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Tuesday, December 31, 2019

Misaque

Exatamente hoje, 35 anos. Embora tenha vivido na casa de Fred por 14 anos ininterruptos, poucas vezes passamos o Ano Novo juntos. Ele não gostava de sair, deve ter sido por isso. 

Naquela noite resolvemos ir ao Sorrento, que ficava no Leme. Doce ilusão: abarrotado. Então caminhamos pelo calçadão, vimos os fogos, o ir e vir das gentes, éramos Copacabana o ano inteiro. 

Decidimos ir ao Gordon, sempre um lanche de fé. Estava lotado, tudo bem. Pedimos vários sanduíches sinistros. Se não estiver enganado, Pedro Brito estava conosco. Talvez Coruja, Ricardinho quase com certeza. Lembro que as garotas mal conseguiram comer o primeiro e deixaram pra gente: comemos muito. Muito. 

Era o fim de um ano de glórias: grande temporada escolar, Fluzão bicampeão, campeonatos de botão, muito futebol na praia e na quadra, praia de manhã também. Grandes acampamentos escoteiros. Dinheiro não havia, mas bastava para um garoto de dezesseis anos. 

Com toda a paciência do planeta, um jovem trabalhador negro atendia cinco mil pedidos no balcão do Gordon. Seu nome era Misaque, havia a plaquinha na camiseta. Vinham o Angélico, o Diabólico, o Tudo e lá ia Misaque indo e vindo com uma tropa de sanduíches. Eu lembro de ter olhado pra ele, percebido que não tinha muita idade além da minha e pensado "Como esse rapaz trabalha sem parar". Era uma luta. 

Um dia o Gordon acabou, hoje é McDonald's. Já comi lá algumas vezes. Fred, nunca mais. As garotas eu vejo no Facebook, Ricardinho também. Outro dia almocei com o Coruja e falei com o Pedro perto do Teatro Riachuelo. 

Tomara que o Misaque esteja bem. 

@pauloandel

Friday, December 13, 2019

"Lágrimas", um dos grandes álbuns de 2019


A reunião da maturidade do poeta Paulo César Feital com a juventude do cantor e melodista Lucas Bueno resultou num dos melhores álbuns lançados em 2019 no Brasil, intitulado "Lágrimas" e produzido de forma independente. 

A beleza das canções, aliadas à poesia que carregam e a interpretação vigorosa da dupla, auxiliada por uma seleção de craques instrumentistas e convidados especiais, tornam o álbum uma espécie de procissão contra tudo o que temos visto no Brasil de 2019. A percepção atenta das letras leva a reflexões profundas sobre onde estamos e como chegamos a tal situação. 

Lucas é, desde já, um dos grandes intérpretes de sua geração. Canta e toca como um veterano do melhor cancioneiro da MPB, e não é injusto pensar que representa de alguma forma grandes nomes do passado, que remetem a craques como Silvio Caldas. Mas é bom que se diga: ele soa como um veterano mas tem uma enorme e promissora juventude pela frente. 

Paulo César Feital dispensa apresentações. É um dos maiores poetas da música popular brasileira em qualidade e quantidade. Ao lado de seu xará Paulo Cesar Pinheiro, carrega o estandarte da poesia na música popular. Fez centenas de canções, mas somente uma já serviria para imortalizá-lo: "Saigon", na voz eterna de Emílio Santiago. 

"Lágrimas" tem melancolia e esperança, tristeza e felicidade, angustia e fé. Soa como oratório e passeata. Entre seus convidados, nomes marcantes da nova geração, tais como o sagaz Moyseis Marques e a maravilhosa Nina Wirtti e também os consagrados Cláudio Nucci e Soraya Ravenle. Deve ser ouvido com calma, reservadamente, sorvido como um daqueles LPs que abrem as cortinas do passado, mas que também sugerem que o amanhã vai ser outro dia. 

Em suma: imperdível. Um dos álbuns do ano, dos melhores da década, indispensável em qualquer CDteca que se pretenda séria, além das plataformas digitais. Mas o bom mesmo é com o disquinho de prata tocando e as letras do encarte na mão e no olhar. 

@pauloandel