ABÍLIO: FÉ NA LOTO
Onde foi parar o meu amigo Abílio? Ele era um dos caras mais legais e educados que conheci na vida. Estudamos juntos no Pedro Álvares Cabral em Copacabana, 1983 e 1984, turno da noite. Se eu não estiver enganado, ele trabalhava como almoxarife na Construção Civil. Era irmão da Soninha, que era linda demais.
O que mais lembro dele é que me remete a um modelo de cidadão carioca que parece ter chegado à extinção: o sujeito que pode até não saber teu nome, mas te cumprimenta com simpatia mesmo que você passe do outro lado da rua. O homem gentil, que por isso mesmo colhe gentileza e bons sentimentos.
Naquele tempo nem existia a Mega Sena. Era só a Loto, que hoje é chamada de quina. Volta e meia o Abílio tinha uns volantes à mão, ora anotando, ora dando um pulo na loteria antes da aula. Várias vezes eu o cumprimentava com os jogos e ele dizia "É, Paulinho, fé na loto!". Certamente apostei mais por causa dele.
Nem sempre consegui, mas fiz tudo para imitar o Abílio no trato com as pessoas. Sua educação e gentileza eram supremas. Não nos vemos há quase 40 anos, mas nunca me esqueci dele. Continuo jogando, apostando, tentando. Já ganhei vários prêmios pequenos. Agora mesmo a Mega Sena acumulou em 300 milhões e estou organizando um bolão com amigos, aí me vem à mente aquela sentença inesquecível: fé na loto.
Na turma da noite, eu era dos mais novos, entrei com 14 anos, era uma criança. Alguns alunos mais velhos ou desprezavam ou caçoavam dos mais jovens - e não é à toa que eu tenho tantos colegas mais jovens. O Abílio não: ele tratava todo mundo bem. Emanava simplicidade. Quarenta anos depois, ele ainda é uma referência para mim. Fé na loto, é o que resta.
[Com 300 milhões eu mudo a vida de muita gente, muita
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PAMPEIRO, RUA TONELERO, 1990
(repost 2019)
Em algum momento perto de onze da noite, a fome apertava depois que terminávamos o campeonato de botão. Então fazíamos a vaquinha - não era crowdfunding - e dois de nós geralmente eram os responsáveis por descer a Siqueira Campos até a Barata Ribeiro para fazer a compra do lanche nas Casas da Banha. Geralmente pão e frios. Depois da volta, montávamos os sanduíches, mais coca-cola e a festa estava pronta. Quase todo dia, toda noite sempre.
Num dos quartos, uma poderosa guitarra não parava de tocar riffs. O outro, só usávamos para ver TV à noite ou eventualmente algum jogo. A mesa de botão ficava armada na sala.
Ríamos, ríamos muito. Muitas vezes o Xuru chegava de ressaca e deitava no sofá, sem condições de jogar. Ao ser perturbado com cosquinhas e cutucões, imediatamente ria e disparava vários palavrões.
Eram tempos do Hollywood Rock, de Terence Trent D'arby, de Bob Dylan finalmente no Brasil, de Marina encantando os corações cariocas, da apoteose dos Paralamas e da Legião Urbana. No carnaval, espiávamos os bailes até a madrugada. Tinha também Documento Especial. Não, o país não era bom, mas no fim dos anos 1980 a gente era muito jovem, tinha esperança, sonhava com o futuro, a faculdade, o emprego. A Holanda de Gullit e Van Basten, o Brasil incrivelmente derrotado pela Argentina na jogadaça de Maradona que Caniggia finalizou - o Xuru falou muitos palavrões.
Quando havia mais tempo e gente, jogávamos War. Tinha sobremesa de bolo de chocolate com sorvete de creme. Às vezes o Dória vinha de pijamas do quinto andar.
Somando tudo, não convivemos lá por mais de quatro anos, mas pareceu uma vida inteira. Na verdade, foi. Trinta anos depois, aquele tempo parece mais saboroso: era uma escola de convivência de grandes jovens camaradas, que nunca mais se repetiu.
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COOLIO
Em fins dos anos 1990, a minha curiosidade musical aumentava cada vez mais. Você ouvia muitas coisas legais na MTV. Eu virei habituê da Livraria Berinjela, onde rolavam sons espetaculares: música de Cuba, progressivos italianos, o underground carioca etc. E os novos nomes da cena black norte americana. Um dos primeiros foi Coolio. Ele era divertido, tinha estilo. Atitude.
Coolio foi trilha sonora de várias viagens que fiz naquele tempo, muitas com Bola a Itatiaia. Levávamos quilos de CDs e ficávamos ouvindo o dia inteiro - era divertido. Sem maconha, sem álcool, só o som. Ríamos. Eram viagens quase que exclusivamente musicais.
O tempo passou, as coisas ficaram para trás e, nos sons, foi o caso de Coolio. Tudo guardado em local de carinho. Até que chegou esta noite e a notícia de sua morte. Tinha 59 anos, era novo demais. Muito antes da hora.