Por Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, cineasta, poeta e personagem marcante da vida cultural brasileira.
Livro de Paulo-Roberto Andel, Vilarejo Metaeditora, 2023.
Encomendas: 21 99634-8756
Não por acaso, Andel reúne numa só crônica João do Rio, ao comentar a comoção que se abateu sobre a cidade e suas exéquias que reuniram 100 mil pessoas em 1923, e o escritor de Cenas de Nova York, o beatnik Jack Kerouac.
Um dedicou sua prosa literária e jornalística à apaixonada observação da "alma encantadora das ruas", o outro ao lado obscuro do hipócrita way-of-life americano, antecipado pelo pintor Edward Hopper, uma geração antes, no contraponto da família típica dos comerciais de margarina, com suas imagens de desolação, através de seus solitários personagens.
Nosso desesperado e aflito escriba se debruça sobre um Rio contemporâneo habitado principalmente por um exército de famintos que habitam as ruas. E se solidariza com a miséria desse universo que se alastra como incontrolável pólvora da chaga social que reina, soberana, no centro econômico de nossa cidade.
"Começa o dia (...) e então estendemos nossas mãos nas calçadas, buscando míseras esmolas de felicidade."
"A alvorada ainda está escondida pelo azul cobalto do céu. As padarias ainda nem abriram. Mas a fome já se espalha pela manhã."
“Não há vagas. Não há vagas. Há desprezo, insensatez, mesquinharia, ódio, filhadaputice, escrotice, solidão."
E como um caminhante no caos que observa em sua volta, vai enumerando com sua nostálgica memória, a decadência do comércio que outrora pontuava com tradição e história a geografia mundana do Rio. Recolhe o que restou de endereços onde ainda sacia sua fome com as delícias que sobreviveram. Opus, Paladino, A Mineira - e reúne os amigos de sua pequena Confraria, uma espécie de cavaleiros das távolas redondas dos botequins resistentes.
Seu olhar de indignação não apaga o observador do entorno que emoldura sua trágica visão, como num documentário antropológico ou (novamente) numa pintura de Edward Hopper, consegue registrar, ao entrar num bar : "Há dois clientes. A atendente é loura, gordinha, bonita e olha para o outro lado da rua, como se admirasse um senhor gordo, também passando por ali. Ela fixa o olhar. Será?"
E se consola: "Continuo pobre, estou desesperado, mas meu par de bermudas e de chinelos me deixa feliz. Ultimamente tenho escrito livros."
E escreve freneticamente. Em sua coluna aos sábados no Correio da Manhã, e em dezenas deles publicados, sobre futebol e sua paixão pelo Fluminense.
Segue sua saga numa espécie de vingança contra a fome alheia e que não tem condições materiais para mitigá-la:
"Depois de comermos pastéis com laranjada na Rua dos Andradas (...) vamos lá porque é gostoso e barato (...) resolvemos caminhar até o Largo da Carioca.(...) eu pensei em fazer a minha velha visita ao Santos Dumont para tomar um sundae de morango em meio ao silêncio da Praça de alimentação do aeroporto."
E sua fixação pantagruélica continua, descrevendo um desfile de sanduíches nos endereços que ainda se sustentam em meio ao desastre neoliberal que é o responsável por essa multidão de famintos e sem teto sob onde houver marquises que os protejam das chuvas.
No entanto, consegue desfrutar da beleza da Cidade, como extrair a pérola que é a materialização da doença da ostra:
" ...então logo chego ao VLT e fico admirando a beleza noturna da região, as árvores, os prédios da Beira-mar. (o trecho do aeroporto à Cinelândia é imperdível, pela bela arquitetura ali reunida) ".
E seu olho de lince foca distante, onde "as travestis dominam os postes, o que sobrou dos orelhões, os cercados e muitas paredes. A luta pela sobrevivência exige estratégias de marketing. " (...) seis pessoas em situação de rua, mais seus três ou quatro cães de estimação, vivem a morte em vida debaixo de uma marquise."
"(...) no centro do Rio o prato mais popular é o pacote de biscoitos. Sempre há jovens e adultos indo e vindo com biscoitos pra disfarçar a fome."
" Na Nova Petrobras descem batalhões de funcionários estranhos com suas roupas corporativas de cores neutras,suas mochilas com notebooks e fones de ouvido que ajudam a apagar o cotidiano triste."
"Passo na quitandinha recém aberta, compro pão para depois fazer um queijo quente. Um guaraná também. Gosto da lojinha pequena, acolhedora, com jeito de antigamente.”
Certamente se lembrando de tempos acolhedores e sem a pressa histérica da sobrevivência atual.
Registra também fatos na sua Copacabana onde morou adolescente
("Minha terra sempre será Copacabana, mas sou um cidadão do coração da cidade"). Descreve cenas antológicas num elevador com o cantor Cauby Peixoto e seu paletó de lantejoulas azuis, Clóvis Bornay e Rogéria nas noites do bairro; a Lapa de Madame Satã e do cantor Osvaldo Nunes - que a amnésia cultural brasileira juntou ao batalhão de nomes excluídos, assassinado por dois garotos de programa.
E continua: "O Largo da Carioca em silêncio de morte às seis da tarde. O povo foi expulso pelo desemprego. Há um certo silêncio triste e indisfarçável nos arredores. Burburinho mesmo só numa fila de moradores de rua para ganhar o sopão."
"Se a população envelheceu e a boemia encolheu, paciência, mas não há como apagar a história de bares e boates memoráveis, dos inferninhos aos templos da bossa nova..."
Memorialista da urbanidade, fala dentro dele a voz da preservação desse patrimônio:
" Pela milésima vez, tiro uma foto do relógio da Mesbla. Nunca se sabe até quando o relógio estará lá ou alguém se interessará em fazer o registro."
Renomeia sua série de pequenas histórias e cunha o nome de um famoso jornal paulista, conhecido pelo noticiário de crimes, “Notícias populares”. E se dedica, como num alerta na falta da atenção das autoridades, a uma espécie de aviso aos navegantes sobre as zonas de risco.
Antes de se despedir : "A semana será puxada no trabalho e continuarei preocupado. Muito preocupado. Tentar buscar energias sobressalentes e resistir. Escrever. Torcer. Sonhar. É isso: sonhar é preciso."
Cai o pano sobre a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Um livro imperdível.