? Como a figura defensora da moral e da ética contra a maldade do mundo. É hipócrita que chama essa gente, né?  Ou é escrota? 

Eu tô com saco cheio de ser um excluído na minha própria cidade. E o pior é que diante de toda essa porcaria que a gente vive, de toda essa miséria e de todo esse descaso, eu ainda sou privilegiado mesmo passando por momentos desesperadores. Isso não quer dizer que eu estou bem; pelo contrário, eu estou muito mal, mal como nunca estive. Quer dizer que tudo é uma merda muito pior do que se pode imaginar. 

Você no meio da tragédia, no prédio em chamas e a pessoa vem falar para você "seja positivo", "pense coisas boas" , "fique bem". 

Dá vontade de mandar tomar né? 

Você ali na merda sofrendo, chorando, desesperado, sem uma única mão que possa te ajudar, a pessoa vem e fala "fique bem". Vá pra puta que pariu. É melhor não falar nada e ser escrota raiz mesmo. 

É isso. Essa é uma quinta-feira de abril de um ano ruim e que provavelmente vai piorar. Não é negativismo, nem palavras atraindo "coisa ruim",  mas apenas analisando friamente a realidade dos fatos que aí estão. Por educação ou por conveniência, muita gente prefere varrer para debaixo do tapete e fingir que não existe. 

Ou você não conhece ninguém que atravessa de um lado do para o outro da rua, só para não passar num grupo de pessoas em situação de rua? 

Você não conhece ninguém que já tenha dito que nunca viu uma pessoa comendo lixo na rua? 

Pois essa a mistura da alienação com a indiferença, com descaso, com dane-se o outro. 

A cidade é maravilhosa na geografia e em parte dela.

A outra parte é só humilhação para milhares de pessoas, debaixo das miras de fuzis, com riscos de estupro de morte, tortura etc.

Chamam isso de democracia, tá bom? 

Chega, pessoal. Pouco importa se eu já morri ou não, ninguém se importa com isso. O que importa é que eu continuo de saco cheio vivo ou morto, eu vou continuar de saco cheio vivo o morto, eu nunca vou aceitar essa situação que vive a minha cidade, o meu estado e até certo ponto o meu país.

Fomos trucidados por nós mesmos. 

Fuzilados por aqueles que acham que a solução é destruir o outro e manter tudo como está. Resultado: o que era péssimo, piorou. 

Daqui a pouco esses espíritos de porco vão ressuscitar algum mito para tentar dizer alguma coisa que nos leva do nada a lugar nenhum. 

Ou melhor, pode até levar, né? Das investigações policiais até a quadrilha.

Tuesday, April 23, 2024

Pequenininho

Minha mãe me chamou de pequenininho por sua vida inteira. Era assim que ela me via quando eu era bebê, e a imagem ficou para sempre, mesmo quando eu já era muito maior do que ela. Sei como é: tenho amigos que conheci ainda crianças quando eu era adolescente, e agora eles são quarentões mas ainda os vejo como garotos. 

Pequenininho. É o que sou. O que sempre fui. Minúsculo.

Saio à rua, olho para os prédios e vejo como sou uma formiguinha perto deles. Mesmo quando passa um ônibus ou um caminhão grandão. Na barca da Praça XV eu me sinto minúsculo. 

Eu sou pequenininho. Um número. Um CPF pobretão e triste nessa terra de tanta mágoa e indiferença.

Minúsculo. Vejo tanta gente sofrer pela rua e não tenho capacidade de ajudar a mudar suas vidas. Tanta fome, tanto choro e olhares tristes, vazios, a caminho da fila do ônibus ou do trem.

Pequenininho. Sem pai nem mãe, sem perspectivas, com a lâmina de uma adaga me lambendo o pescoço e, até esta linha, sem saber como escaparei de tragédias. 

Sozinho. Pequenininho. Sem ninguém pra me ouvir, me acudir, nada. Se morro agora, só vão descobrir quando feder. E o pior: literalmente não tenho onde cair morto. 

O que eu tenho é meu corpo e minha cabeça, que sonha o impossível e cria coisas, todas elas sem valor comercial mas artístico algumas vezes. Minha cabeça pequenininha, cabecinha de Santo Onofre como dizia minha mãe. Ela me amava. Meu pai também gostava de mim, do jeito dele. Meu irmão acho que não gosta de mim, senão não tinha sumido. Agora ninguém mais gosta. Ninguém. Nunca fui tão ninguém. Tão pequenininho. A formiguinha na beira da pia com louça suja, sonhando com uma migalha de alimento. 

Acho que sou pequenininho porque a gente se ilude a vida inteira achando que cresceu, que amadureceu e envelheceu, que passou a fazer só coisas de adultos, mas a verdade é que somos crianças para sempre. O corpo muda, o tempo passa, mas à medida que envelhecemos, mais o passado é importante. O começo, os sonhos, as pequenas coisas, a minúscula e efêmera felicidade. A saudade. 

A cada dia eu penso mais na criança e no jovem que fui. Não é que fosse tudo bom, porque estava longe de ser, mas quando você é jovem sempre tem a perspectiva do futuro - a chance to heaven! 

Eu tinha carrinho, eu brincava e jogava bola. Eu lanchava e via desenhos com minha mãe - ela ficava muito feliz comigo, me chamava de seu tesouro, de seu reizinho. Ela gostava de mim mesmo. Nós éramos bem pobres mas tínhamos algum conforto - e eu tinha a praia, o futebol, o sonho. Às vezes lanchávamos no Bob’s. Quando o caixa estava bom, comprávamos pizza da Bella Blú. Eu jogava botão e tinha dias bons nos acampamentos escoteiros. Meus pais tinham 40 anos - eles eram jovens demais. 

Eu só conheci a felicidade pequenininho. Eu só tenho a esmola de felicidade quando me sinto pequenininho, parte de um mundo de fantasia onde não havia ódio, maldade nem ganância. Onde todo mundo podia ter uma casinha, roupas, uma televisão e comida. Onde ninguém vivia dois anos chorando todo dia em desespero pela miséria. 

Saiu um gol bonito na televisão. Brusque x Mirassol. O futebol me faz ficar pequenininho, feliz num Maracanã que já não existe.  No estádio eu sempre fui pequenininho, sonhando que todo mundo do meu lado era meu amigo. A mão do meu pai me puxando provava que eu era pequenininho. E como já se passaram quase cinquenta anos, certo é que sou um grãozinho de areia diante do tempo. Pobre, triste e desesperado grão de areia, procurando por uma casa que não existe, pessoas queridas que estão mortas e um futuro que sequer repete o passado.  


O goleiro que lavava carros

São três horas da manhã do dia de São Jorge e me lembro de Ortiz. Talvez só eu lembre porque talvez eu seja o único sobrevivente daquele tempo. Não, eu sou o único mesmo. 

Em 1976 meu pai tinha uma loja no centro de São João de Meriti. Chamava-se Heduwi. Eu sabia que as três sílabas do nome eram referência a três sócios, mas não cheguei a conhecê-los. Na loja trabalhei pela primeira vez, empacotando compras e fazendo contas. Eu tinha oito anos de idade. 

Aquele ano seria um dos mais tristes da minha vida por causa do Natal, mas não quero falar disso agora. A própria loja faliu no fim de 1976. Um duro golpe para meu pai. Justamente nos tempos de grande badalação da Máquina Tricolor, ele nem tinha como saboreá-la por tantos problemas pessoais. 

Eu ia para a loja quase todos os dias. Ela era grande e tinha várias coisas, de roupas a produtos capilares. Perto de nós, morava o Seu Dalmo numa casa bem grande e numa rua sem asfalto, lembro bem. Uma vez fomos visitá-lo e ele fez um sanduíche de queijo para mim. Foi a primeira vez que me lembro de ter visto um cortador de queijo. Seu Dalmo era legal. 

O Ortiz. Ele não tinha esse nome, nunca teve, foi uma invenção minha. Ele era atarracado, louro e usava uma faixa na cabeça, era igualzinho ao Ortiz, goleiro do Atlético Mineiro. Lavava carros. Ele sempre carregava uma lata bem grande de óleo Castrol GTX para carregar água, e ela era tricolor. Tudo era Fluminense pra mim em meus sonhos de criança, vivendo dias difíceis com meu pai falindo. Alguém disse que o Ortiz tinha sido um homem de posses, mas perdera tudo por causa do alcoolismo - imagine o meu desespero ao ver meu pai bebendo tanto por desgosto. Enfim, o homem que lembrava o goleiro ia e vinha quase todo dia com sua grande lata, que era seu instrumento de trabalho. 

A véspera de Natal de 1976 foi a última vez que estive na loja. Ela fechou de vez dias depois. Nunca mais voltei ao Centro de São João de Meriti, nem vi Seu Dalmo, nem o Paulista, um vendedor corintiano que estava sempre por lá e, claro, tirando uma onda com seu time. Foi no chaveiro do Paulista que vi pela primeira vez o escudo do Corinthians e achei bonito. Semanas antes, falecera o Sr. Santana, que sempre levava pão de queijo para mim e minha mãe. Também me lembro que a primeira vez que bebi um refrigerante tirado de máquina foi perto da loja, na rua da Matriz. Foi um copo de Pepsi, achei delicioso. 

São várias lembranças de uma época difícil da minha vida, mas que estão muito presentes. Sou a única pessoa viva das citadas acima, eu era uma criança. Ali perto, ainda nasceria uma garota bonita chamada Patricia, que eu só iria conhecer trinta anos depois, na faculdade, não na UERJ.

Ortiz, nunca mais. O que terá sucedido? Não sei dizer. Só sei que lembro e lembro. Eu sou o único sobrevivente dessa miscelânea toda de quase 50 anos atrás. Até quando, não sei.

@p.r.andel

Monday, April 22, 2024

A minha MTV

Em 1990, eu era um garoto estudante de faculdade, sem parentes importantes, vindo da própria capital, duro, cheio de sonhos e tentando buscar um emprego. 

Tempos difíceis: a Era Collor não perdoava ninguém. O desemprego e a fome eram regra. 

Mas aí apareceu a MTV Brasil na televisão e as coisas mudaram para melhor. Pra mim, melhoraram paca. Imagine: eu não tinha grana pra comprar discos, mas podia ver e ouvir N artistas. 

A linguagem do videoclipe, que já existia há vários anos, ficou definitivamente popularizada no Brasil. Ela já vinha do Fantástico e de programas como o saudoso BB Video de Eládio Sandoval e Billy Bond, mas a MTV veio como um furacão varrendo tudo, trazendo acesso aos trabalhos musicais de números artísticos que não tocavam em rádio no país, sem contar a multidão de artistas nacionais que passaram a aparecer na TV justamente por conta de seus clipes. Aquele pessoal descolado interessante divertido, gatas extraordinárias apresentando as atrações sempre com uma perna mais inclinada do que a outra. 

A MTV colou bem no Rio de Janeiro. Chegou praticamente junto com o Rock in Rio 2 e nos tempos das melhores edições do Hollywood Rock. Teve de tudo: Nirvana (com Kurt Cobain ensandecido), Alice in Chains, Red Hot Chilli Peppers e outros shows antológicos, como o auge de Titãs e Paralamas tocando juntos. Foi na MTV a explosão do Manguebeat com Chico Science e Nação Zumbi mais Mundo Livre S.A., e Skank, Pato Fu, Planet Hemp, Cidade Negra, Raimundos e grande elenco. E o Capital Inicial? A partir do Projeto Acústico MTV, a banda deu uma guinada tão grande em sua carreira que se tornou muito mais popular do que em sua primeira fase. 

O Acústico gerou registros espetaculares de nomes como os próprios Titãs, Paralamas, Cássia Eller, Lobão, Marcelo D2 e outras feras. 

Apesar da sua audiência modesta, a MTV formava a opinião definitivamente e ditava as regras. Se nem todo mundo ouvia, todo mundo sabia do que se tratava. 

À medida que fez a travessia do século XX para o XXI, a MTV aos poucos foi diminuindo a sua cota musical e fazendo mais programas de auditório. De toda forma, eles eram sempre interessantes, fossem pelos debates, pela vanguarda e pela quebra de paradigmas, vide o beijo gay ao vivo no Beija Sapo, atração comandada por Daniela Cicarelli. 

Em sua última grande fase a MTV ainda revelou um monte de jovens humoristas para o país, numa safra de nomes como Marcelo Adnet, Dani Calabresa, Paulinho Serra e mais um monte de gente com programas interessantíssimos no canal que ainda tinha a música, mas não como o principal carro-chefe. Depois, atolado em dívidas, o grupo Abril liquidou o canal no Brasil por questões financeiras. 

Tempos depois, entrou uma nova MTV no ar, mas ela mas ela não tem nada a ver com o espírito da MTV Brasil original. Só tem o nome. Vida que segue. 

O que deixa saudade mesmo é aquele tempo de grandes bandas, de VJs fabulosos - Marina, Thunderbird, Gastão, Sabrina etc -, de programas divertidíssimos e de muita informação musical que hoje se perdeu no mundo da internet, né? Onde tudo é diluído e para você achar determinados conteúdos, tem que fazer um verdadeiro trabalho de arqueologia.  A MTV não, ela te dava tudo de bandeja. Vinte anos de música, sorrisos e vanguarda. 

Wednesday, April 17, 2024

Disappointed

Public Image Ltd., 1989


What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?


Promises, promises

Old tired, worn out second hand sentences

One thing, with you is certain

You're a really sad person, so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


You, you're just a really bad person

Who won't, you won't, listen to anyone

No not you, with those half moon eyelids

Just babbling on, your useless defenses, so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


This erratic haphazard, fluttering

This toing and frowing, like a confused moth

The collusion, illusion, it's all ad infinitum

You're a really sad person, you're really so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


Fools and horses

Running their courses

And brow beaten down

Like dust on the ground


You cheat easily, like sweet charity

And all of the bastards, the world despises

Springing surprises in newer disguises

You cheat easily, like all charity


Tuesday, April 16, 2024

cotidiano

 

os artistas tentando

esculpir amor 

frente

ao mundo em chamas 

com cheiro de 

carne queimada,

solidão e fracasso 

- os artistas insistem! 

Sunday, April 14, 2024

Janjão

(Publicado originalmente em julho de 2022)

Há muitos anos, mais de vinte, eu saía do trabalho a pé para casa e Seu Janjão me cumprimentava com um oi, um aceno de mão ou algo simples. Ele morava com a família num sobrado a metros do meu prédio, e lá ficava com sua cadeira na porta. Praticamente de segunda a sexta, todas as semanas, todos os meses em fins dos anos 1990. Nunca falamos nada além dos cumprimentos, mas eu achava legal que um vizinho me reconhecesse e se preocupasse em dar um oi. Parecia coisa boa das cidades do interior. Ele me lembrava o Seu Madruga, ahaha.

Era uma época difícil: meu pai parou de andar, o mundo desabou mais uma vez e lá estava eu sob os escombros. Amigos deram as costas, a injustiça era a sina. Ia e voltava do trabalho para casa. Tudo era racionado para que pudéssemos sobreviver (nada diferente de agora, exceto por não ter mais família). A internet estava começando e ainda viria muito ódio pelo caminho. 

Muitas e muitas vezes eu vinha pelo caminho amargurado, triste, mas perto da portaria o Seu Janjão acenava e eu me sentia melhor. Eram dias em que as pessoas basicamente só falavam comigo por motivo de trabalho. Pelo menos eu tinha a MTV para me distrair. Dureza. 

Em algum feriado em casa ou folga repentina, alguém bateu à porta numa tarde de sol. Não esperava ninguém, achei estranho, fui espiar. Era um garoto, pedindo colaborações para o velório do Seu Janjão, que morrera de manhã. Fiquei paralisado. Peguei a carteira, dei o que tinha, o rapaz agradeceu e foi batendo em outros apartamentos. Passei o resto da tarde pensando naquele senhor educado, que nunca soube meu nome mas fazia questão de me cumprimentar. Aquilo me entristeceu profundamente.  

Dias depois, voltei à rotina de trabalho. Vinha da Rua do Senado, pegava o último trecho da Mem de Sá e logo o começo da Rua de Santana. Perto de casa, nenhum aceno ou oi. Não havia um cumprimento. Perdi para sempre o amigo que se preocupava comigo, mesmo que sequer tenhamos sido amigos de ofício, claro. O que importava era a generosidade, o apreço, o velho sentimento de fraternidade. 

@p.r.andel

Para voltar no tempo

Neste exato instante eu gostaria de encontrar com meu amigo Fred e partir para o supermercado, não qualquer um, mas Supermercado Leão. Lá chegando, a gente compraria pão francês, Coca-Cola ou Pepsi - dependendo do Fredão - e pasta de pão Alouette de ervas finas, tudo para fazer sanduíche quando chegássemos na casa dele e, depois, jogarmos um carteado daqueles de gastar à tarde, quando você tem 18 ou 19 anos de idade e, claro, não tem emprego nem ocupação afora o estudo. 

Queria também que o Gustavo nos ligasse e, de repente, aparecesse  com aquela sacola cheia de discos que ele carregava, LPs maravilhosos e capas antológicas, e tome Kraftwerk, Rolling Stones, Level 42, Yes, Genesis e tudo mais que você possa imaginar. 

Eu queria também estar na casa do Ricardinho bem tarde da noite, enquanto ele Fred se digladiassem numa batalha de Atari - Enduro, Pitfall, Space Invaders. Nunca joguei nada, sempre fui uma pereba em diversões eletrônicas e nem participava, mas gostava de ver. Sempre gostei. Geralmente a gente saia de lá à meia-noite, talvez uma da manhã e vinha solitariamente pela Santa Clara, até entrar na Boca do Lobo, ganhar o Bairro Peixoto deitado em silêncio esplêndido, depois voltar para casa. 

Acho que eu queria mesmo era estar por volta das seis da tarde de sábado no Bar Sniff’s, depois da reunião dos escoteiros. A gente sempre se reunia por lá para bater papo, trocar ideias. Os frequentadores mais velhos sempre nos escutavam e nos davam atenção, a gente ria com as galhofas e piadas típicas dos anos 1980 e ficava ali até nove ou dez da noite, nem saía, era nossa diversão muitas vezes. 

Sei lá, eu queria agora descer e caminhar tranquilamente pela Figueiredo Magalhães até chegar na praia, depois caminhar ao lado do Atlântico Sul até chegar na Francisco Otaviano, subindo toda e encarando as pedras do Arpoador. Quantos poetas fizeram isso, né? Cazuza deixou isso registrado em “Faz parte do meu show”. 

Há uns 15 anos ainda tive chance de pegar os últimos momentos do Cirandinha, lanchei lá várias vezes com colegas dos tempos de escola. A comida era impecável e o ambiente refinado. Muitas senhoras marcavam chás para se reunir e conversar, enfim, encontrar as velhas amigas. A gente se sentia bem em casa, seria bom estar lá agora. 

Quer saber? O que eu queria mesmo, mesmo, bem lá no fundo, era ser bem pequeno para passear com meu pai quando ele me dava a mão. A gente caminhava pela rua muitas vezes. Nós não tínhamos destino, a gente simplesmente saia de casa, dava uma volta por algum lugar do universo Copacabana, lanchava alguma coisa e retornava. Foi assim que eu descobri os nomes das ruas, dos prédios e dos lugares. Geralmente era aos sábados à tardinha. E quando você tem a mão do seu pai para segurar, viver é muito mais fácil. 

Querer tudo isso é impossível. É voltar ao passado, ressuscitar quem já se foi e ter a verdadeira chance de voltar para casa. Eu sei que é impossível, que viver é melhor que sonhar, mas numa noite melancólica e silenciosa talvez só o sonho possa me estender os braços. 


Sunday, April 07, 2024

Me dá um Barão?

Eu era garoto, tinha uns dez anos. Certamente minha vida foi melhor do que a de 90% das outras crianças, mas esteve longe de ser fácil. 

Estávamos muito pobres, meus pais batalhavam demais. 

Surgiu o Barão, em meio à inflação. Era um sonho. Eu quero um Barão. Você me empresta um Barão? A nota de 1.000 cruzeiros estrelada pelo Barão do Rio Branco. 

Foi uma das cédulas mais queridas pela população, embora a maioria não tivesse nada.

O Barão me traz à tona um tempo distante, longe de ser fácil mas que me dá saudade. Não é saudosismo, mas saudade. É que essa coisa dos sete aos catorze anos passa com velocidade astronômica, a gente não aproveita direito e, quando vê, tudo voa longe. 

No tempo do Barão, meu grande sonho era o lanche no Bob's da Domingos Ferreira. Às vezes meu pai me levava lá. Minha mãe preferia o da Avenida Copacabana, ao lado do Externato Santo Antônio. Tudo se foi. 

Ou ganhar um time de botão cristal Gulliver. O do Fluminense era lindo, verde vivo, com o escudinho envolto por um círculo amarelo. Wendell, Miranda, Moisés, Edinho e Carlinhos; Pintinho, Cléber e Rubens Galaxe; Doval e Zezé. Faltou alguém. 

Ou ganhar uma linda bola de couro com 32 gomos e me sentir um craque feito aqueles que apareciam no "Gol: o grande momento do futebol", programa da Band apresentado por Alexandre Santos, só com gols, gols e gols maravilhosos. Tinha Ademir da Guia, Leivinha, Ailton Lira, Edu Bala, Sócrates, Palhinha, Serginho e também as feras do Rio: Luisinho, Tita, Nunes, Cláudio Adão, Roberto, Zico, Luisinho das Arábias. 

Sonhar com os times de vidrilha da loja de brinquedos Dom Pixote, que ficava na Santa Clara, bem em frente às Massas Suprema com seus inigualáveis pasteizinhos. 

Outro sonho de garoto: ir à Kayat Sports da Figueiredo Magalhães (que não sei ao certo se era do Seu Carlson Gracie ou não) e comprar o escudo tricolor bordado, lindo, mais um número 5 verde, do Edinho, daqueles de grudar na camisa passando ferro. Com o escudo e o número, era só comprar uma camiseta Hering branca e fazer a camisa de futebol mais bonita do mundo. O problema era que dinheiro não era nada fácil e conseguir um Barão...

A gente jogava bola na vila, quase todo dia. Na praia também, até o início da noite. Quando escurecia, não dava pra ver mais nada. Ver a praia de Copacabana hoje toda iluminada é engraçado: os mais jovens nem sabem que a iluminação só começou em fins dos anos 1980, talvez 1988 se não me engano. 

Morria de medo de tirar uma nota vermelha. Podia perder a bolsa de estudos. Não podia errar. 

Sempre que dava, via desenhos animados com minha mãe. Flintstones, Pepe Legal, Papa Léguas, Corrida Maluca. Até hoje vejo no YouTube. Só falta a mãe do lado. 

[A dor de ser órfão é tão grande que não há como descrever, apenas sentir

Às vezes a gente jogava botão no Shopping dos Antiquários, debaixo da escada rolante. Só fiquei chateado um dia, quando os amigos não queriam que eu participasse do campeonato porque "ganhava tudo". Eu podia até ganhar, mas minha grande alegria era jogar. Até hoje me sinto bem só de mexer nos botões em casa. 

Quando tinha grana em casa, minha mãe fazia Strogonoff e bife à rolê. Nos tempos de maré baixa, carne moída com arroz, ou asinhas de frango. Pouco importava: com ela e meu pai em casa, eu acreditava até em felicidade plena. 

@pauloandel

Saturday, April 06, 2024

A alma aflita das ruas

Ó, seguinte: dentro do futebol tem uma turma que me conhece, já fiz bastante coisa. Agora, fora dele, meu anonimato é garantido. 

Não faço parte de correntes, de ondas ou de estilos; não tenho amigos em postos-chave da mídia para me exaltar; não tenho grana para a devida promoção; faço lançamento de chinelos e bermuda confortável. E também não me identifico como novidade porque já sou velho para isso.

O que faço é escrever. Faço porque gosto, agora sem precisar me preocupar com o editor muquirana, que pretende cortar páginas para economizar papel. E escrevo o que quero. Este livro, por exemplo, nasceu do incentivo do mestre Luiz Carlos Lacerda a postagens que fiz por aqui, contando pequenas histórias de pessoas humilhadas em meio à pandemia - gente que chora de fome, que não tem casa, que só tem a mão espalmada para ter o que comer, gente considerada invisível por muitos. E tem morte, dor, lágrimas, sexo gay e hetero, mais uma série de reflexões sobre o fato de sermos eternas crianças, mesmo estando tão longe disso. 

Enfim, para quem quiser conhecer parte do meu trabalho fora do futebol, este é meu livro mais recente. Tenho um blog há 18 anos no ar, mas banido aqui pelo Facebook sem justificativa plausível. Eu não sou nenhuma promessa da literatura do Brasil, não trago a mulher/homem amada(o) em três dias e, com exceção do próprio Bigode (que fez uma maravilhosa apresentação do Alma no Correio da Manhã), o resto não deu um pio sobre. Meu livro é humilde e independente, porque não aguento mais pagar 50% de consignação para quem não faz nada por ele. Mas desancar um livro sem lê-lo fica para os idiotas e ressentidos - somente eles têm capacidade para isso. 

Se você tem curiosidade sobre a degradação do Rio em Copacabana e no Centro durante a pandemia, que é a minha própria degradação também, taí. É barato e vai pelo Correio para todo o Brasil. 

Blog otraspalabras. http:// paulorobertoandel ponto blogspot ponto com. 

Encomendas WhatsApp 21 99634-8756.



Wednesday, April 03, 2024

Copacabana sussurra

VOLTEI a Copacabana. Eu sempre volto. Na verdade meu coração e espírito sempre navegam por lá. Mesmo trinta anos depois de ter sido expulso pelo crime de ser pobre. Mesmo depois de tudo. Eu vivo intensamente as ruas abandonadas do Centro e de outros bairros, mas de alguma forma sempre estou em Copacabana. Então peguei o metrô à meia-bomba na Cinelândia e fui tranquilo para a Siqueira Campos. É sempre melhor descer pelo Aterro, ver o lindo recorte da natureza que vai até o Pão de Açúcar - a cidade tão bonita mas usufruída por tão poucos -, depois entrar no Túnel Novo e se sentir num verdadeiro túnel do tempo - eu brincava disso quando era criança - até fazer a gloriosa curva à direita que desemboca na Barata Ribeiro. Acontece que eu tinha tempo curto para chegar, então o metrô é uma garantia - cara. Queria chegar a tempo no mitológico sebo L. O. Matta, que é muito bom, com excelentes discos - as atendentes são maravilhosas, o dono não. Deu tempo de pescar um João Gilberto, era o que bastava. João foi de Copa, morou com João Donato perto da Cardeal Arcoverde, é coisa nossa. Fechada a loja em minutos, naveguei pelo Shopping dos Antiquários, reverenciei meu bar morto, espiei o prédio onde morei por 16 anos, outro que frequentei por dez e sonhei encontrar algum conhecido, mas não aconteceu. Olhei bem para as lojas, elas são totalmente diferentes do que eram há trinta ou quarenta anos, mas o shopping tem uma atmosfera inconfundível. Vi uma doceria com tortas lindas e quis comprar um pedaço para a Marina e outro para minha mãe, só que Marina está a 70 quilômetros e minha mãe, ah, talvez nunca mais ou no infinito, talvez somente dentro de mim mesmo. Voltei para o metrô e saltei na Cantagalo para encontrar meu amigo Raul. Nós abraçamos e caminhamos um pouco pela Aires Saldanha, com vários bares - um rapaz e uma garota, promoters da região, nos convidaram a entrar mas tínhamos um compromisso inadiável com o Caravelle. Agradecemos, os dois eram uma simpatia, seguimos nosso caminho. Pouco tempo depois, estávamos comendo a melhor pizza napolitana do mundo - não há como explicar, só indo e comendo, mas aquela pizza tem um sabor único, feito quando você ouve King Crimson ou lê Jack Kerouac - ou ainda mestre Ivan Lessa. Comemos, rimos, fofocamos, lamentamos a ausência dos amigos de mesa e no fundo, talvez bem no fundo, não vamos lá só para comer a melhor pizza do mundo, nem somente para lembrar de todos os ótimos garçons que nos atenderam lá por décadas a fio - todos se foram -, mas é que o Xuru morava no prédio ao lado do Caravelle e, inconscientemente, a gente carrega uma ridícula esperança que ele apareça rindo e sente à mesa. É impossível porque Xuru morreu há mais de dezoito anos, mas continua presente em nossas piadas, diálogos e sentimento. Mais cedo, no Centro, encontrei Pedro, que está conosco há quarenta anos e agora está perto do meu trabalho outra vez. Depois da melhor pizza do mundo, encaramos um sorvetinho e aí era inevitável lembrar do Solar dos Couceiro, onde nos conhecemos e vivemos grandes dias de nossas vidas. Só que tudo que é bom acaba rápido e perto das oito e meia nos mandamos porque tinha Fluminense na televisão. Nós não somos torcedores do Fluminense, mas sim peregrinos dele - o perseguimos desde sempre e provavelmente morreremos assim. Até a hora da conta falamos de muita coisa, de muita gente querida e de histórias excêntricas. Agradecemos aos garçons por tudo, Raul foi para um táxi, eu peguei um Uber e cheguei em casa quinze minutos depois, uns dez antes do jogo. O Fluminense só empatou, paciência. A Cler deve ter ficado revoltada. Cochilei um pouco depois do jogo, acordei, trabalhei um pouco, tomei uma Coca-Cola geladona em lata e agora estou aqui. Não tenho sono, tenho um monte de problemas e dores, tenho uma 45 apontada para mim, tenho esperança no novo dia que já se avizinha. Penso num novo livro, em ir ao CCBB, ao É Tudo Verdade. São três e meia da manhã e toca Nirvana numa chamada do Canal Bis. Tudo isso é apenas pano de fundo porque ainda estou hipnotizado por Copacabana, porque trinta anos depois ainda sinto saudades de Copacabana, de ficar de mãos dadas com a mulher amada perto da água na Figueiredo de Magalhães. Porque penso que até o fim dos anos 1980 a praia incrivelmente não era iluminada. Porque eu ainda lembro de Fred, Marco, Luiz Magno, Ricardinho, Gustavo e eu na mesa de carteado. Porque eu lembro da Claudia, e lembro das outras garotas que iam e vinham na casa do Fredão - ele também se foi cedo demais, assim como o Luiz. Tudo é Copacabana. São três e meia da manhã, o ventilador me refresca feito ar condicionado e alguma coisa me traz a aragem de Copacabana. Terra de meu amigo Luiz Carlos Lacerda, cineasta consagrado e aclamado. Terra do divertidíssimo DJ Zé Pedro - Crepúsculo de Cubatão, quem se lembra? Eu preciso dormir, mas Copacabana sussurra: "Espere um pouco mais, meu bem."

@p.r.andel

Sunday, March 31, 2024

60 anos de nojo de 1964

Eu não aprendi sobre a ditadura imunda na TV, nem nos livros. Só a posteriori. Eu a vivi dentro da minha casa, desde que nasci, e até hoje carrego sequelas irrecuperáveis dela. 

Aos oito dias de VIDA, fui carregado por minha mãe desesperada. Ela saiu correndo de casa depois que soldados foram à nossa casa para prender meu tio, um jovem estudante de 23 anos. Um simples tropeço da minha mãe na rua, também uma jovem de 23 anos, teria sido a minha morte, mas felizmente não aconteceu. 

Tempos depois, novamente para prender meu tio, a ditadura simplesmente deteve meu pai para usá-lo como refém. Desesperado, o irmão se entregou. Nunca fez mais do que reuniões no Partido ou panfletar contra a ditadura em passeatas, mas ditadores são assim: covardes. Prenderam-no, deram-lhe o abominável "telefone" e lhe tiraram uma das audições. Não aguentando mais, um garoto que tinha sido criado em colégio interno, órfão, virou um jovem humilhado que teve como única saída o exílio. Nunca mais voltou. As sequelas da ditadura contribuíram para seu suicídio, anos mais tarde. 

Deprimido, aos poucos meu pai caiu no alcoolismo e isso nos provocou uma tragédia familiar e econômica que jamais superei. Só parou de beber quando não pôde mais andar, e isso foi o que lhe deu uma sobrevida de treze anos. 

Minha mãe sofreu demais. Jovem ainda, passou a ter vários problemas de saúde que abreviaram sua vida. Faleceu com 61 anos, mas uns 100 de sofrimento.

Além de destruir a harmonia da minha família, a ditadura ainda me expulsou de uma escola no jardim da infância. Numa excursão até à Praia Vermelha, simplesmente perguntei à Tia Diva porque a praia tinha aquele nome. Perto dela, estavam dois senhores de farda. Nunca me esqueci do olhar odioso que me dirigiram por uma pergunta da criança. Psicopatas, queriam saber quem era a criança de "traço comunista". Foram à escola, pegaram meu nome, encontraram o do meu tio, avisaram que eu deveria ser expulso para não contaminar as outras crianças. A diretora recebeu minha mãe e, chorando, comunicou minha expulsão. Uma semana depois, eu estava em outro colégio, sem saber de nada. 

Ah, muito provavelmente foi a ditadura que sumiu para sempre com a Lúcia, que era minha babá em 1973. Morávamos uma temporada bem no Largo de Cascadura. Ela desceu para comprar pão e nunca mais voltou. Meus pais desesperados foram em delegacias, hospitais, no IML, choravam o tempo todo, eu vivi aquela agonia. Isso tem 51 anos. Sou o único sobrevivente daquela casa. Nunca mais tive sinal de Lúcia. E por que teria sido a ditadura? Simples: porque naqueles anos e nos seguintes as pessoas simplesmente "sumiam" para sempre, num tempo em que o tráfico e a milícia engatinhavam. 

Perto de 1979, o Jorge sumiu. Trabalhava num depósito de bebidas que ficava na Figueiredo Magalhães, em Copacabana, perto da Vila. Nada disso existe mais: é o terreno do Metrô e do Batalhão da PM. Lá para 1981, quem sumiu foi o Carlos, jornaleiro. A banca de jornais simplesmente ficou sem abrir por dez dias, o dono apareceu, ninguém tinha notícias. Veio um novo jornaleiro. Carlos, nunca mais. 

Uma coisa que sempre me intrigou foi quando me tornei um torcedor mirim fanático. Eu ouvia todos os clássicos do Maracanã, meu pai me levava e tal. Pois bem: volta e meia noticiavam que alguém morreu na geral, tentando roubar alguém, teve troca de tiros. Estranho é pensar que alguém entrasse armado justamente no setor mais popular do estádio, com muitas pessoas pobres ou muito pobres, para roubar - os outros setores tinham gente com mais grana. Ao mesmo tempo, se sabia que muitos militantes de esquerda gostavam de ver jogos na geral para ficarem com o povo. Será uma coincidência a morte de tantas pessoas ali? É um assunto silenciado. 

A maldição da ditadura tirou a saúde dos meus pais. Doentes e sem renda, passei a sustentar a casa. Isso ajuda a entender minha penúria e minha ausência de bens. Mas eu não deixei de produzir: fiz muitas estatísticas e escrevi muitos livros. Mas é difícil, muito difícil viver com esse peso. 

Se a ditadura fez tanta coisa ruim para quem era literalmente inofensivo, imagine todo o resto que já descobrimos nos arquivos pavorosos. Em nome de uma farsa corrupta, torturaram, mataram, estupraram, incendiaram, esquartejaram e desintegraram muita gente. Vários dos crimes horríveis que você vê na TV, cometidos pela milícia e pelo tráfico, são reproduções de técnicas utilizadas pela ditadura. 

Quanta gente foi socada no sanatório de Barbacena para morrer em vida? Ou jogada na Baía de Guanabara? Ou enterrada na então deserta Zona Oeste do Rio há 40 ou 50 anos? 

E que ninguém seja ingênuo: houve muita corrupção. Muita. Essa é a principal motivação de todo golpista. Só verdadeiros otários acreditam nesse discurso de pátria, família e religião - é melhor trocar por hipocrisia, desfaçatez e corrupção. 

Há muitas pessoas feito eu por aí. Algumas não falam porque são traumatizadas. Outras, porque têm vergonha de se expor. E outros motivos. Só que muita gente sofre com isso. São dores na alma, no peito e na geladeira vazia. Na saudade das pessoas queridas, que poderiam ter mais tempo na Terra. 

Eu tenho o mais profundo nojo das pessoas que defendem a ditadura. A elas desejo as piores coisas. Essa não é uma causa de ricos contra pobres, de brancos contra negros, de conservadores contra progressistas, de direita contra esquerda, mas sim a causa dos seres humanos contra monstros que defendiam e defendem - ainda - o nazifascismo, e isso é intolerável. 

Há pouco o Brasil quase passou por mais um golpe. Que as pessoas tomem consciência dos fatos e pensem em suas famílias, em seus filhos. Não é mais possível que em 2024 as pessoas defendam uma aberração como a ditadura. É inaceitável e merece as piores reprimendas. 

Nenhuma criança deveria ter passado pelas coisas horríveis que eu passei, por causa dessa ditadura nojenta. E o pior é que, perto do que muitas sofreram, eu sou até um privilegiado. Não fiquei na primeira fila da sessão do horror. 

A você, que tolera ou defende isso, pense que as pessoas mutiladas, estupradas e covardemente assassinadas poderiam ser suas próximas, ou até da sua família. A ditadura começa eliminando seus alvos prioritários, depois ataca qualquer um. E se você vê algo parecido com a milícia e o tráfico, isso está longe de ser mera coincidência. 

@p.r.andel

Tuesday, March 26, 2024

03:00 AM IN NYC

Não há ninguém no Grant's a essa hora. Nem Grant's há. Não se come mais grandes pratos baratos de comida à noite.

O mesmo vale para o Five Spot. Nem pensar em esperar por Thelonious Monk batendo o pé no chão para marcar grandes temas de jazz. 

Agora é tarde.

JAZZ IS DEAD. 

Os velhos e bons beatniks que iam e vinham pelos bares à noite estão todos mortos, ou tão velhinhos que nem saem mais de casa. 

E se Thelonious não bate o pé, onde procurar os novos gênios do jazz? Gênios, gênios, nunca mais, mas há grandes músicos. É difícil alguém construir coisas para estar na mesma prateleira de Charles Mingus ou Miles Davis. Muito difícil. 

Nem jovens rapazes muito doidos do tipo que curtiam os primórdios do Velvet Underground. Rapazes de preto com sapatos de bico e cara de tédio. Jovens mulheres, lindas de qualquer maneira. O rock underground ainda resiste, algumas bandas que também herdaram o estilo do Joy Division: Interpol, The National e similares. 

Será que alguém ainda curte turmas da juventude? Somos ocupados demais, todos teclam o tempo inteiro em seus delicados smartphones e iPhones. Ou ficamos a escutar música rasa com fones vulgares. 

Todos vão mais cedo para casa agora. Quase todos. Não serei injusto: ainda existe arte e desafio na noite de Nova York, mas o problema é que ninguém mais vai escrever "Walk on the wild side". Até mesmo os escritores são outros: não há Kerouac ou Burroughs, nem a poesia de Ginsberg, nem Gregory Corso. Quem vai descobrir e contar as novas histórias do down by law? 

Tudo bem: vamos tentando de alguma forma. Se o melhor já passou, vamos tentar viver os tempos modernos da melhor forma possível. 

JAZZ IS NOT DEAD. 

Alguma coisa acontece nos corações sedentos quando procuram vestígios dos escombros do Grant's ou do Five Spot. Prosseguimos.

Sunday, March 24, 2024

Os 40 anos de 1984

Quarenta anos por extenso, 40 anos.  

Tudo passa tão rápido, mas ao mesmo tempo 40 anos parece tempo demais. 

É que vivemos ocupados, apressados, temos que lutar pela sobrevivência, nunca temos o tempo devido para viver. O jeito é tentar espiar a paisagem pela janela do trem ou o reflexo da janela no metrô. 

De repente, tô olhando para a televisão e acabou o verão de 2024. Alguma coisa me teletransporta para 1984. São 40 anos. 

Os 40 anos da estreia do Sambódromo maravilhoso no lugar do eterno entra e sai das ferragens de João Mendes na Marquês de Sapucaí.

Lá se vão 40 anos dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Quem se lembra de Mary Lou Retton? E da bela canção tema do evento cantada por Christopher Cross, “A chance to heaven”?

Talvez 40 anos para se pensar no título do grande livro de George Orwell.

Ou quando eu era garoto de Copacabana, ainda ia à praia e gostava dos horários mais desertos possíveis, de preferência no comecinho da manhã. É uma das mais belas paisagens da natureza humana. 

Há 40 anos eu acampava num dos lugares mais lindos do Brasil, o Forte Imbuí. Numa tarde nublada de setembro, naveguei pelo semblante de uma garota linda, com seu olhar perdido vagando pelo Atlântico Sul.

Em 1984 eu também estava num dos meus melhores Réveillons. Coisa de garotos. Eu, Fredão, duas amigas lindas. A gente lanchando no Gordon. Nosso atendente predileto era um jovem negro magrinho. Seu nome era Misaque. Atendia todo mundo bem. Gente boa, carioca.  

Há 40 anos, meu Fluminense pintava e bordava no Maracanã, no Morumbi e em qualquer campo do mundo. Ganhou o campeonato brasileiro, o carioca e passava o trator. Era o Fluzão demolidor rei dos clássicos e dos títulos. Paulo Victor, Aldo, Duílio, Ricardo e Branco; Jandir, Deley e Assis; Romerito, Washington e Tato. E Vica, Leomir, Renê, Paulinho e Parreira, um monte de gente. 

Há 40 anos a gente descobriu um certo Ayrton Senna da Silva, que apareceu para o mundo com sua Toleman deixando todo mundo tonto. 

Ah sim, há 40 anos Mick Jagger estava no Brasil. Começava uma guerra fria dentro dos Rolling Stones que duraria alguns anos, até a volta apoteótica da banda no final dos anos 1980. 

Há 40 anos tinha o Canecão. Grandes shows a preços populares, era fácil para ir e voltar de ônibus. Tudo era mais tranquilo. Agora com os preços explosivos, o jeito é ficar vendo os festivais na televisão. E, claro, a qualidade das bandas caiu muito, mas justiça seja feita para não viver só de saudosismo: achei bem legal o show do Arcade Fire no Lollapalooza. 

Eis os 40 anos das multidões brasileiras nas ruas pedindo a volta à democracia, as Diretas Já. Um sonho que talvez até hoje a gente não tenha vivido direito. Tivemos bons momentos e outros, terríveis.

Senhor, como pode ter tanto tempo assim? Tudo foi outro dia, eu lembro dessas coisas todas com muita facilidade. Como podem ter escorrido 40 anos desse jeito? Bem disse o poeta: o tempo não para. 

Tubarões voadores de Copa

TUBARÕES VOADORES AMEAÇAM COPACABANA

Agência Estado Psicodélico 15/09/1988

Orley Maggalhaenz - da sucursal

RIO - Uma das cenas mais aterrorizantes dos últimos tempos foi testemunhada ontem por moradores de Copacabana. Diversos relatos dão conta de que, por volta das onze da noite, uma esquadrilha de tubarões voadores não apenas sobrevoou a Princesinha do Mar, mas também sentou praça na cavalaria do bairro que nunca dorme. 

O fenômeno tido como extraterrestre foi extremamente rápido, não passando de vinte e cinco minutos, mas suficiente para deixar a população local em pânico. No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, nenhum dos tubarões abocanhou ninguém, embora diversas ocorrências tenham sido registradas.

A peixaria do Posto Seis foi abalroada e teve sua vitrine quebrada, alguns peixes desapareceram. Dois toldos do bar e restaurante Transa, na esquina da rua Bolívar com a avenida Atlântica, foram rasgados. Moradores do famoso edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace, afirmaram que um tubarão lilás passou em voo rasante na altura do quinto andar e parecia dar uma gargalhada. E turistas do luxuoso hotel Le Meridien, na entrada do Leme, desceram imediatamente para a praia com máquinas fotográficas, mas um fenômeno desconhecido impediu os registros, conforme o depoimento da estudante portuguesa Maria Teresa Salgueiro, 20 anos, aos policiais: "Eles eram uns três ou quatro, fizeram piruetas e pareciam até sorrir. Quando preparei a máquina para fotografar e apontei para eles, uma grande nuvem de fumaça vermelha e preta nos sufocou. Caímos na areia e, quando nos levantamos, eles já tinham subido muito. Um era vermelho, o outro amarelo e os outros dois não me lembro".

O caso mais inacreditável foi contado por José Roberto, o Mussum, 25 anos, figura marcante do futebol de praia e das noites de Copacabana. Ele bebia um pacífico chope no restaurante Rondinella, na praia e esquina com Siqueira Campos quando, num súbito, viu uma grande barbatana e não teve como reagir: um tubarão roxo em poucos segundos roubou sua tulipa e evadiu-se em direção ao Atlântico Sul. Disse Mussum: "Aí mané, veio o tubarão cheio de pantominági (sic) e levou meu chope novinho. Safado! Sai dessa maresia, era só o que me faltava.". Também foi deixada uma enorme cartolina, com mais de três metros de comprimento onde se lia "Free Solana Star", nas imediações da trave do Juventus, na areia, em frente à rua Figueiredo Magalhães. 

No entanto, a passagem da esquadrilha de tubarões não causou exclusivamente medo. Na boate Bolero, famoso reduto da boemia copacabanense à beira-mar, Lady K, 23 anos, requisitada garota de programa, quase suspirou pela inusitada esquadrilha marítima: "Um deles era amarelo, tão bonito, parecia que estava com a camisa da Seleção. Passou aqui pertinho mas não entrou. Eu agarrava ele!". Para o jornaleiro local Mahmoud Avahskninkar, 47 anos, há suspeita de acerto de contas: "Cê acha que o verão da lata foi de graça? Os caras mandaram recado que querem a compensação do prejuízo". Houve quem nem ligasse, tal como a senhora Wanda Wildner, 75 anos bem vividos, segundo a própria: "Meu filho, esse bairro é um zoológico. Tem urubu, pavão, veado, piranha, pomba rola, jararaca, tudo na rua, e eu vou me preocupar com tubarão? Me chama quando o elefante e a girafa estiverem no botequim da Prado Júnior, ou na pracinha do Bairro Peixoto". Por fim, o veterano DJ Monsieur Limá, ícone do bairro, vaticinou: "São tubarões malandros, vieram onde tem muita gatinha". 

As ocorrências foram registradas na 12a DP. Na ausência do delegado titular, o experiente detetive Cler Bonelli garantiu a devida averiguação do insólito atentado extra-marinho em Copacabana. 


@pauloandel

Wednesday, March 20, 2024

Sobredeus

Há  anos, muita gente diz que eu carrego Deus comigo mas não nos encontramos. Eu não consigo vê-lo nos cheiros de rua triste e faminta, com gente se decompondo a céu aberto com seus corações nas mãos. Ele não existe. Talvez ele não exista. É um tema de profunda contradição. Justamente por isso, há indícios de Deus na prática humana. Por exemplo, nas artes. Deus não existe, mas quando Michael McDonald canta ele é uma expressão de Deus. O mesmo vale para as canções entoadas por Cartola - Deus não existe mas criou aquilo. Viva a contradição. Ausente, Deus está por todo canto: nos sopros de Pixinguinha, que se consagraram no salão nobre do Fluminense - cujo uniforme todo branco, hoje quase impossível, é também uma representação divina -; nas fotos de Sebastião Salgado, nos pianos de McCoy Tyner e Tom Jobim; na beleza dos sorrisos das atrizes Fernanda Vasconcellos e Nathalia Dill - esta em cartaz na TV atualmente, ajudando o mundo a ficar mais leve - ela me lembra Juliana em algo que não sei dizer, nem cabe agora. Alessandra? Não. Gabriella? Sim. Katia? Também.

Ao mesmo tempo em que descreio de Deus num mundo cheio de ódio, guerras e desilusão, ele se faz contradição e aparece em várias sessões da tarde, como num biscoito de polvilho nas mãos de um garotinho aprendendo a andar em Copacabana, ou de mãe e filha de mãos dadas num trem da Central a caminho do culto que lhes fará bem, distante dos pastores tubarões voadores que saqueiam a alma de pessoas boas e ingênuas. 

Inexistente, Deus insiste em seus indícios. Sem vê-lo, desconfiei muitas vezes dele na praia de Copacabana pela manhãzinha, deserta, ainda segura. E nos sábados à tarde no grupo de escoteiros nos anos 1980, quando éramos pobres e ricos juntos de verdade dividindo comida, canções e abraços nos acampamentos. Também desconfiei de Deus quando passei no vestibular, porque sabia que de certa forma ele garantiria a sobrevida da minha família, o que acabou acontecendo por vários anos, até que me tornei um viajante solitário, mesmo casado. 

Eu procuro e não encontro Deus nas lágrimas diárias dos familiares dos mortos pela violência, essa estupidez que nos corrói. Também não o encontrei no mundo corporativo por onde vivi quase trinta anos, cheio de mesquinharias e maledicências, mas me livrei daquele fel. Hoje sou um homem maduro, falido e infeliz à espera da morte, e tão contraditório quanto Deus, escrevo quase que diariamente, trabalho, produzo coisas que não dão dinheiro mas deixam as pessoas felizes. 

Por muitos anos, entre os 1980 e 1990, eu achei que Deus pudesse estar entre os silêncios e o vento de Arraial do Cabo, ainda com sua entrada a asfaltar, cheio de belezas de areia e mar, com ruas calmas. Não, não encontrei, mas tive momentos felizes por lá e beijos gloriosos. Tive risadas com amigos queridos, hoje desaparecidos pela tonelada de obrigações do dia a dia. 

Os amigos que vão embora são fruto da ausência de Deus, ou suas vindas representam a mão de Deus? Quem sabe dizer com razão absoluta, sem fanatismo? 

Tudo é contradição. Ao mesmo tempo em que estou muito mais próximo do fim do que do começo, sinto que o mesmo fim parece longe porque há muito a ser feito. Acho que dá. Será? Será que vamos conseguir vencer? Deus está num canto da sala cheia de entulho, livros e discos? 

Sinto dores mas tenho certa saúde. Sinto amores inúteis e tudo bem. Sinto que a minha cidade está cada vez mais opressora e excludente, mal o sol tendo raiado - e ainda bem que perderemos 12 graus nos próximos dias, porque ninguém aguenta mais derreter em vão. 

Não são nem cinco e meia mas sinto uma fome dos diabos. Daqui a pouco vou escrever sobre o Fluminense - time para o qual torço contra, segundo os mais desalinhados, porque não acredito que Fernando Diniz chegue à unha de Deus. Eu torço contra o time que me fez escrever 25 livros...

Agora estou um pouco tonto e posso cochilar a qualquer momento. Espero que a Marina esteja vindo bem para o trabalho. Espero que o mundo seja menos opressor para as pessoas, que as crianças não morram em Gaza e que todos os criminosos de guerra sejam punidos. Sonho com um sanduíche em breve. Em ter uma casa, em pagar as dúvidas e ter saúde para escrever mais livros. Tenho o sonho beat de alguns livros atrás, pois. E procuro por Deus em vão porque sei que essa é a única chance de reencontrar meus pais. 

Lá fora o azul do céu está mudando de tonalidade. Nada de novo debaixo do sol. Os primeiros banhistas começam a chegar à orla de Copacabana, imaginários ou não.  

(Livre inspiração sobre "Obrigado, Deus", de Ricardo Soares, originalmente publicado em todoprosa.blogspot.com)

Tuesday, March 12, 2024

No que eu estou pensando?

Todo dia, há anos, o Facebook me faz essa pergunta. Eu penso em muitas coisas, eu penso o tempo todo até me cansar. Boa parte do que eu penso não desperta o interesse de ninguém, ou quase ninguém. Eu fico muito tempo sozinho e praticamente só falo com as pessoas in loco na loja. Hoje não fui, só falei pela internet. Meu pé tava doendo demais, ainda está, então precisei faltar ao trabalho. Meu sócio cobriu. Então fiquei em casa, pensei em muitas coisas e por motivo justo algumas me deixam triste demais. Não é drama, mas tristeza mesmo. Engraçado que quando falo dessas coisas muita gente se irrita. Quando falo que estou triste, quem também está mas não quer admitir às vezes se irrita. A gente vive num país estranho: o egoísta não gosta de se reconhecer nem ser reconhecido como egoísta. Isso vale também para o hipócrita e o escr0t0. Falando o que sente, você fragiliza muita gente. Só um verdadeiro amigo respeita a tua verdade, mas eles são tão poucos, poucos... Enfim, o fato é que se você fala o que realmente está sentindo, muita gente se irrita porque está pior do que você, mas jamais admitirá. Sofrem em silêncio.