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Saturday, December 31, 2022

Livros "A essência do FDP" 1 e 2

Em 2018, publiquei dois livros inspirados na obra original do intelectual português Alberto Pimenta, "Discurso sobre o filho da puta". 

Pimenta, com magistral prosa e poesia, descreve bem este personagem contemporâneo que encontramos em todos os caminhos. 

Meu caminho foi o das crônicas de botequim. Mal sabia eu o quanto os livros teriam de profético para os anos seguintes no Brasil. 

Hoje, no último dia do pior governo da história do país, comemoro com o relançamento de ambos. 


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Wednesday, December 28, 2022

ainda lembro e me lembro

eu lembro. lembro de quase tudo. minha memória é delícia e inferno. eu me lembro quando fiz sinal para um táxi no colo de minha mãe, assim como me lembro de ser carregado em minha festa de aniversário em 1970, aos dois anos de idade. eu lembro do panduíche na revista e do sujismundo na tv. eu me lembro quando meu pai me disse "félix" e "fluminense" pela primeira vez em 1973, antes dos cinco anos de idade. lembro de ver minha mãe chorando quando chegamos a vaz lobo para morarmos um ano, em 1976 - eu já tinha oito anos. também me lembro de comprar coxinhas sequinhas e deliciosas numa lanchonete no largo de vaz lobo, enquanto tocava belchior na lanchonete. volto a copacabana em 1975 e lembro quando a ditadura me expulsou da escola, ou quando minha mãe chorou muito ao falar com uma jovem mãe em situação de rua na frente do metro copacabana. eu me lembro de ana paula, linda, passar pela figueiredo magalhães, mas aí já tinha 14 anos e isso tem apenas 40 anos. eu me lembro de todas as vezes que precisei chegar em casa para dormir, ou às vezes nem ir, para não ter choques com meu pai doente por alcoolismo. eu me lembro de quantas vezes vi o atlântico sul e pensei no mistério, no medo e na morte, sonhando em ser alguém digno e poder dormir todas as noites em paz - o que jamais aconteceu. eu lembro de meus amigos à mesa jogando cartas enquanto alguns ficavam muito loucos de pó e algumas garotas se esfregavam em nossos colos, aí já tinha 18. recuo e relembro quando ia com meu pai de copacabana até são joão de meriti, então pegávamos um belo ônibus que passava pela dutra e eu me sentia feliz por ser um ajudante de loja aos sete anos de idade. lembro de minha mãe comprar uma caixa de madeira de um velhinho na viveiros de castro, ele era bem velhinho e essa caixa até hoje serve para guardar meus botões. eu me lembro de todas as vezes que sofri bullying na escola, todas as humilhações ridículas e todos os rostos dos algozes - a maioria se tornou a mediocridade esperada. eu me lembro de uma garota que beijei sem saber o nome, no meio do ajuri de cotia com dez mil escoteiros em 1985. lembro de quase todas as admirações e paixões que tive, vividas ou não, não sei se sou lembrado. lembro das últimas palavras que não troquei com xuru e fred, cujas ausências são dolorosas ao extremo para mim, isso com 13 ou 17 anos atrás. e lembro do dia em que fiquei amigo do xuru em 1984, assim como lembro da primeira vez em que fui à casa do fred em 1977. eu me lembro de ter visto os paralamas no parque lage, quando ninguém os conhecia. eu me lembro do bar bole bole e de billy blanco cruzando diariamente o shopping dos antiquários. lembro de antológicas noites no campo em arcozelo, vale do sol, imbuí, serra dos órgãos e vassouras - japuíba-patis-gaviões, 1987. eu me lembro de ter jogado botão com augusto, luis e Marcelinho debaixo da escada volante em 1978, e de ter assistido aulas de catecismo com floriano em 1979. eu me lembro de ter acariciado uma gata por baixo da mesa enquanto seu noivo tinha ido ao banheiro do bar, 1995. eu me lembro quando vi chocão pela primeira vez e ela era bem pequenininha. eu lembro de lula perseguido pela imprensa numa denúncia do pasquim de 78. e me lembro do homem cadeirante triste, usando uma sonda debaixo da marquise do shopping dos antiquários em 1993. bem mais longe, lembro de minha primeira entrada no shopping em 1975, vindo da Toneleiro e acessando pela siqueira campos. eu me lembro de dri, roberto e nilton jogando bola no bairro peixoto em 1981. lembro do lazlo e do janjão, que foram meus vizinhos em 1978, assim como o luiz fernando português, o marcelo e a maravilhosa zuleika. eu lembro de todas as injustiças e portas na cara que sofri, e me lembro também das pouquíssimas pessoas que me deram a mão sem oportunismo. eu me lembro quando chorei de alegria pela primeira vez, quando passei para a uerj - tem apenas 34 anos. minha memória tem coisas demais, é minha delícia e desastre ao mesmo tempo. ainda me lembro.

@pauloandel

Saturday, December 24, 2022

sociedade dos poetas mortos: frases do filme

“Carpe diem. Aproveitem o dia, meninos. Façam de suas vidas uma coisa extraordinária.”

"Quando você pensa que conhece alguma coisa, você tem que olhar de outra forma. Mesmo que pareça bobo ou errado, você deve tentar!”

"Na vida, há tempo para se arriscar e tempo para se ser cauteloso, e um homem sensato sabe qual é o momento certo para cada uma dessas coisas."

"Não importa o que dizem a você, palavras e ideias podem mudar o mundo.”

"Não lemos e escrevemos poesia porque é bonitinho. Lemos e escrevemos poesia porque somos membros da raça humana e a raça humana está repleta de paixão. Medicina, lei, negócios e engenharia são ocupações nobres para manter a vida. Mas poesia, beleza, romance e amor são razões para ficar vivo.”

"Garotos, vocês devem se esforçar para encontrar suas próprias vozes. Porque quanto mais vocês esperarem para começar, menos provável que vocês possam encontrá-la. Thoreau disse: ‘A maioria dos homens leva uma vida de desespero silencioso.’ Não se rebaixem a isso. Saiam!”

"Todos nós temos uma grande necessidade de aceitação, mas vocês devem confiar que suas crenças são únicas, suas próprias. Mesmo que as pessoas as achem estranhas ou impopulares, mesmo que todos forem embora”

"Só nos seus sonhos o homem é realmente livre, é assim e sempre vai ser. (Carpe Diem)”

"Vocês estão vendo estas fotos, meninos? Os jovens que estão nesses quadros planejam revolucionar o mundo e transformar suas vidas em algo magnífico. Isso foi há 70 anos. Agora estão todos mortos. Quantos tiveram uma vida realmente feliz? Quantos realizaram seus sonhos? Aproveitem o seu dia. Vivam o presente. Confiança é saber que somos limitados, que não podemos adivinhar o que está por vir, que jamais controlaremos todas as ‘possibilidades’ e que nossa única saída é viver intensamente a realidade, seja boa ou ruim.”

Friday, December 23, 2022

noites no campo 1984

agora tudo é questão de silêncio. todos os garotos e garotas estão dormindo, todas as crianças e eu, em plena maturidade dos dezesseis anos, faço a ronda sozinho enquanto o pessoal foi de carro até a cidade para bebericar. então olho para o céu limpo, cheio de estrelas e todas elas já estão mortas, mas a luz de cada uma só brilha agora. o céu, cheio de segredos e que um dia, pelo que muitos dizem, será minha casa. o céu, cheio de mistérios - no fundo, bem no fundo, não sabemos quase nada. 

todos dormem bem demais com o frescor da noite. não há um único ruído diferente além dos ronquinhos. tomamos um susto quando o coruja cortou o dedo limpando bambu, mas ele foi ao hospital, tomou os pontos e tudo está ok. nem as simpáticas vacas do terreno ao lado aparecem, devem estar num sono profundo. 

a cem quilômetros daqui, eu espero que minha família durma bem. será que o pessoal se encontrou na casa do fred? queria estar lá, mas é bom estar aqui também. gosto de contemplar a noite a céu aberto, olhar o horizonte mesmo que minha miopia não ajude. o horizonte, o infinito, o mistério do céu grafite que instiga e também oferece esperança sem que saibamos em quê. 

a fogueira baixa oferece algum calor. nenhum vento a alimenta. num súbito, mesmo sabendo que estou cercado de colegas dentro das barracas, eu me sinto em plena solidão. posso falar sozinho, chorar, até gritar que ninguém saberá. alguma coisa me diz que isso vai me  acontecer muitas e muitas vezes, mas não tenho tempo a perder: com dezesseis anos de idade, o mundo é todo meu. 

chácaras vale do sol. estrada itaboraí-friburgo. daqui a pouco as olimpíadas acontecem. o fluminense, senhor, é uma máquina. de repente, patrícia surge na madrugada, perdendo o no sono. pede para se sentar ao meu lado, pega a minha mão e parece encantada com a noite grafite enluarada. o rádio toca música bem baixa e assim ficamos por vários minutos, procurando entender o que há depois do infinito, até que surge o chevette branco com seus faróis de milha acesos, trazendo de volta os chefes, os veteranos um tanto alegres pelo vinho. então ela me dá um beijo, agredece a companhia, volta para sua barraca e volto à solidão do começo, a mesma que ainda vai me ameaçar muito. 

todos dormem bem. espero também conseguir. 

@pauloandel

Desencontro

Tudo passa rápido demais. Dia desses, por acaso, reencontrei meu querido amigo Leo depois de muitos e muitos anos, no Santos Dumont num domingo de manhã. Algo absolutamente improvável, mas acontecido porque fui encontrar meu outro amigo, Eric, no aeroporto. 

Leo jogou botão comigo no Estrelão. Curtimos o nascimento do grande Fluminense de 1980. Estudamos juntos por três anos no colégio e, anos mais tarde, na UERJ. 

Não sei ao certo o motivo, mas para mim Leo, Augusto, Luis e Jorge Pinto conhecem todas as pessoas do mundo, especialmente as que conheci lá longe e que a vida acabou afastando - talvez, no fundo, esta seja a sina de todos nós: navegarmos sozinhos, mesmo cercados de gente - a solidão é oxigênio, puro ou poluído. Então fiz algo raro: fui ao perfil do Leo para procurar o André. Nem sei se eram amigos, mas o Leo podia saber porque conhece todo mundo. Ah, sim, o André (Cabeça) não era meu amigo próximo, mas conhecido da rua, da praia, do Bairro Peixoto. Tive curiosidade em saber. Aqueles ícones particulares de Copacabana que só nós, eternos moradores e exilados, sabemos que existem. 

Foi justamente quando me deparei com o perfil de outro André, o irmão mais da Daniela, que estudou comigo e com Leo da quarta à sexta série, e que me lembro que era um amor de garota, educada, doce, daquela cheia de grandes notas. Eu nunca mais a vi e mantive essa imagem em minha memória de menino. Queria ter passado mais tempo com eles, mas perdi a bolsa de estudos na escola e tive que sair - até hoje não me conformo e, sinceramente, desconfio de que tenha sido uma nota plantada com o único intuito de retirar a bolsa (e que pode ter me estimulado a me formar em Estatística e estudar mais dois anos de Matemática...). Enfim, a Daniela era um doce e eu nunca mais a vi, mas eu lembrava do André, seu irmão, que  sempre me cumprimentava simpaticamente na rua, até que fui demitido de Copacabana em 1993 e até hoje acuso o nocaute. 

Olhei o perfil e tomei um susto: André, que era mais novo do que eu, faleceu há três anos. Desci o cursor e vi as palavras generosas de sua esposa e amigos, confirmando tudo que ele era em nossos tempos de criança. Muitos elogios pessoais e profissionais. Fiquei pensando naquela efêmera ligação do passado, em como foi sua bela trajetória por aqui e, diante da tristeza por sua passagem precoce, ao menos pude me solidarizar em pensamento com os que o queriam tão bem. 

Às vezes tenho medo dessa busca que realizei quase involuntariamente. Quando você fica muito tempo sem ver alguém, pode ter decepções terríveis. Lembro outro dia de uma conversa com meu amigo e ídolo Carlos Lopes, quando falamos de pessoas próximas a nós que enveredaram pelo crime. Mas no caso do André a decepção foi mesmo por sua juventude abatida em pleno voo. Ainda me lembro dele na Toneleiro dando oi e rindo, dando tchau e rindo. 

Eu, que estou fora de órbita no planeta Terra às vésperas do Natal, espero que o André esteja bem em algum lugar que não sei dizer. Ele, Fred, Luiz Magno, Valério, a irmã do Jorge, o irmão do Conde, acho que o Ciley também, todos vizinhos de duas quadras, muitos que se conheceram ou não, todos tijolinhos das lembranças da minha infância, juventude, vida e, quem sabe?, fé. 

Ao mesmo tempo, me lembro de Simonard ontem lá no Sebo X, quando conversávamos com o Marcelo Lessa: "É assim. Todo mundo morre. Passa". Tudo é efêmero demais, porém creio que, como em alguns dos casos acima, o inevitável tenha vindo muito antes da hora justa e razoável. Ok, a velha sentença afirma: a vida não é justa. Mas precisa ser tão injusta? 

@pauloandel

Tuesday, December 20, 2022

um idiota de terno

NAQUELE tempo era batata: verão, terminava o expediente e regularmente tomávamos um chope, eu e alguns colegas dos tempos de faculdade. Rodamos por muitos bares do Centro, mas fixamos presença por longo tempo na Choperia do Papai, hoje morta. Faz tempo, vinte anos. 

Morando ao lado do trabalho, invariavelmente eu ia em casa brevemente para tomar banho e trocar de roupa. Bermuda e chinelos. Não é excesso de informalidade, mas costume. Vivi meus primeiros 25 anos a quatro quadras do Atlântico Sul, donde sou uma inevitável criatura litorânea. 

Fato é que bebemos um bom chope, comemos pizza e rimos. O segundo andar da Choperia era sempre nosso com exclusividade, salvo um ou outro casal danadinho. Enfim, terminou cedo, fechamos a conta e nos mandamos. Recolhi a grana da mesa e fiz câmbio, pagando a conta com meu cartão - um gesto que me seria muito útil naquela noite. Então caminhei sozinho da São José até o monumental prédio da Caixa Econômica, pois ali tinha o ponto do ônibus C-10, que me deixava na porta de casa. 

Lá chegando, encontrei um conhecido dos tempos de faculdade. Era um calouro dos anos 1990. Acho, só acho, que fui eu quem lhe deu um apelido que o acompanhou por muito tempo. Enfim, como não o via há pelo menos seis ou sete anos, fiquei feliz pelo encontro mas somente por uns dez segundos. Explico. 

Minha empolgação não teve recíproca. Minha efusividade foi retrucada com um olhar de cima a baixo, depois fixado em meu par de chinelos, que exalava preconceito mas quase tinha um quê de homossexualidade reprimida. Em segundos, tentei entender se aquilo se tratava de um gesto preconceituoso, e é claro que era: vestido com um terno desses que você vê muito em cultos evangélicos, o cara provavelmente supôs que, em pleno Centro do Rio, um homem de chinelos e bermuda é necessariamente alguém fora do estrato social de escritórios corporativos, por exemplo. 

Ainda tentei puxar um papo depois da quase manjada que sofri. Então o sujeito me perguntou se eu trabalhava (devia estar obcecado pelo fato de eu estar de bermudas)... Sem muitas explicações, disse que sim. Falei que regularmente tomávamos chopes na região e que ele estava convidado a nos acompanhar quando pudesse/quisesse. A resposta foi quase inacreditável. 

"Infelizmente não será possível. Neste momento tenho muito trabalho, é um momento de enorme sucesso profissional, muito próspero e, além do mais, estou casado. Então, quando saio é com minha esposa. Não frequento bares."

[Acho que eu nunca tinha pensado em sucesso profissional na minha vida, só queria sustentar bem minha família. Eu tinha trinta e poucos anos, era solteiro, ficava com uma garota casada e outra, solteira. 

[A grosseria e a arrogância que tentam vestir boa roupa em vão. 

A resposta me fez pensar: não estava mais ali um colega de faculdade, mas sim um bab@ca a ser descartado, com todo o seu preconceito oco. Então, para não ficar ao lado de um sujeito que fazia questão de ser desagradável, rapidamente desejei-lhe tudo de bom e, como o meu ônibus demorava, falei que pegaria um táxi. Ofereci carona, veio a resposta extraterrestre.

"Ah, sim, mas... você irá de táxi?"

[Em sua visão tosca, considerava inaceitável um sujeito de bermudas, um provável camelô ou desempregado, pegar um táxi. Senhor...

"Sim. Você quer carona para algum lugar?"

"Não, não, eu vou para mais longe."

[Leia-se "Na verdade banquei aqui o rico mas não tenho dinheiro nem para rachar uma corrida curta, digo que o táxi não me serve". 

"Bom, poderia deixar você mais perto do caminho. Que pena. Boa sorte, muito sucesso matrimonial e matrimonial para você. Até um dia".

Já perto dos Arcos da Lapa, eu só pensava em como uma pessoa que parecia tão legal nos tempos de faculdade se tornara alguém tão estúpido, ou se já era daquele jeito e eu, ingenuamente, não havia percebido. 

Quando o táxi chegou à Mem de Sá, eu só sentia alívio por ter deixado para trás um idiota de terno. Mas a relação com bab@cas estava longe de terminar: até pessoas que eu considerava amigas chegariam a me discriminar porque tinham "dinheiro" e um "bom emprego". Mas como eu não sou um idiota de terno, lentamente deixei todas elas para trás.

Esse, do ponto de ônibus, felizmente nunca mais vi. Que sorte!

Continuo pobre, estou desesperado mas meu par de bermudas e chinelos me deixa feliz. Ultimamente tenho escrito livros. 


@pauloandel

Tuesday, December 13, 2022

Alvorada de futebol

Acordei com a TV ainda ligada na reprise de Argentina x Holanda - os hermanos já estão na final da Coupe du Monde. Espiei, levantei e bebi um copo d'água, não foi o suficiente, abri uma latinha de Fanta Guaraná e um pacotinho de amendoim. Quatro horas da manhã, eu achava o cúmulo alguém acordar à essa hora mas não sou um idiota: milhões de pessoas estão em pé neste momento rumo a ônibus e trens em busca da sobrevivência por meio do trabalho. É desumano. 

Li o post da Claudia Sobral e me solidarizei. Cadê nosso sono? Eu sou uma bomba de problemas insone, prestes a explodir e tudo que não quero são discursos hipócritas em meu enterro um dia, que espero estar longe daqui. Sempre odiei a hipocrisia. O que tiver de fazer, faça logo. O resto é hipocrisia e canastrice, é discurso para boi dormir - e eu sou um boi insone. 

Do nada, lembrei de Karl-Heinz Rummenigge. Um grande craque do meu tempo. Ele jogou demais. Nunca vi ninguém chamá-lo de fracassado ou covarde ou limitado porque não foi campeão mundial - seria ridículo. Onde está Rummenigge? Bom, agora Messi está redivivo - era um fracassado para muitos, com todo o ridículo desta sentença, mas a chance de fechar a carreira com a Copa do Mundo o reabilitou a ponto de muitos brasileiros louvarem-no, esquecendo-se das besteiras que diziam até um mês atrás porque essa é a vocação de parte considerável do nosso povo: dizer besteiras sem pensar. Se pensassem, teriam vergonha do que dizem. Assim, Messi voltou a ser o que era para muitos de nós, um cracaço dos maiores, o que não quer dizer que tenha superado Maradona e vários nomes brasileiros. É um grande craque e ponto. 

Falo de futebol na madrugada para me entorpecer e aliviar. Sem futebol, talvez eu nem tivesse chegado até aqui. Certamente escrevo sobre muitas coisas, mas futebol é praticamente meu oxigênio. Ele alivia a dor da minha família morta, da perda de amigos, das traições dos falsos ex-amigos, da ingratidão medíocre e mesquinha, das contas que enforcam, da tristeza de ver tanta gente sofrendo o tempo todo. Sem futebol, meu suicídio seria fato consumado. É minha igreja, mas não sou fanático: apenas amo. 

Deixo Rummenigge e lembro dos meus botões em 1979. Faz muito tempo. Eu ganhei um Fluminense e um Flamengo da minha mãe, comprados nas Lojas Americanas de Copacabana, bem ao lado do consultório do nosso dentista, o Dr. Amílcar no Edifício Ritz. Dois times novinhos, você colava as carinhas dos jogadores nos botões. Edinho, Pintinho, Zezé, Miranda. Já são 43 anos e penso nisso como se fosse semana passada. 

Provavelmente perdi mais uma batalha para a insônia. O jeito é ligar no Hora 1, ver as mesmas notícias de ontem à noite, encarar a realidade dos fascistas impunes no terrorismo impune em Brasília. Mais um dia de muita preocupação pela frente. Mesmo assim sou um privilegiado, por incrível que pareça com as dívidas colocando meu pescoço na guilhotina: tenho um bom ventilador, uma cama confortável, um jornal na TV e posso descansar até dez da manhã, pelo menos. Eu tenho o futebol. 

Atrás da cortina azulada, o dia claro dá sinais de vida. Escuto um silêncio enorme. Não há ninguém por perto, ninguém. Pensando bem, raras vezes teve. Lá vem mais um dia. Há dor, depressão e também a sorte. 

Paz na terra aos homens de boa vontade. Rolam os dados. O que tiver de ser, será. 


@pauloandel

Wednesday, November 30, 2022

Um cãozinho elegante


Na esquina abandonada da Praça Tiradentes, um cãozinho assume um ar de lorde e flana tranquilamente até sua casa. 

A porta do Teatro Carlos Gomes, fechado e desprezado, um palco tão importante para a arte brasileira. 

O cãozinho elegante mora ali com sua família, que parece ser um senhor e seus dois filhos, um que talvez tenha uns catorze anos e o outro, uns dez.

Estão ali há alguns dias. Nunca ficam muitos dias. Eles precisam circular e escapar dos perigos noturnos. São muitas pessoas sofrendo ali há anos, desde que montei meu pequeno negócio.

Quando passo, vou e volto do trabalho, talvez eles pensem que tenho uma vida muito melhor do que a aparente. Eu tenho certeza de que eles sofrem muito, e isso me rói a alma. Tenho sofrido esta dor há cinquenta anos em vão, porque o mundo pode ter mudado demais, mas não no essencial. E sei que fui derrotado: morrerei sem ver o fim de tanta humilhação. Perto da desgraça que é ver semelhantes sofrendo na rua, ainda mais crianças, nada do que realizei de bom na vida tem importância. 

Um cãozinho elegante não liga para dinheiro, miséria ou sofrimento. A ele basta alguma comida e água, mais a proximidade de sua família, que tanto sofre mas ele não entende. Vai e vem, livre, sozinho, sem regras. Corre até riscos. 

Apressados, os carros da Pedro I passam com velocidade a caminho de casa. É Copa do Mundo, é a saída do trabalho, os churrascos e festejos exigem pressa. Ai de quem atravesse a veterana esquina sem atenção.

Ainda tenho um quilômetro para chegar em casa. Não sei dizer se amanhã a família do cãozinho estará lá. Talvez nunca mais o veja, mas tirei uma fotografia dele para nunca mais me esquecer de sua elegância, a mesma que falta em tanta gente que só tem dinheiro, mas sobra naquele simpático viralata caramelo que perambula pela vida e, por alguns segundos, oferece alegria para cada um de nós, ainda humanos. 

@pauloandel

Wednesday, November 16, 2022

Isabel

Os mais jovens talvez não saibam, mas as garotas do vôlei dos anos 1980 eram de arrepiar. Foi o tempo em que o Brasil descobriu um novo esporte para se apaixonar. E o Rio era vôlei pra todo lado. 

Jogadoras como Dulce, Vera Mossa, Regina Uchôa, Jacqueline, Sandra, Ida, Helga e Heloísa eram o hit esportivo. Claro, Isabel era a líder, a musa, a falante, a garota cheia de atitude mesmo, um símbolo da cidade. 

Jogou demais, até grávida. Foi um ícone da Seleção. Jogou na areia. Treinou. Discutiu com cartolas e treinadores, se rebelou, foi punida, recorreu. Bateu em bandido na rua. A imprensa adorava sua franqueza para todos os assuntos e ela não deixava barato. Aos poucos, formou sua própria família de campeões mundiais, seus filhos. 

Minha última lembrança de Isabel ao vivo foi pouco antes da pandemia, num evento político na ABI. Casa lotada, ela e uma de suas filhas, as duas incrivelmente incógnitas na multidão. Pensei em amolar, não fui. Ligaram um telão, então ela se deitou no chão e colocou a bolsa/mochila como travesseiro. Não tinha jeito: eterno perfil da jogadora descansando em quadra. O Pipo estava comigo, desceu e subiu oito andares pra buscar uma cerveja, me deu e fiquei pensando: "Apesar de toda a tragédia que estamos vivendo, a vida é isso". Isabel deitada de bobeira, Pipo com sua cerveja, as pessoas lutando contra o caos golpista do Brasil. 

Não amolei Isabel, achei que teria muitas outras vezes. Ela era das nossas, sempre na rua, sempre acessível. Saber de sua morte em pleno voo, ainda com muito a fazer, dói na alma. Aos 62 anos, ela ainda tinha aquele ar de garota carioca, com atitude, que Fausto Fawcett escreveu tão bem: "suingue sangue bom". Todo mundo perde: o Brasil, o Rio, o esporte. Aquelas tardes incríveis da zona sul dos anos 1980. A juventude madura ainda com muitas partidas a disputar. 

Ela era do barulho.

@pauloandel

Wednesday, November 09, 2022

Gal Costa

Quando um país perde um de seus patrimônios culturais, o impacto sempre será devastador, mas o tempo fará com que a arte se sobreponha à tristeza. É e será o caso de Gal Costa. 

Uma das maiores cantoras do mundo, louvada e celebrada por gênios como Tom Jobim e Caetano Veloso, Gal atravessou mais de meio século no topo da arte brasileira como uma de suas principais vozes. 

Nada lhe faltou. Foi roqueira, musa, transgressora, romântica, festeira, desafiadora, regional, jazzy, tudo. Começou gigantesca e se manteve em pleno voo. Popular e sofisticada, elegante e certeira. Pergunte a qualquer ouvinte na faixa dos setenta anos sobre o que significavam as Dunas da Gal. 

Depois de uma carreira já enorme, caudalosa, na última década Gal Costa fez o que se espera de um grande artista: o desafio. Gravou um álbum com novas sonoridades feito todo por Caetano, mais outros com novos compositores da cena brasileira. Inovou, surpreendeu, arriscou. Atravessou o século XX e teve sede para as inovações do novo milênio.

Voz única, de extraordinária afinação em todos os tons, adequada tanto para o American Songbook como para hits alucinantes como "Festa do interior", Gal Costa foi cantora e intérprete ímpar. Sua combinação de beleza, elegância e energia são referência na música do Brasil. Uma força da natureza insuperável, que sempre irá servir de farol para todas as cantoras que ainda teremos.

Gal é Tom Jobim, é Chico Buarque, é Caetano e Gil, é Tom Zé, é Dorival Caymmi, é Waly Salomão, é Gerald Thomas e também todos os compositores que recentemente registrou, tendo como exemplos Rodrigo Amarante, Zeca Veloso, Seu Jorge, Zé Ibarra, Rubel, Jorge Drexler, Criolo, Tim Bernardes, António Zambujo e Silva, mais tantos outros. Ela, que foi abraçada ainda jovem por tesouros como Tom e Caymmi, abriu seus braços para o novo e abriu caminhos para muita gente. 

A morte é inevitável, mas há muito tempo Gal Costa já tinha fincado seu lugar na imortalidade artística. Fica uma longa e definitiva estrada. 

Já a dor é indescritível. Há pouco, Zélia Duncan disse "perdemos uma Beatle". Para nós, brasileiros, o tamanho é exatamente esse. 

@pauloandel

Wednesday, October 26, 2022

um leitor

Por ocasião do lançamento de seu livro, Susana Naspolini foi certeira ao dizer no lançamento que, se a obra tocar uma única pessoa, já cumpriu sua missão. E é isso mesmo. Basta uma.

Já me aconteceu várias vezes. Muitas. Milhares. Gente que chorou (muito), que sorriu, que se identificou. Gente que viu ficção na realidade e o contrário também, às vezes ao mesmo tempo. 

De certa forma é o que trago de melhor comigo sobre isso. Amigos, colegas, conhecidos, gente que nunca vi antes e que me mandou uma mensagem de agradecimento. Já recebi muitas e muitas. Claro, alguns xingamentos também, mas esses são mero fruto de inveja e recalque. 

Já dizia Ivan Lessa: "O cronista fala sozinho diante de todo mundo". O cronista, o poeta, o escritor. 

O cineasta, o teatrólogo, o escultor. O artista em qualquer lugar. 

Você sonha, pensa, produz, coloca o conteúdo numa garrafa e a atira ao mar, esperando que um dia alguém a ache e abra. 

Da pequena parte que me cabe nisso, escrever, penso que precisa ser feita com alma, com garra. O melhor texto não precisa ser perfeito em termos ortográficos - algo muito discutível por sinal -, mas precisa passar sentimento, fazer com que o leitor tenha mergulhos profundos e voos rasantes. A força da mensagem vale mais do que o tecnicismo. Os grandes livros muitas vezes são os mais simples. 

Escrever publicamente já me levou a muitos lugares e pessoas, já me deu muitas alegrias e reflexões. No começo do século XXI, eu sonhava em ser um autor publicado e pensava em como isso seria sensacional. É mesmo, muito. É uma emoção que se repete, tanto faz se com 100, 200 ou 4.000 exemplares - o sentimento é exatamente o mesmo. Abrir a caixa e ver o novo livro é rever o grande amor. Eu recomendo. 

Que Susana esteja bem, onde quer que esteja. Que sua jovem filha tenha todas as forças para seguir em frente. A cidade está triste, não sem motivo. Por ora, joguemos nossas mensagens no mar, esperando retorno algum dia. 


@pauloandel

Saturday, October 22, 2022

noites no campo 1

NOITES NO CAMPO - 1 

DAS DORES

A gente conversou poucas vezes, devido à natural separação entre os escoteiros e os seniores, ao menos naquela época. Mas ele era um bom sujeito, divertido, na dele. Quando sorria, lembrava o Brasil verdadeiro: o menino negro, morador de favela, lutando contra dificuldades mas com uma sinceridade imensa em sua boca cheia de dentes. 

Tinha o apelido de Das Dores, referência a um personagem do programa de humor de Chico Anysio. Lá vem Das Dores, lá vai Das Dores. Ele ria e seguimos em frente. Se não estou enganado, ele tinha uma irmã bonitona que chegou a ser escoteira, mas posso estar me confundindo porque o tempo passou. 

Estávamos acampados no Forte Imbuhy, uma das maravilhas do estado, cravado em Niterói. Pode ter sido a Semana Santa de 1984, um ano em que, para mim, parecia que tudo ia dar certo: beijos numa garota linda, todas as notas acima de 8, o Fluminense atropelando todo mundo. E uma temporada com uns dez acampamentos. Imbuhy é o máximo: silêncio, uma linda praia particular e os mistérios do Atlântico Sul. Lá longe eu via Copacabana e pensava: se tivesse uma lancha, dava para chegar muito mais rápido em casa. 

Talvez na quinta, quase certamente. Os escoteiros iam fazer feijoada e, consequentemente, precisavam de panelas grandes para o arroz. Eu estava de bob na beira d'água com o Fred, curtindo a folga, quando o Das Dores passa pela gente, começa a acontecer um zum-zum-zum, um fuzuê e, a seguir, o caos. 

Areia é um bom componente para tirar gordura de objetos. A gente já sabia, mas a garotada descobriu lá. Virou moda arear as panelas com areia e depois lavá-las lá na bica perto dos banheiros, a uns 500 metros de distância.

O problema é que o Das Dores teve uma ideia falha de economia de escala: em vez de arear a panela com calma, aos poucos, ele a encheu de areia, limpou e... a jogou na água, achando que a natureza faria o resto do serviço. O problema é que, com o peso da areia, a panela imediatamente afundou e, trinta segundos depois, foi tragada pelas águas do Atlântico. Eu mesmo, que era bom nadador, tentei resgatá-la sem sucesso. 

Num acampamento, perder uma panela grande é um desastre. Resultado: a feijoada saiu, mas os seniores só almoçaram no fim da tarde, pois tiveram que emprestar as suas panelas para que os juniores fizessem o almoço primeiro. Cheios de fome, queríamos matar o Das Dores, mas só por dez segundos: ele era gente boa. 

Um raio cai duas vezes no mesmo lugar? Cai. No dia seguinte, sexta, era dia de peixe com arroz e salada. É claro que ninguém esperava que o Das Dores não tivesse entendido a zebra da véspera, mas deveríamos. Impávido, ele foi para a praia lavar a panela, repetiu a mesma besteira e é claro que o recipiente foi morar em Atlântida, o reino perdido do mar. Ao mesmo tempo que os escoteiros ficaram enfurecidos, Das Dores tomou uma suspensão de um dia mas ninguém queria o mal dele, não era a nossa. 

No sábado, o pessoal foi liberado para ir para a praia. Só o Das Dores estava punido, coitado. Eu e Fredão estávamos lavando alguns pratos na bica perto dos banheiros, bem cuidados pelo cabo "Queijo Minas" (depois eu conto essa história), que por sinal era um sujeito engraçadíssimo. Dia ensolarado. 

Lá vem o Das Dores, chega perto, abre o sorriso largo e diz "Pode deixar que não vou perder mais panela não". Rimos, claro. Aí ele pediu um pouco de detergente, passei pra ele. Em cinco segundos que nos distraímos, ao olharmos para o lado Das Dores tinha feito xampu com o ODD azul, e a cabeça celeste espumante.

"Tem problema, pessoal?"

Foi o tempo de Fred se abaixar, encaixar a mangueira na bica e acertar um jatão d'água na cabeça do Das Dores. Ele ria, pedia desculpa. A gente ria e não se tocava que ele não entendia certas coisas porque não era orientado. Éramos garotos. 

Pouco tempo depois, infelizmente ele se afastou. Deu um tempo, ia voltar, esperávamos que ele viesse para os seniores, não veio. Dizem que se meteu com o tráfico e dançou. Fomos derrotados. Ficou a lembrança daquele sorriso imenso debaixo da espuma azul do ODD.

@pauloandel

Saturday, October 15, 2022

ser alguém na vida

Há pouco, falava um garotinho na TV, entrevistado numa sala de aula, algo como "Estou estudando para ser alguém na vida". 

O tempo passa e repetimos isso. Ser alguém na vida. Todos somos alguém, independentemente de bens, títulos e poder. 

Claro que estudar é importante demais, para tentar entender as coisas, o mundo, progredir, pensar, evoluir intelectualmente. Claro que é importante. Mas todo mundo é alguém, rico ou pobre, talentoso ou medíocre.

A gente cresce com medo de não ser ninguém, mas isso é mentira: somos corpos com sonhos, vontades, sentimentos.

Eu sou alguém na vida? Sei lá. Eu sou o Paulo. Acho que sou alguém legal. Eu sou um homem pobre, um camelô que junta pessoas de todas as idades e posses nas situações mais loucas. Sempre foi assim. 

Por ter crescido no bairro mais plural do mundo, nunca fiz contatos e amizades por causa de interesse. Sempre foram situações naturais. Filhos de porteiros, moradores de favelas, de quitinetes, de apartamentos gigantescos e coberturas, às vezes todos no mesmo jogo de bola ou no botequim. Ou na praia. Na praça

Não ser ninguém na vida? Todo mundo é alguém desde que nasceu até o caminho inevitável da morte. Todo mundo. 

Há os que escolhem caminhos tortuosos, arrogantes, tudo porque não sabem lidar com o próprio anonimato e a desimportância, mas até eles são alguém. 

De resto, a morte vencerá a todos. A arrogância chega a ser ridícula. 

@pauloandel

Thursday, October 06, 2022

Ota, sem noção

Há uns doze anos, conheci um cara que achava maneiro, por causa de futebol. Não sei se por causa de algum livro meu. Acho que foi. Vou chamá-lo de Ota. Depois vocês vão entender. 

Enfim, o fato é que eu tenho um site sobre futebol que funciona com trabalho voluntário. Não dá um tostão, mas certamente prestígio por vários motivos. E tem uma equipe grande, divertida. Já fizemos muita coisa juntos e, cá entre nós, eu tenho uma carreira longa em crônicas e livros de futebol. 

Um belo dia, chamei Ota para participar comigo de vídeos que gravávamos regularmente para o site. O resultado foi divertido, ele era engraçado, falava alto e, apesar de certa empáfia que costuma reinar quando o debate é sobre futebol, comentava coisas interessantes. Tudo bem. Logo depois, veio a pandemia e passamos à era do Streamyard.

Meu primeiro erro foi, baseado no bom texto falado, convidar Ota para colaborar como cronista sem ter lido seus escritos. Não foi a primeira vez que cometi esse erro, mas certamente foi a última. Ao receber o primeiro original, caí para trás: o texto era tão ruim, com tantos erros de Português e coesão que a única saída era reescrevê-lo por completo, basicamente usando só o argumento original. Paciência, eu preciso de opiniões diferentes, isso me fazia gastar meia hora a mais a cada coluna publicada, tudo bem. Acrescentava ao site e à equipe. Nada que não aconteça em todos os veículos sérios que possuem revisão de artigos. Errei, acontece. 

Enquanto isso, num trabalho voluntário, nada poderia ser pior do que ter alguém na equipe que frequentemente se indispunha com os companheiros, tratando as opiniões de todos como coisa menor e chegando a ridicularizar os colegas em nosso grupo de Whatsapp. Foi o que começou a acontecer, para minha desagradável surpresa - minha impressão antiga de Ota era muito diferente da que via na labuta diária. As pessoas reclamando em off comigo, eu tentando contemporizar, Ota não ajudava em nada com seu excesso de arrogância que, muitas vezes, parecia uma espécie de defesa contra a própria mediocridade - atenção para o uso respeitoso dessa palavra. Ou contra bullying, que provavelmente sofreu demais na juventude devido a seu estilo aparentemente engraçado. Enfim, o tipo de coisa que pode destruir um trabalho inteiro. E gente no meu ouvido: "eu vou mandar esse cara TNC"...

Depois da vigésima vez, chamei Ota em particular e o alertei dos problemas novamente. Seu pedido foi "Pelo amor de Deus, só não me tira do grupo porque eu gosto muito de estar lá". Bobo, me comovi por isso e deixei passar. 

Ocorrência 21, 22, 23...32... Mais de um ano. Como nada é para sempre, na ocorrência 44 aí eu falei em público que iria puni-lo. Sua resposta foi "Me tira logo dessa merda que eu não aguento mais". 

Depois de tanto falar em vão com alguém que parecia desprezar a tudo e a todos, acabei achando a ideia boa. Tirei. 

Na hora me senti mal, porque é muito chato quando isso acontece e, apesar de tudo, o colaborador deixou um trabalho legal, mesmo que fosse 99% finalizado por mim. De alguma maneira, fizemos juntos. Mesmo longe de ser brilhante, teve sim sua importância. Valem a essência, o argumento, só que não valia o desgaste. Em particular, umas dez pessoas vieram agradecer o desligamento de Ota, num carnaval desagradável que só se repetiu meses depois. 

Meia hora se passou, mensagem no WhatsApp: "Fica aí com seu amiguinho puxa-saco de merda". Eu sou legal, mas também posso não ser e respondi à altura. Acabou, tchau, bloqueei. Vida que segue. Isso foi em 2021. Depois de se indispor com dez pessoas diariamente por quase dois anos, Ota ainda achava que tinha sido injustiçado e preterido por outro colega de equipe. É admirável a vontade que todo sujeito arrogante tem de acreditar nas próprias teses.

Há uns quinze dias, encontrei Ota em Copacabana, no lugar em que morei por quase 20 anos e onde estou frequentemente. Passou com sua empáfia, fingiu que não me viu e, cá entre nós, achei ótimo: qualquer pessoa honesta se sente mal quando pune alguém injustamente. Agora, quando você pune alguém por atitudes Otas e ela comprova que realmente é muito Ota, a justiça se faz presente e você sente alívio.

Ontem tava em casa de madrugada pensando na vida e na morte, na tristeza de tudo que está acontecendo com tanta gente, aí me chega a seguinte mensagem: "Cara, acredita que o Ota tava falando mal de você num grupo e foi esculachado pelas pessoas? Chegaram até a perguntar se ele não entendeu o texto, ahahaha. E o cara ainda disse que você o expulsou do teu grupo. Comédia". 

O meu site possui a maior quantidade de material voluntário com redação própria sobre um clube de futebol no Brasil, com mais de 20 mil páginas. Por ele, já passaram ou estão presentes mais de 90 colaboradores em mais de dez anos. Os integrantes da equipe, ativos e não ativos, reúnem somados quase 60 livros, sendo 40 sobre o nosso time e 21 de minha autoria. Produzimos conteúdo diário publicado e audiovisual nas redes sociais/plataformas. Ah, também temos a maior série de e-books grátis sobre um clube de futebol no país.

Tudo isso faz parte de um tesouro que talvez interesse a pouca gente, mas que já chegou a centenas de milhares de pessoas. Ah, sim, nem tudo são flores: tivemos três integrantes expulsos desde 2012, num universo de quase 100. O primeiro vive elogiando o site e os integrantes publicamente, mostrando que os desentendimentos há muito foram superados. Os números falam por si, neste parágrafo e no anterior.  

Todo dia eu recebo algum print falando mal de mim, me xingando, me elogiando, me agradecendo. É normal. Além do mais, para o desespero de meus poucos detratores, sou invejado. Estou nessa há muito tempo, me exponho publicamente e não escrevo para agradar ninguém além de mim mesmo. É o critério para publicar: eu tenho que gostar. Já joguei milhares de crônicas, artigos e resenhas fora, algumas com 90% prontas. Colaboro noutro site com mais de 250 mil seguidores, já fui correspondente estrangeiro, milhares de coisas que escrevi já foram publicadas em O Globo, O Dia, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, Folha de São Paulo, Estado de Minas, PINN, Brasil 247, Museu da Pelada e Correio da Manhã. 

O que não é comum é ser mal falado por alguém que, em mais de uma vez, eu estendi a mão, inclusive integrando com outras pessoas e ambientes legais, interagindo com pessoas que jamais o fariam se não tivesse sido por meu intermédio. Se Ota contasse a história inteira de forma honesta, talvez fosse rejeitado por muitos interlocutores. 

Mas, enfim, esse era apenas um simples post de blog, que só ficou com tamanho grandão para mostrar a distância entre alguém que trabalha em grupo e tem currículo, comparada a um candinho de WhatsApp. Isso não se mede por bens, cargos e ostentação, mas por realizações e currículos. Quem tem currículo e realizações, mostra e produz mais; quem não tem, fala mal dos outros pelos próprios vícios que carrega em si. É uma opção de vida. 

Nenhuma mágoa de Ota, mesmo. É que já encheu o saco. O que tenho é somente pena. 

Há pessoas tão pobres que só possuem dinheiro. 

@pauloandel 



Monday, October 03, 2022

900 metros livres

Desço do trabalho às cinco da tarde. O faturamento de hoje foi bom. Se fosse todo dia, eu não precisava brigar com o suicídio. Vendo coisas muito boas e difíceis, mas todo mundo está pobre. 

Falo com meus amigos porteiros e aviso que Jocemar ainda está na loja. 

Na calçada, pulo duas tampas de esgoto vazando. 

Metros depois, bem em frente ao Teatro Carlos Gomes, fechado, seis pessoas em situação de rua se encolhem de frio. Uma delas brinca com um cãozinho minúsculo. 

Boa parte da quadra seguinte tem as lojas fechadas. Cumprimento o dono da Loteria Regufe, sou cliente há 30 anos. 

Chego à esquina da Lavradio. O bar está fechado e, na porta, está praticamente desmaiada outra pessoa em situação de rua. 

[o primeiro dia útil do mês é gelado, cinza e deserto no fim do expediente. 

[dizem que a economia está melhorando, mas só se vê vazio, silêncio e olhares tristes. paro e penso no que será feito para mudar essa tragédia. 

Todos os bares estão de folga. As calçadas abraçam o silêncio. 

Passam dois garotos humildes, com seus bonés e mochilas, passos apressados a caminho da Central e um pacote de biscoitos rachado. Provavelmente estão almoçando ou jantando. As pessoas fingem não ver, mas no Centro do Rio o prato de comida mais popular é o pacote de biscoitos. Sempre há jovens e adultos indo e vindo com biscoitos para disfarçar a fome. Sempre há pessoas fingindo que não veem nada. 

A rua do Senado, outrora via de tráfego intenso, está completamente vazia. Na esquina com a Gomes Freire não há um único carro no sinal. O Armazém tem seus clientes de sempre. Hoje, poucos. Está frio. 

Quatrocentos e cinquenta metros. 

Na delegacia, o inspetor com a barba bem grande conversa com um colega de trabalho. Alguma coisa sobre games. 

Olho para o prédio da Isys e fico pensando em que apartamento ela mora. Acabou que somos amigos há anos, vizinhos há meses e não sei. Tudo bem, não faz diferença, era só curiosidade. 

Dois garotinhos chutam bola na porta do prédio ocupado. Ah, a bola, o futebol, esse amor torto que salva e destrói vidas. Tudo que eu queria era voltar a ser um garoto e chutar uma bola, nem que fosse as de isopor em Copacabana.

Setecentos metros.

[ontem eu conversava com Abílio bem na porta do prédio do Fred, em Copacabana. Tinha um causo da bola que fica para depois. 

Na Nova Petrobras, descem batalhões de estranhos com suas roupas corporativas de cores neutras, suas mochilas com notebooks e fones de ouvido que ajudam a apagar o cotidiano triste. Todo mundo é muito parecido. Os mais ricos correm para os táxis, os assalariados seguem em comboio na direção do Metrô Carioca.  Salários à parte, todo mundo é muito parecido. Mais à frente, uma turminha sempre se encontra com seus cachorros, é uma alegria. Eles brincam. Eu penso no cãozinho do moço sofrido na porta do Carlos Gomes, fico triste e ninguém se importa com isso - as pessoas têm mais o que fazer. 

Passo na quitandinha recém-aberta, compro pão para depois fazer um queijo quente. Um guaraná também. Gosto da lojinha pequena, acolhedora, com jeito de antigamente. As pessoas são muito educadas lá. Os produtos são um pouco mais caros, mas eu sempre compro pouca coisa, então não tem tanto impacto assim.

Oitocentos e cinquenta metros. 

Está frio. Não há carros na rua. Nem parece o primeiro dia útil do mês. Quais são os dias inúteis? 

Atravesso para chegar à portaria do prédio. Falo com o Maurício, ele é bem legal. Sinto alívio: não é hoje que eu vou ser preso nem despejado ou deportado. Mas penso em todos os meus grandes amigos e quase todos estão definitivamente mortos, portanto sou o solitário repórter de meu tempo.

Novecentos metros livres. 

Sou um artista anônimo, um camelô falido, um estatístico constrangido, um escritor deprimido, um cidadão humilhado num país de merda. 

Pego o elevador e torço para que ele fure o teto e decole em velocidade estelar para o infinito. Dada a impossibilidade, salto no oitavo andar, me tranco na casa que não é minha, penso, choro, me vejo sem saída e então tomo um banho gelado, verdadeiro suicídio nestes tempos. Me deito e ligo a TV para me fazer companhia, pouco importando o que é dito ou exibido. 

Preciso revisar um livro e não consigo me concentrar. Não tenho condições. Meus joelhos doem. Minha coluna dói. Deitado, tento procurar um bem precioso que nunca tive em mais de cinquenta anos: a paz. Isso não me impediu de dizer coisas alegres, escrever poemas, namorar belas mulheres, olhar o horizonte para tentar desvendar os mistérios do mar, nem de me divertir com meus velhos amigos - hoje quase todos mortos -, mas o fato é que eu não sei o que é paz. Chutar bola de garoto é coisa que passa rápido demais. 

@pauloandel

aeroporto

Eu já tive pavor de viajar de avião. Pavor no sentido estrito da palavra, a ponto de fazer todas as viagens profissionais pelo Sudeste de ônibus ou carro. Porém, em certo momento fui obrigado a ir com frequência para Brasília, o que mudou o cenário para sempre.

Quase sempre, por conta do ódio que uma funcionária da empresa tinha por mim, minhas passagens eram invariavelmente marcadas para os horários mais cedo, aumentando a tensão, o medo de perder a hora, a preocupação com o táxi etc. Como se fosse agora: são 4:37h. Para chegar hipoteticamente ao Santos Dumont às 5:30h, teria tempo mais do que de sobra. Só que não era tão fácil arrumar táxi na madrugada, nem existia VLT. 

Por dezenas de vezes ao longo dos anos, acordar antes da hora inutilmente foi uma rotina para mim. Isso sem contar as viagens bate-e-volta, duas num único dia, verdadeira tortura para minha pobre coluna. E tome remédio, cânfora, alongamento, convivência com a dor. Havia quem achasse frescura, por simplesmente ignorar o problema. A velha ignorância que explica muito do que estamos vivendo. 

Era tudo tão pesado que, todas as vezes que a insônia se repete mesmo que por outras razões, a cena me remete àqueles dias. Caso de hoje e das próximas semanas, onde a sobrevivência de milhões de pessoas - inclusive a minha - está em jogo. Mas sempre lembro de um momento de alívio ao fim do dia: quando os pneus do avião tocavam a pista do SDU. Dava uma leveza enorme, e dali até o desembarque a sensação era ótima: o sentimento de missão cumprida, ainda que as dores na coluna fossem prorrogadas por dias. Depois era só pegar o táxi e, na fase final, o VLT, para rapidamente chegar em casa, tomar um banho e descansar. 

Atualmente eu vou para o trabalho a pé em 90% das vezes. As dores na coluna têm outros motivos. A insônia piorou um pouco, mas não é só por mim: há outros componentes. Pensar no próximo custa caro. 

Cinco da manhã. Insônia. Vai começar mais uma semana. Os próximos dias vão ser decisivos para milhões de pessoas no Brasil - e muitos nem se atentaram para isso. A vida cansa. 

Ao longe tem alguém chorando na rua. Certas coisas nunca mudam. 

arp

Thursday, September 29, 2022

três historietas

ABÍLIO: FÉ NA LOTO 

Onde foi parar o meu amigo Abílio? Ele era um dos caras mais legais e educados que conheci na vida. Estudamos juntos no Pedro Álvares Cabral em Copacabana, 1983 e 1984, turno da noite. Se eu não estiver enganado, ele trabalhava como almoxarife na Construção Civil. Era irmão da Soninha, que era linda demais. 

O que mais lembro dele é que me remete a um modelo de cidadão carioca que parece ter chegado à extinção: o sujeito que pode até não saber teu nome, mas te cumprimenta com simpatia mesmo que você passe do outro lado da rua. O homem gentil, que por isso mesmo colhe gentileza e bons sentimentos. 

Naquele tempo nem existia a Mega Sena. Era só a Loto, que hoje é chamada de quina. Volta e meia o Abílio tinha uns volantes à mão, ora anotando, ora dando um pulo na loteria antes da aula. Várias vezes eu o cumprimentava com os jogos e ele dizia "É, Paulinho, fé na loto!". Certamente apostei mais por causa dele. 

Nem sempre consegui, mas fiz tudo para imitar o Abílio no trato com as pessoas. Sua educação e gentileza eram supremas. Não nos vemos há quase 40 anos, mas nunca me esqueci dele. Continuo jogando, apostando, tentando. Já ganhei vários prêmios pequenos. Agora mesmo a Mega Sena acumulou em 300 milhões e estou organizando um bolão com amigos, aí me vem à mente aquela sentença inesquecível: fé na loto. 

Na turma da noite, eu era dos mais novos, entrei com 14 anos, era uma criança. Alguns alunos mais velhos ou desprezavam ou caçoavam dos mais jovens - e não é à toa que eu tenho tantos colegas mais jovens. O Abílio não: ele tratava todo mundo bem. Emanava simplicidade. Quarenta anos depois, ele ainda é uma referência para mim. Fé na loto, é o que resta.

[Com 300 milhões eu mudo a vida de muita gente, muita 


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PAMPEIRO, RUA TONELERO, 1990

(repost 2019)

Em algum momento perto de onze da noite, a fome apertava depois que terminávamos o campeonato de botão. Então fazíamos a vaquinha - não era crowdfunding - e dois de nós geralmente eram os responsáveis por descer a Siqueira Campos até a Barata Ribeiro para fazer a compra do lanche nas Casas da Banha. Geralmente pão e frios. Depois da volta, montávamos os sanduíches, mais coca-cola e a festa estava pronta. Quase todo dia, toda noite sempre. 

Num dos quartos, uma poderosa guitarra não parava de tocar riffs. O outro, só usávamos para ver TV à noite ou eventualmente algum jogo. A mesa de botão ficava armada na sala. 

Ríamos, ríamos muito. Muitas vezes o Xuru chegava de ressaca e deitava no sofá, sem condições de jogar. Ao ser perturbado com cosquinhas e cutucões, imediatamente ria e disparava vários palavrões. 

Eram tempos do Hollywood Rock, de Terence Trent D'arby, de Bob Dylan finalmente no Brasil, de Marina encantando os corações cariocas, da apoteose dos Paralamas e da Legião Urbana. No carnaval, espiávamos os bailes até a madrugada. Tinha também Documento Especial. Não, o país não era bom, mas no fim dos anos 1980 a gente era muito jovem, tinha esperança, sonhava com o futuro, a faculdade, o emprego. A Holanda de Gullit e Van Basten, o Brasil incrivelmente derrotado pela Argentina na jogadaça de Maradona que Caniggia finalizou - o Xuru falou muitos palavrões. 

Quando havia mais tempo e gente, jogávamos War. Tinha sobremesa de bolo de chocolate com sorvete de creme. Às vezes o Dória vinha de pijamas do quinto andar.

Somando tudo, não convivemos lá por mais de quatro anos, mas pareceu uma vida inteira. Na verdade, foi. Trinta anos depois, aquele tempo parece mais saboroso: era uma escola de convivência de grandes jovens camaradas, que nunca mais se repetiu.


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COOLIO

Em fins dos anos 1990, a minha curiosidade musical aumentava cada vez mais. Você ouvia muitas coisas legais na MTV. Eu virei habituê da Livraria Berinjela, onde rolavam sons espetaculares: música de Cuba, progressivos italianos, o underground carioca etc. E os novos nomes da cena black norte americana. Um dos primeiros foi Coolio. Ele era divertido, tinha estilo. Atitude. 

Coolio foi trilha sonora de várias viagens que fiz naquele tempo, muitas com Bola a Itatiaia. Levávamos quilos de CDs e ficávamos ouvindo o dia inteiro - era divertido. Sem maconha, sem álcool, só o som. Ríamos. Eram viagens quase que exclusivamente musicais. 

O tempo passou, as coisas ficaram para trás e, nos sons, foi o caso de Coolio. Tudo guardado em local de carinho. Até que chegou esta noite e a notícia de sua morte. Tinha 59 anos, era novo demais. Muito antes da hora.




Sunday, September 25, 2022

um poema sujo...

UM POEMA SUJO A UMA SEMANA DO FIM DO FIM DO MUNDO

Falta uma semana para acabar o fim do mundo e isso me traz algum alívio, pequeno diante de tantas dores e tanta gente falsa, hipócrita, covarde e desumana. Por isso sinto dores e não durmo, e quando desmaio de sono posso ter sonhos loucos como o de ontem, quando tentava tirar minha mãe das montanhas da URSS em plena tempestade, trocando de aeroportos como se fossem baldeações  - é tudo verdade. Minha pobre e amada mãe, morta há quinze anos, parece viva demais em meu sonho confuso. Falta uma semana para acabar o fim do mundo, mas a minha cidade está destroçada, humilhada, caída no meio-fio e será preciso um trabalho descomunal para ressuscitá-la: todo santo dia ela é cheia de pessoas famintas chorando nas ruas, sem casa, nem comida nem futuro. Será preciso reconstruir tudo, excerto para a confortável e acomodada burguesia que, de seus apartamentos esnobes, ou finge solidariedade ou estampa a bandeira da escrotidão repugnante. Minha cidade respira por aparelhos, e é cheia de lojas fechadas, apartamentos e salas vazias, tão apavorantes que nem o fantasma de meu querido pai, um fanático pelo Centro onde cresceu e viveu, dará as caras - e continuarei sozinho porque esse é o destino de todos nós, mesmo que finjamos o contrário - a profunda solidão do ser humano, que nasce e morre sozinho, que chora sozinho nos muitos dias tristes e procura um improvável espírito da paz. 

Falta uma semana para acabar o fim do mundo e na TV Bob Dylan está cantando alto para espantar os escroques e traidores das pátrias, o que ele tem feito ao longo de décadas - ao mesmo passo que FDPS daqui desprezam heróis da cultura como Gil e Chico. Bob Dylan é também um trovador solitário - desde o dia em que leu Jack Kerouac, saiu de casa e nunca mais voltou - vejam, ele ganhou o mundo, ficou milionário, tem fama mundial e prêmios inquestionáveis mas nem isso o libertou da solidão. 

Uma única semana para que voltemos aos leves tempos do golpe parlamentar, com as cidades recheadas de quadrilhas violentas e sedentas de crânios esfacelados, e por incrível que pareça este cenário de horror é bem menos pior do que tudo que temos vivido - nós, os mortais, que ganham moedas e sofrem risco de demissão, despejo e miséria, tudo certamente desprezado por nossos falsos amigos que fazem cara de paisagem, porque o ser humano é realmente assim: oportunista, egoísta e pilantra, salvo honrosas exceções. 

O céu pode esperar, já o inferno é aqui, doloroso, desumano, mas ainda assim temos o que comemorar: falta uma semana para nos livrarmos do fim do mundo, do cheiro do ralo, do esgoto podre que advém do ideário de gente má, perversa e que comemora a dor alheia. Por isso, nosso inferno será menos infernal do que antes. Ainda há muito o que sofrer, mas existe uma luz no fim do túnel e devemos persegui-la. O ódio é a estupidez, ele não é parte natural do nosso corpo - devemos eliminá-lo. Se conseguirmos olhar para o lado e ajudar minimamente o próximo em lágrimas, seremos menos inúteis do que lacradores ou estúpidos fiscais de redes sociais, ansiosos não pelo progresso mas pela opressão covarde, pela humilhação barata do outro - os mesmos que discursam pelo moralismo são os mais escroques, e não estão nem aí para os milhares e milhares de cariocas desesperados, carregando balas de açúcar para vender enquanto não encontram a dor das balas perdidas. 

O certo é que falta uma semana para se festejar o fim do fim do mundo. Ainda virá uma longa e tortuosa estrada pela frente, mas a sensação de se eliminar a máquina de ódio que sequestrou o Brasil é um alento. Não será fácil remover a falsidade e a hipocrisia, porque elas estão consagradas, mas se for possível ter dias menos coléricos, será um alívio imediato. É o que precisamos, na verdade vocês, porque eu já estou morto há muito tempo e, por aqui, apenas cumpro a insuportável pena de lidar diariamente com a indiferença humana. Mas pouco me importa: eu não preciso ser feliz para ser um bom fantasma em carne e osso. O que me move é a minúscula probabilidade de luz no fim do túnel. O que me basta é que, daqui a uma semana, mesmo ferido de tanta morte, eu possa dizer: "Como eu festejei o fim do fim do mundo".

#otraspalabras

#andelbooks

Wednesday, September 21, 2022

palavras outras palavras

Palavras exigem prudência. Prudência.

Favor não confundir com medo. 

Prudência é sempre uma qualidade. O medo, nem sempre. 

Palavras exigem cuidado. Apreço. 

Quem as profere embebidas em fel e cólera tende a depois passar vergonha pelo que disse ou escreveu, claro, se vergonha tiver ou, no mínimo, apreço pela própria imagem.

Palavras são coisa séria quando há gente decente em campo. Merecem ser respeitadas. As pessoas também, em sua maioria. 

Pobre daquele que pensa dominar as palavras apenas com estudo formal. A linguagem popular, além de muito rica, costuma carregar sinceridade e precisão. Duas ou três palavras mal colocadas e o arrogante erudito vira um pateta, um bocó desprezado por todos aqueles que considera inferiores no jogo da palavra. A erudição vira verborragia oca. 

Quantas vezes um pretenso polemista não passa de um anônimo em busca da fama, sem horizontes mais profundos? Não lhe importa a estrada pelas melhores palavras e ideias, o caminho da fraternidade, mas apenas os holofotes de brilho efêmero na plumagem de um pavão. 

As palavras merecem andar de mãos dadas com o carinho e o apreço. Quando saem disso, se o motivo não for deveras justo, podem acabar levando o orador ao seu pior habitat: o da mediocridade.


Sunday, September 11, 2022

Xuru, Russunes, Russ

Parece incrível, mas meu amigo Xuru (Russ, Russunes, Russinho da Atlântica e outros codinomes) completa 17 anos de sua morte hoje. Às vezes, nossa turma de Copacabana fala no WhatsApp como se ele estivesse apenas dando um tempo e vá reaparecer. Não há semana em que não falamos das situações engraçadíssimas que sempre o cercaram. 

Éramos seus colegas, três mais velhos e três mais novos, juntados pelo jogo de botão. Gomão era o "pai" do Raul, Xuru o da Cler e eu do Luiz. Hoje essa configuração está diferente, mas seguimos rindo no WhatsApp, é o que resta. 

Nem sempre é justo falar quem é o melhor amigo, até porque isso muda e nem sempre pra melhor, mas o que eu posso dizer é que o Xuru foi a única pessoa que jamais deixou de me estender a mão na hora da barra pesada e, se ele estiver em algum lugar, deve pensar que a recíproca foi verdadeira. Foi mesmo. Um tirou o outro de cada roubada... Jamais nos omitimos. Sabe aquela coisa de "depois eu te ligo" e a ligação nunca viria? Com a gente isso não existia. 

Ele chamava minha mãe de mãe e só eu vi o que ela sentiu quando soube de sua morte. Eles brincavam no telefone de um passar trote para o outro, telefone fixo, imagina? Ela fingia que era uma ficante grávida e ligava pra ele exigindo o reconhecimento. Resposta: "Rãrãrãrã, você é a décima. Mãe, seu trote não engana ninguém". E riam, riam. 

Fomos em um monte de acampamentos, jogamos muito futebol, muito botão e fomos muitas vezes ao Maracanã, desde os tempos em que chegávamos mais cedo porque tinha um tal de Romário que jogava muito. Engraçado que saímos pouco à noite: ele era da pá virada, eu não. Contudo, isso não nos impediu de beber chopes gloriosos e viver situações engraçadíssimas. 

Fiz um livro sobre ele. Não gostei do resultado final. Parecia triste, nada a ver com um sujeito que vivia rindo. Tive bom senso e joguei fora, depois farei outro bem melhor. 

Quando passamos no vestibular, ele caiu comigo na UERJ, mas com chances de reclassificação na UFRJ. Ficou torcendo para ir: achava que, se ficássemos na mesma universidade, os dois se ferrariam. Ok, tinha razão, mas ele foi pro Fundão e ficou na sacanagem do mesmo jeito. Menos mal que trouxe Pepsi pra gente. 

São muitas e muitas lembranças, mas uma definitiva se deu quando fomos barrados no prédio do apartamento de seus padrinhos, que ele frequentava desde criança. O casal havia morrido há pouco tempo e ele fez um réveillon de arromba por lá. Parentes (que nunca tinham dado sinal de vida) mandaram trocar a fechadura da porta. Olhando pro prédio serenamente, ele disse:

"Quer saber? PhodaC esse apartamento. A única importância disso aí era ter meus padrinhos, e eles não estão mais aí. RAT! Vamos tomar um chope!"

Demos meia volta, fomos para o galeto da Domingos Ferreira e deixamos uns quatro milhões de reais para trás. 

[RAT é uma corruptela que inventamos para o desabafo "ratomanoku". Deve ser pronunciada bem alta, com forte sotaque nordestino. 

Então, falar do meu amigo Xuru é falar do Maracanã, de São Januário que ele tanto amava, de botões Brianezi, da UFRJ, do seu famoso carro apelidado de "travecomóvel", do CAP, do Bernardão, do cheiro da pizza do Caravelle, de Vale do Sol, Serra dos Órgãos, dos escoteiros, do antológico Bar Sniff's (ele é personagem do livro), de Arraial do Cabo, do M Ninn, do Pedro, do ex-Coruja, de uma fila de mulheres, de golaços na quadra do Corpo de Bombeiros na Xavier da Silveira (hoje um estacionamento), de gatas alucinantes da UERJ num torneio de pingue-pongue, do professor Serra Costa, da Sorveteria Bolonha, do Bonino's, da Pepsi, do Sasso, do jogo de War com cartas marcadas, do PCB, da casa do Henrique no Flamengo, do show do A-ha, do James Taylor, da Cássia Eller e de noites quase desertas na Praia de Copacabana, onde bastava uma bola razoavelmente cheia e uma trave livre para nos sentirmos imortais.

Nossa última conversa foi três dias antes de sua morte. Eu ia pra uma rápida viagem maluca, ele não queria que eu fosse, eu prometi que voltaria para vermos o jogo de domingo juntos, ele sorriu. Sabia que não daria, mas não me disse nada. Ingenuamente, eu não percebi que era a despedida - pra mim, aquilo ia durar uns dois ou três anos, não três dias. Quando voltei, ele já estava morto. Percebi na estrada, quando comecei a telefonar para os amigos e ninguém atendia: não queriam me dizer. 

Não podia esquecer: nos dois anos finais do Russo, Zé Capixaba foi muito sinistro no apoio. Respeito eterno. 

Depois do enterro, numa segunda-feira à tarde, fomos almoçar no Cosmopolita. Foi a última vez que estive no tradicional restaurante, hoje desaparecido.

Dezessete anos depois, não há como negar: meu amigo deixou uma lacuna irrecuperável. Irrecuperável. 

@pauloandel 

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#comentecomeducação

Tuesday, September 06, 2022

monstro urbano

Eu sou o monstro urbano, e por isso sou fagocitado por mim mesmo noite e dia, misturando a canção imortalizada por Frank Sinatra ao cheiro de ruas tristes que exala das grandes metrópoles. 

Ninguém abre os braços para me oferecer afago, a revolução continuará não sendo televisionada porque o grande capital não tem interesse em exibir a voz das ruas. 

Eu sou o monstro urbano e minha carne adveio da indiferença alheia. O meu sangue tem os coliformes fecais dos valões das favelas; a minha pele é tatuada pelos estilhaços das balas cruéis; os meus olhos são tristes e tortos de tanto ver a miséria subindo morros, balançando em trens e se arrastando no chão das marquises. 

Eu sou o monstro urbano inerte diante de Soraia, uma jovem e linda menina fuzilada com um tiro na cabeça por causa de um iPhone. Eu sou o monstro urbano nocauteado quando debocham de Marielle, Anderson, Amarildo, dos cinco meninos do Chapadão, do sargento Robert, do soldado e dos batalhões de anônimos tendo suas vidas ceifadas por bosta. 

Eu sou o monstro urbano que se atira dentro de latões de lixo para ter o que comer; sou o monstro urbano tão ameaçador para os ETs quando penduro minhas balas de açúcar no retrovisor do motorista. Monstro, monstro, monstro urbano com minha pele negra, meu cabelo duro, minha cara de paraíba e o nojo que os xenófobos sentem de mim. 

Eu moro numa cidade sem Comissário Gordon, sem Homem-Morcego, sem Menino Prodígio e sem a Mulher-Gato; por isso, Jards Macalé não há de me redimir. 

Eu sou o monstro urbano doidaço de crack debaixo de um plástico da Avenida Brasil. Eu sou o monstro urbano abominável que desce a Automóvel Clube em direção ao Morro do Juramento. Eu sou a selva de pedra e, disfarçado, ando pela Avenida Rio Branco, perto da Livraria Berinjela e do prédio que o BTG tarrou da Caixa, até chegar à Leiteria Mineira, pedir um misto quente com chocolate gelado, observando a rapidez dos garçons e um grupo de advogados reacionários gritando por uma intervenção militar, enquanto espero por Carlito Azevedo e Rubens Figueiredo. 

Sim, eu sou o monstro urbano parido na Baía, indigno das pedras pisadas no cais da Praça XV, mas também poderia ser o horror nas famílias sofridas e abandonadas no Largo do Paissandu quando aconteceu aquele incêndio devastador, calcinando vidas humílimas.

"Os trechos dos livros que ainda não foram escritos", Paulo-Roberto Andel, Vilarejo Metaeditora, 2018, página 35

Saturday, August 06, 2022

agosto copacabana - short cuts

A esquina da Siqueira com Tonelero é sempre tumultuada. Com o metrô, ficou mais acentuada. Tudo bem. Na estação, tem uma loja que só vende ovos de galinha. Nada pode ser mais Copacabana.

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Cinco e quinze da tarde, chego à porta do shopping, vejo o fliperama que já não existe, nem o Bradesco. Por um instante, me vem à tona uma cena muito triste em 1993: uma família em situação de rua à calçada, o pai tinha uma perna amputada, ficava numa cadeira de rodas e usava uma sonda. O homem não tem direito de esquecer das cenas de guerra. 

Dez passos adiante, o antiquário continua no mesmo lugar, mas não há o menor vestígio de Patrícia porque agora ela é uma empresária de sucesso no Leblon, acho. 

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L.O. Matta. Compro bons discos para revenda. Posso ficar até 18:20 e depois pegar um táxi para o Caravelle, mas tudo é rápido demais e, por isso, antes das seis tudo já acabou. 

Os blocos continuam iguaizinhos. É insuportável ver o Sniff's fechado. 

Meia hora antes, melhor uma caminhada pelas únicas ruas do mundo onde verdadeiramente me sinto em casa. 

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Na esquina da Figueiredo com Tonelero fica o Solar. Jogamos muitos campeonatos de botão ali, rimos, fomos efemeramente felizes e tudo acabou. Ou não. Ficam as memórias. Elas sempre vão nos perseguir. 

Botão acalma a alma. Já comemorei gols no botão que jamais se igualaram aos do Maracanã. Só entende quem vive isso. 

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Parece incrível não ter a Academia Gracie, nem a Kayat Esportes nem o Sumol na esquina. Certos estabelecimentos deveriam ser eternos, mas aí está o capitalismo para arrasar tudo. 

Já na Barata Ribeiro, eu ia comprar um chaveiro do Fluminense na loja, mas estava muito cheia. Tudo bem. 

E o CIB? Está tão diferente com a fachada azul. O vizinho, Costinha, nunca mais. A Modern Sound virou o Supermarketing. A Billboard está fechada para sempre. 

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A Santa Clara tem movimento. Onde foi parar a loja de esportes? Lá atrás tinha a Suprema, com pasteizinhos alucinantes. Senhor! 

Ok, os tempos mudam, mas será que o destino do Cirandinha era virar um hortifruti? Nem estou falando dos rococós da Casa Barbosa Freitas ou da Sloper. 

[O Metro Copacabana tinha um ar condicionado de arrepiar, literalmente 

Quando você entra na Domingos Ferreira, logo vem a arrumada e ordeira portaria do Edifício Master. Tudo está bem, o documentário foi maravilhoso, mas quem veio dos anos 1980 lembra do balacobaco. A gente tinha medo da gangue, agora tem medo das grades e do silêncio.

Antes, esqueci o nome da loja de esportes que durou muito tempo na esquina de DF com Santa Clara. O letreiro era vermelho, com fonte vintage. Por ali rolava a Tele Rio Times Square, ou era perto da Figueiredo? Ninguém liga. 

Prédio do Sesc Copa, sem movimento. 

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Durante muito tempo, o prédio da esquina com a Constante ficou abandonado. No térreo, a lanchonete Top Top (será que o nome veio da canção?). Agora é uma espécie de apart hotel para a terceira idade. Eu tinha medo do prédio abandonado, com o portão acorrentado e um vigia. A Top Top tinha um excelente misto quente. 

[Meu joelho dói. Sofro calado. Muitas vezes calado. 

De cada lado da rua, a Domingos Ferreira é bem servida por dois excelentes galetos com balcão francês, conforme mandava o figurino. Também tem a filial do Caravelle, que tinha outro nome, mas a gente só se liga no original. 

Há tempos não paro ali. Preciso voltar. 

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Passo pela Barão de Ipanema e finalmente chego à quadra tão familiar, que frequentei de 1984 a 2005. 

Por um instante, eu queria ter dez anos de idade em 1979, para que minha mãe me puxasse pela mão e fôssemos lanchar no Bob's. Nós éramos felizes, mesmo com todas as dificuldades, e ainda ficaríamos em Copacabana até 1993. Uma senhora experiência. Sempre demos muito valor aos lanches, era um luxo para nós. 

Por um instante eu queria passar do Caravelle, interfonar para o Xuru descer e ele reclamar, porque não aguenta mais o cheiro da melhor pizza do mundo invadindo sua casa. 

Mãe, nunca mais. Xuru, também não. Mais do que mãe e amigo, taí duas pessoas que nunca me deixaram na mão. 

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Entro no Caravelle e me sinto em 1985, mesmo que as dores, a tristeza, as dívidas e as pressões digam o contrário. Peço uma Coca-Cola gelada, garrafa de vidro 290 ml, e espero por meus amigos. Nós nos conhecemos na casa de um deles, ainda criança, e nossa amizade se firmou em campeonatos de botão quase diários. De lá para cá, todos crescemos, vivemos, morremos um pouco e agora usamos o WhatsApp para nos sentirmos pós-adolescentes, com velhas brincadeiras ridículas que ajudam a disfarçar a realidade da vida e a marcha atlética do tempo, que sempre vence. 

Em cinco minutos, Raul chega e, por qualquer motivo, começamos a rir. Melhor assim: risos são a melhor morfina. 

Mais dez minutos e cinco jovens senhores respeitáveis pedem pizza, chopes e, pelas próximas horas, vão celebrar muitos dos melhores momentos de suas vidas. 

Não há mais nenhum dos grandes garçons do passado no Caravelle. 

O Bob's faleceu. 

A vida escorre. 

@pauloandel

Sunday, July 24, 2022

Janjão

Há muitos anos, mais de vinte, eu saía do trabalho a pé para casa e Seu Janjão me cumprimentava com um oi, um aceno de mão ou algo simples. Ele morava com a família num sobrado a metros do meu prédio, e lá ficava com sua cadeira na porta. Praticamente de segunda a sexta, todas as semanas, todos os meses em fins dos anos 1990. Nunca falamos nada além dos cumprimentos, mas eu achava legal que um vizinho me reconhecesse e se preocupasse em dar um oi. Parecia coisa boa das cidades do interior. Ele me lembrava o Seu Madruga, ahaha.

Era uma época difícil: meu pai parou de andar, o mundo desabou mais uma vez e lá estava eu sob os escombros. Amigos deram as costas, a injustiça era a sina. Ia e voltava do trabalho para casa. Tudo era racionado para que pudéssemos sobreviver (nada diferente de agora, exceto por não ter mais família). A internet estava começando e ainda viria muito ódio pelo caminho. 

Muitas e muitas vezes eu vinha pelo caminho amargurado, triste, mas perto da portaria o Seu Janjão acenava e eu me sentia melhor. Eram dias em que as pessoas basicamente só falavam comigo por motivo de trabalho. Pelo menos eu tinha a MTV para me distrair. Dureza. 

Em algum feriado em casa ou folga repentina, alguém bateu à porta numa tarde de sol. Não esperava ninguém, achei estranho, fui espiar. Era um garoto, pedindo colaborações para o velório do Seu Janjão, que morrera de manhã. Fiquei paralisado. Peguei a carteira, dei o que tinha, o rapaz agradeceu e foi batendo em outros apartamentos. Passei o resto da tarde pensando naquele senhor educado, que nunca soube meu nome mas fazia questão de me cumprimentar. Aquilo me entristeceu profundamente.  

Dias depois, voltei à rotina de trabalho. Vinha da Rua do Senado, pegava o último trecho da Mem de Sá e logo o começo da Rua de Santana. Perto de casa, nenhum aceno ou oi. Não havia um cumprimento. Perdi para sempre o amigo que se preocupava comigo, mesmo que sequer tenhamos sido amigos de ofício, claro. O que importava era a generosidade, o apreço, o velho sentimento de fraternidade. 

@p.r.andel

Saturday, June 18, 2022

Paul McCartney 80

Há pouco mais de 30 anos, 32 precisamente, Paul McCartney parou o Rio de Janeiro com dois grandes shows no Maracanã. Os Beatles já tinham encerrado seus trabalhos há duas décadas, mas Paul se mantinha como a grande representação ativa do grupo - o que se mantém. E o então maior estádio do mundo ficou abarrotado, alternando momentos de coro e festa com outros que pareciam de uma procissão silenciosa: dezenas de milhares de pessoas hipnotizadas com "Something" e "The fool on the hill". 

Desde então, a caravana não para. Paul McCartney completa 80 anos neste sábado. Continuou fazendo muitas turnês de sucesso mundial e, semana passada, realizou shows com sets que chegaram a três horas de duração. Ele é, de maneira individual, um vetor de eterna juventude tal qual seus contemporâneos dos Rolling Stones - a banda, mesmo tendo perdido o baterista Charlie Watts, segue firme em seu propósito de tocar bem até o fim, e Paul não fica atrás. 

Meio século depois do fim dos Beatles, não há como Paul McCartney deixar de executar os clássicos da maior banda de rock de todos os tempos, mas nunca é demais lembrar: sua carreira de frontman é muito, mas muito maior do que a de um eventual cover de si mesmo. Paul lançou dezenas de hits solo que, uma vez reunidos, dão tranquilamente um show inteiro sem as composições dos Beatles, mesmo que isso seja impensável, isso quando não faz álbuns inteiros de grande impacto, caso de "McCartney III", lançado em 2020 e testemunho pleno da vitalidade do artista. Para quem tiver dúvidas disso, é só procurar no YouTube o batidão funk no meio de "Coming up", a força juvenil de "Jet" e os coros de "My brave face". Não importa que não sejam pérolas como as do quarteto de Liverpool: elas têm seus próprios poderes. 

É sempre difícil prever o futuro, ainda mais quando a vida está mais perto do fim do que do começo, mas uma coisa é certa: a julgar pelo momento atual, meio século depois dos Beatles, Paul McCartney ainda tem muito a fazer, dizer e tocar. Sua aposentadoria hoje é simplesmente impensável e não há como duvidar de que se mantenha em plena atividade por vários anos, esbanjando energia e até constrangendo talentos com metade de sua idade ou menos, tamanha a sua disposição física. A longa e larga estrada parece interminável, o que nos oferece a doce ilusão da imortalidade. Vivamos, pois, para saboreá-la. 

Viva Paul McCartney! Viva os Beatles! A caravana não para. 

@pauloandel

Monday, May 30, 2022

Eles não sabem nada de Copacabana

Domingo à noite, perto das nove, nove e pouca, deixo a casa de Katia na Barata Ribeiro e peço um Uber na portaria do prédio. Enquanto o carro não vem, espio a calçada onde tricolores e flamenguistas vêm e vão, voltando do Maracanã ou dos bares. É o futebol, nosso ópio admirável que faz apaixonar. 

A um minuto do embarque, o motorista cancela a corrida. Já na rua, com mais gente do que eu esperava, resolvi não pedir outro carro imediatamente e, mais do que isso, andar sobre os paralelepípedos da minha infância por alguns instantes. 

Metros adiante, o Edifício Richard, número 194, um respeitável condomínio que ganhou muitas manchetes no passado, quando era simplesmente o 200. Era um microcosmo do bairro, ou melhor, ainda é. Detestado pela burguesia barroca, admirado pelo underground, teatro do submundo, hoje casa de grandes intelectuais, escritores, professores e também de algum pecadinho, porque ninguém é perfeito. 

Desde o golpe de 2016, Copacabana ganhou uma estranha pecha, a de capital do nazifascismo tupiniquim, tudo porque os amantes da terra plana e do milicianismo político resolveram fazer suas passeatas na Avenida Atlântica, aos domingos. É certo que muitos simpatizantes da arminha ainda moram por ali, e não se pode descontar apartes históricos de um bairro cheio de elevadores de serviço por toda parte, mas na essência Copacabana nunca foi uma aldeia reacionária. Eles, os que insistem em depreciar a Princesinha do Mar, não sabem absolutamente nada de Copacabana, talvez um dos únicos lugares do mundo onde ricos e pobres ainda compartilham os mesmos espaços públicos. 

Tudo começa pela praia, que possui sua geografia política própria mas incorpora todas as tribos: gatinhas, marombeiros, craques da pelota, bonecas e muita gente que vem da cidade inteira, mas que ao chegar à terra copacabanense age como se fosse local - quantas musas do bairro não iam embora da praia via 434, 474, 415 e outras linhas de ônibus?

Se a população envelheceu e a boemia encolheu, paciência, mas não há como apagar a história de bares e boates memoráveis, dos inferninhos aos templos da bossa nova, chegando até aos botecos sobreviventes - os catedráticos de Copacabana sabem muito bem que o Pavão Azul, antes de se tornar uma potência, era um botequim humílimo mas sempre de iguarias inesquecíveis. Recém-chegado, o Parada de Copa já é um digno herdeiro da tradição do Cervantes. O Sniff's não resistiu depois da pandemia, mas acumulou histórias em meio século no Shopping dos Antiquários - deu até livro. 

Copacabana não é para amadores e calhordas, nem para ressentidos com o bairro mais famoso do Brasil, tão plural que abrigava golpistas e ditadores junto a revolucionários, democratas, estudantes, camelôs, artistas, desocupados e quem mais viesse. Palco plenamente possível da festa de "A rainha diaba", filme protagonizado pelo brilhante Milton Gonçalves, que acaba de nos deixar. 

Os detratores de Copacabana nunca viram o goleiro Renato voando em defesas para o time de praia do Lá Vai Bola, nem Tião Macalé reclamando da arbitragem numa outra partida de areia. Nunca viram o esplendor de Rogéria sendo saudada por populares à rua como verdadeira personalidade do bairro. Nunca souberam de Lina, a moradora de rua que lia o New York Times na calçada com excelente pronúncia. Nunca lancharam hambúrguer com mate na Sorveteria Bolonha, nem pizza no Sumol às duas da manhã, esquina de Barata com Figueiredo. 

Nunca viram os garotos jogando botão debaixo da escada rolante fajuta do shopping, nem Clóvis Bornay cumprimentando a todos gentilmente na porta do Coruja Bar. Não sabem sequer que o Parque Peter Pan tinha uma linda e maravilhosa baleia na entrada, por onde as crianças entravam e se encantavam. E nunca poderiam uma imaginar uma bicha maravilhosa discutindo um Fla x Flu de antigamente com um general aposentado no elevador - isso, até chegar à portaria, onde o funcionário do prédio, vascaíno, se mete no debate esportivo. 

Depois de um pequeno lapso de razão, lembro que preciso ir embora, que amanhã é um novo dia e a segunda-feira não perdoa. Aperto os botões e um carro me levará dentro de três minutos. Eu não moro mais em Copacabana, mas ela não sai de mim. 

@pauloandel