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Wednesday, August 30, 2023

Fragmentos sobre Copacabana II

[Perto da meia noite de sexta-feira, jovens do bairro deixam o Edifício Pampeiro na Rua Toneleiro rumo às Casas da Banha, esquina de Siqueira Campos com Barata Ribeiro. Interromperam um campeonato de botão para comprar lanche - os jogos vão até às três da manhã. No tradicional supermercado 24 horas, compram pão, frios e refrigerante. Depois voltam, fazem sanduíches e se divertem a valer enquanto os craques redondos dominam o campo de compensado. 

[Perto da meia noite de sexta-feira, o Bar Sniff's está prestes a cerrar suas portas. Alguns boêmios ainda bebem o último copo de cerveja, tanto próceres locais como Fred, Paulinho Cana e Márcio Pô quanto celebridades como o jornalista Arthur Laranjeira, nome fundamental na produção de shows da Tropicália no Teatro Teresa Raquel, o "Teresão". 

[Perto da meia noite de sexta-feira, os últimos craques da pelota deixam a praia e encerram a jornada de futebol do dia. Tudo recomeça no dia seguinte porque o futebol é sagrado e não tem fim. Descem a Figueiredo Magalhães de ponta a ponta. Alguns entram na Siqueira e sobem Tabajaras. O morro e o asfalto sempre fazem tabelinhas na dupla de praia e no futevôlei de Copacabana. 

[Uma jovem mulher no esplendor de sua forma está deitada na cama, com a luz acima, vestindo apenas uma calcinha preta, tudo perto do Bairro Peixoto. A beleza de seu corpo nem sempre pode ser vista seis ou sete andares acima, mas um grupo de adolescentes se espreme na janela da sala para admirá-la ou, de longe, sonhar com a admiração. Desejar a juventude de sua pele alva e fresca, sua beleza diante do charme do mundo, seu futuro que tanto promete. Perto da força de uma jovem mulher, os jovens homens não passam de súditos indefesos. 

[Num outro boteco do Shopping dos Antiquários, o compositor Billy Blanco bate papo com outros frequentadores, alguns do estilo low profile. 

[De longe, um forte cheiro de éter denuncia a chegada de um dos maiores enigmas de Copacabana: Mister Éter, morador em situação de rua na esquina de Constante Ramos com Barata Ribeiro. Dono de um corpanzil de quase dois metros com 150 quilos, Mister Éter anda pelo bairro sem pedir esmolas, apenas cachaça pelos botequins. Talvez o segredo de sua longevidade numa vida tão sofrida esteja nisso mesmo: os botecos não lhe dão cachaça, mas sim doses de água. O sabor não importa: ele sempre traga e faz um ahhhhh de satisfeito com a purinha, que só existe em seu pensamento. 

@pauloandel

Tuesday, August 29, 2023

Fragmentos sobre Copacabana

[Não, provavelmente eu não escrevo sobre Copacabana como a maioria a vê. Não. Na verdade eu mergulho Copacabana em Gotham City, chacoalho e tempero com a minha Copacabana que já não existe mais: a dos apartamentos. Basicamente dois: o do Fred e do Luizinho. Mais recentemente o da Katia. E a Copacabana dos apartamentos não é solar feito a praia, pelo contrário: pode ser dark e elegante, soturna mas charmosa. 

[A minha Copacabana também era triste e violenta, mas plural também. Tive uma vida de dias difíceis, mas nada comparado com 80 ou 90% das pessoas. Minha tristeza tinha a ver com a pobreza e a doença do meu pai, mas não foram grandes dramas embora incômodos. Isso não me impediu de lanchar bem, passear, praticar esportes, sair à noite (não era um esporte predileto), ver bons filmes, ter garotas bonitas por perto. Nunca tive ambições financeiras, então o essencial já me bastava. 

[Você mistura Copacabana com Gotham City quando tira o céu azul celeste e põe o gris. Mais sombra, mais nuvens, menos gente na rua, menos carros buzinando. A noite cai mais fria, as belas e deliciosas garotas das boates estão com os sorrisos cheios de cocaína para aguentar o tranco - as travestis também, na outra ponta do bairro. 

[Uma das cenas mais humilhantes que vi em Copacabana foi há quarenta anos. Eu era escoteiro e passávamos os sábados na sede do grupo, cedida pela Paróquia de Santa Cruz. As reuniões acabavam às cinco e meia da tarde. Depois disso, às vezes havia alguma quermesse por perto, alguma cabeleireira ou manicure prestava serviços a preços populares. Havia uma moça jovem negra que tinha uma limitação física nas pernas. Sem uma cadeira de rodas, ela andava pela região de quatro, com joelheiras servindo de sapatos e se apoiando com as mãos. Era uma cena terrível e ainda me pergunto como havia tanta gente na igreja e ninguém lhe conseguiu uma cadeira. Eu me sentia muito triste mas não tinha como ajudar. Passado tanto tempo, eu agora entendo como quase todos podem ver o sofrimento alheio com total indiferença: geralmente eles se escoram no nome de Deus. Involuntariamente ele se torna o escudo dos hipócritas. As senhoras ricas da igreja jamais olhavam para baixo: podiam correr o risco de enxergar a menina se arrastando pelo chão. Era a crueldade em carne viva. 

[Na casa de Fred ouvíamos discos, jogávamos cartas, conversávamos e deixávamos o tempo escorrer. Foram duas incríveis. As garotas eram lindas, havia um som da pesada e de doçura da adolescência e sua prorrogação. Tínhamos fé no futuro. Havia muito a ser feito. 

@pauloandel

Saturday, August 26, 2023

O silêncio do hall

Meu caminho é inesperado. Já disse outras vezes que me tornei Fluminense por causa do nome, da palavra,  ao contrário de muitos que se encantaram pelo escudo e pelas cores. Sempre preferi os dias nublados do mar de Copacabana - e muitas vezes ansiei pelo gris, a chuva, a silenciosa porta do Atlântico Sul repleta de silêncios e reflexões. Quando todo mundo foi estudar Direito, Engenharia, Economia ou Informática eu escolhi Estatística, que ninguém sabia o que era e até hoje a maioria não tem a menor ideia - gente diplomada mas severamente ignorante acredita ser chute, teu Deus!

Eu gostava de ficar no hall da faculdade. Muitas vezes e muitas vezes, desde o meu primeiro dia de matrícula, quando fiquei em silêncio aguardando minha vezÁ na primeira matrícula numa tarde nublada e de pouca luz. Foi um exercício que se repetiu muitas vezes. Sem falsa modéstia, meu carisma reuniu dezenas de pessoas naquele lugar muitas e muitas vezes, de onde saíram amizades, casamentos, separações, sociedades, traições, desentendimentos, lágrimas, abraços, beijos, gritos de gol e, porque não dizer, livros. Livros. Lembrei As garotas me adoravam também porque eu era muito divertido e criativo - as mulheres adoram isso - e, onde há garotas, há sujeitos pelos mais variados motivos. Meus amigos bichas também me adoravam - adoram até hoje e isso é recíproco - e posso chamá-los de bichas à vontade porque assim eles querem - não somente pelo meu carisma mas também porque sempre os tratei com respeito e dignidade num ambiente arriscado a machismo e homofobia. Enfim, fiz muitos colegas e a maioria se perdeu, mas ainda tenho alguns para recontar as histórias.

Era um outro tempo muito difícil de minha vida, então era bom ter os colegas em volta por algumas horas. Eu precisava de convívio humano ali e foi muito bom, mas em muitas ocasiões ficava sozinho com meu caderno e prancheta laranja de acrílico. Espiava o ir e vir das gentes, as garotas, os funcionários, os desconhecidos subindo e descendo as rampas, gente indo e vindo como se estivessem participando de um grande filme cheio de cenas, a começar pelo primeiro dia em que cheguei ali, sonhando em estudar, conseguir um emprego e sair da miséria, ter uma casinha. Às vezes ficava uma hora em silêncio até que surgisse alguém, às vezes mais. Um silêncio tão poderoso e pacífico quanto o que vivo neste momento, numa manhã de sábado chuvosa no coração do Rio de Janeiro, sem lenço e sem documento, enquanto alguém que me desconhece poderá entender exatamente o contrário do que eu quis escrever aqui.

Nem tudo é reflexão e seriedade. Há também o jocoso e o ridículo, também recíproco e capaz de também fazer pensar. Nós, calouros, respeitávamos os veteranos. Eles pareciam respeitáveis, mesmo vestidos com ternos duvidosos. Certa vez era bem cedo e um deles foi ao banheiro ao lado do hall silencioso. Não saiu. Algum tempo depois, precisei também por causa do pipi. Entrando, fui ao primeiro box. Do segundo, saíam urros e gemidos sugerindo um orgasmo. Tive vontade de rir, eu tinha vinte anos. O sexo abobalha. Contudo, o fedor do banheiro não sugeria tesão nem a presença de um casal ali. Saí, lavei minhas mãos e voltei para o hall deserto, em dia tão nublado como hoje. Meia hora depois, chegou o Bolinha. Subitamente o veterano saiu do banheiro de maneira impecável, sem acompanhante rumo à sala de aula. Contei o ocorrido e nós dois rimos a valer. Parecia orgasmo, mas era só dor de barriga.

Monday, August 21, 2023

Tchau, Raul

Naquele tempo eu tinha uns três períodos na faculdade, que escorreram como se fosse água na pia. Vivia encantado pelo prédio, pelas programações culturais - shows de rock e jazz, filmes de arte na concha acústica -, pelas garotas - todas lindas, cada uma de um jeito. Enfim, eu era o garoto pobre que conseguiu passar para a universidade pública em condições precaríssimas. Quando não estava na casa do Fred ou jogando botão no Luizinho, a UERJ era minha casa. 

Passei um dia inteiro por lá. Assisti aulas de manhã, levei Alessandra no ponto do ônibus, depois fui almoçar num restaurante natural que ficava lá na Souza Franco - a comida era deliciosa, barata e você podia repetir. Alguém da turma foi comigo, Gerson talvez, Alexandre, alguém mais. Voltei pra faculdade, eram quase três da tarde, melhor ficar e economizar a passagem de ônibus. 

Sentado no hall, fiquei lendo alguma coisa de Kerouac mas não mostrei pra ninguém. Eu era garoto, ali era um ambiente careta, a maioria não ia entender. Depois parei, a turma começou a falar de futebol e depois de música. Eram verdadeiras aulas, às vezes mais interessantes do que as da sala. 

Rapidinho bateu seis da noite. E choveu. Fez frio. Muita gente não apareceu, o corredor ficou vazio e triste, não havia risos nem musas. Assisti os dois primeiros tempos e depois avisaram que não ia ter a outra aula. Eu evitava de chegar em casa muito cedo, porque era uma época muito difícil de alcoolismo do meu pai, então tudo era briga, eu evitava ao máximo. 

Do nada, surgiu o Zé. Ele atrasadão, nem sabia que não teria outra aula, já se preparava para voltar pra casa. Eu não tinha mais nenhuma programação, resolvi descer. Voltar pra Copacabana, fazer hora no Sniff's e chegar em casa com os pais dormindo. Do nada, resolvemos parar no Bar do DCE, completamente vazio, e pedimos uma cerveja - lá vendia. Conversar um pouco e aliviar as dores da juventude sem emprego, sem dinheiro, chamado de vagabundo, sonhando em ter uma calculadora. 

Eu, Zé, o atendente do bar, o ventinho na varanda e tocando Rádio Fluminense - você tem ideia? Trocamos ideias, deu para gastar exatamente uma garrafa de cerveja. De repente, um rock depois do outro, entra uma faixa de Raul Seixas e o Zé vibra, porque era muito fã. O som baixa e a locução anuncia a morte de Raul Seixas. 

Em silêncio, pedimos a segunda cerveja. O Zé ficou transtornado. Eu, mesmo não sendo fã apaixonado mas ligado no trabalho do ômi, de repente senti um enorme, enorme vazio. Bebemos a cerveja em completo silêncio, com o Zé às vezes cortando a mudez: "Car@lh0, morreu Raul Seixas". A gente sabia que ele andava doente, mas ainda era muito novo. Muito.

Tudo era silêncio. Nossa descida para a portaria, o pedido de carona na entrada da UERJ - acredite: isso existia! -, nossa despedida. Meu amigo ficou triste paca. Eu consegui um bonde para Copacabana e, chegando ao meu bar oficial, lá estavam as pessoas chorando. Raul Seixas morreu. 

Engraçado que hoje achei a noite mais silenciosa e apavorante do que de costume. Há pouco, soube do aniversário da morte do Raul. Voltei exatamente naquele dia e senti exatamente a mesma tristeza, aquela não de um fã apaixonado mas modesto, certo de naquela noite fria do DCE, havia um gosto de derrota do Brasil numa Copa do Mundo, com a diferença que no futebol sempre é possível sair da adversidade para a glória. 

Uma tremenda saudade do Zé e da nossa juventude. Em 1989 eu ainda achava que o ser humano era viável. Toca Raul! 

@pauloandel

Saturday, August 19, 2023

Três botequins mortos

Entre dezembro de 1983 e agosto de 1990, se passaram mais de dois mil dias. Em 90% deles eu dediquei pelo menos uma hora diária ao Sniff's, o mitológico botequim que ficava aos pés da escada rolante que levava ao Teatro Teresa Raquel, o Teresão, um dos símbolos da cultura nacional, hoje Teatro Claro. Foi uma fase muito importante da minha vida, dos 15 aos 22 anos, onde pude aprender muita coisa com os veteranos da área, rir de montão, chorar um pouco e infelizmente até brigar. Faz parte da vida. O mais incrível é que fui um frequentador de botequim praticamente sem consumir álcool: ficava na Coca-Cola e no suco de morango ao leite. Anos depois, incentivado por minha amiga Ana Elisa, acabei escrevendo um pocket book sobre o Sniff's, um dos que mais gostei de fazer. O boteco resistiu a planos econômicos, golpes de estado, inflação galopante, desemprego e o escambau, mas perdeu a batalha para o COVID-19. Vida que segue. 

Eu vivia no Sniff's porque meus amigos escoteiros - sim! - lá estavam diariamente. Depois, os maravilhosos personagens do bar eram uma atração à parte. Por fim, apareciam as celebridades artísticas e culturais por conta do Teresa Raquel, então estava formado o grande caldo cultural para boas conversas, muitas hilariantes e outras que chegavam à beira da porrada. Era nosso bar oficial. Não tinha nenhum atrativo que cativasse o público além da birita e do bom papo. Comer por lá, nem pensar. 

No circuito do Shopping dos Antiquários, que não tinha esse nome nos anos 1980, o Sniff's teve dois concorrentes por longo tempo, melhor dizendo, um - o outro durou menos. Eram o Bole-Bole e o Abílio, que tinha outro nome mas só o chamávamos pelo nome do dono, gente boa. O Abílio durou anos e anos, o Bole-Bole acabou nos anos 1980 mesmo. Ambos eram nossos points ocasionais, às vezes para prestigiar os outros comerciante, noutras vezes em greve contra o Sniff's por algum motivo que nunca passava de dois dias. 

O Abílio ficava de um lado da grande e maravilhosa rampa circular do Shopping, bem em frente aos Supermercados Leão (onde tomávamos Ice Cream Soda nos sábados à tarde). Era um boteco simpático e nele os clientes comiam, ao contrário do Sniff's. Estava sempre cheio. Já o Bole-Bole ficava do outro lado, no outro corredor e estava sempre vazio. Era um refúgio de bebuns. Quem o comandava era Marieta, algo incomum para uma mulher naqueles tempos, onde volta e meia recebia alguma cantada dos fregueses. Quando o cidadão passava do ponto, ela dizia barbaridades sexuais que deixavam todo mundo sem graça e o assunto morria. 

O Bole-Bole era famoso por seus acepipes trash e uma pimenta que assustava todo mundo, mas devia ajudar a encarar os pratos. Em certa ocasião, nossos amigos João e Jésus fizeram uma aposta: o primeiro pagaria uma grana se o segundo encarasse uma almôndega do bar com uma pimenta quadrada aterrorizante. De olho na bufunfa, Jésus pegou o pratinho com duas almôndegas estilo semana passada. Abriu o garrafão, tacou a pimenta e mordeu. Ficou impassível, mas não conseguiu esconder as lágrimas quando mordeu a pimenta. João só ria. 

(continua)


Monday, August 14, 2023

Canção dos escroques, 2015 (remix)

No fim das contas, quem é o grande vitorioso? Você, que acumulou dinheiro e poder mentindo, trapaceando e humilhando os outros, hum? E você, cuja palavra e compromisso simplesmente não existem? 

Você, que vive de páginas bonitinhas e trechos bíblicos, mas faz as piores coisas com o próximo? E você, que deixa o mundo desabar porque não quer se envolver? Fala tanto em Deus e não desconfia de que ele está observando? 

Você, cuja ignorância suprema te faz acreditar ser melhor do que os outros, mesmo quando não existe uma vírgula disso? Gênio que, na verdade, não passa de besta metida a besta, com bacharelado em ciências curtas e apagadas, cuja capacidade não prevalece sequer numa linha de transmissão do WhatsApp? Comece tua semana debaixo de risos, patético. 

Você acha sinceramente que engana alguém? 

Você acha que ninguém fala sobre o teu mau caratismo comprovado? Que não sabem da tua falsidade? 

E você, cuja ingratidão se espalha numa calçada feito vômito? Acha que ninguém repara? Não se iluda, muita gente repara...

Sim, talvez você seja o grande vitorioso, mas numa única condição: a de ser o maior de todos os filh@sd@sput@s, ruim de verdade mesmo, disbólico no sentido ruim da expressão, o chorume da espécie. Porque, se não for, a tua consciência um dia irá te roer feito câncer, e esse não tem tratamento nem cura. 

Vai te doer dia após dia, te arder e te cortar dolorosamente. 

Quando menos esperar, você vai parar, pensar e chorar porque fazer o mal é espatifar cristal, e ele não se cola jamais.

A filh@d@put1ce é um ofício para muito poucos. Os canalhas de verdade, os que realmente desprezam a vida alheia, os que riem da desgraça dos outros. Se a tua  má fé não chega a esse ponto, tenta certeza: a tua ruindade vai te doer até os ossos, literalmente. 

Se você não tem especialização na escrotid@o, tenha muito cuidado: o ódio que você emitiu será o mesmo que vai te engolir...

Sunday, August 13, 2023

Madonna, 65 anos

(originalmente publicado em 16/08/2022)


Ela mexeu com o imaginário popular mundial, transitou entre gêneros musicais, desafiou definições e, aos recém-completados 65 anos de idade, ainda dá as cartas na cultura pop da Terra, com o handicap de ser a artista que mais vendeu álbuns em toda a história, indo muito além da lourinha sexy e provocante do começo dos anos 1980. Madonna Louise Ciccone é o nome. 

Há quarenta anos, a música pop estava no auge da massificação mundial. Ao mesmo tempo que produzia novos artistas, também os descartava. Alguns atravessavam temporadas, outros eram verão de uma só andorinha, muito poucos tinham a força descomunal de Michael Jackson, mas o fato é que Madonna chegou lá.

A estrela pop explodiu com seu álbum "Like a virgin", de capa deliciosamente sexy, e nunca mais parou. Poucos anos depois, arrumava enorme problema com a comunidade católica por retratar um Cristo negro em "Express Yourself", mas a grande polêmica mundial seria potencializada com seu mergulho artístico no sexo, especialmente a partir do videoclip de "Justify my love", proibido nos EUA e em outros países pela volúpia erótica. Suas turnês se tornaram gigantescas e, num mundo ainda corrompido por preconceito e ignorância, Madonna ganhou a benção e o prestígio mundial da comunidade LGBTQIA+, lotando seus shows em qualquer lugar.

Entre o começo da década de 1980 e meados de 1990, Madonna dominou rádios e TVs como nenhuma outra mulher na música. Durante um curto espaço de tempo, perto do fim do século XXI, mesmo consagrada, a estrela dava a falsa impressão de perda do estrelato. Ledo engano: bastaram "Ray of Light", "Music" e a espetacular "Beautiful Stranger" (integrante da trilha sonora do filme "Austin Powers") para que Madonna seguisse na crista da onda mundial. A seguir, ainda mais ligada em novas tendências, seu som passou a incorporar cada vez mais a tendência da música eletrônica, trazendo novos fãs e ampliando caminhos. Desde então, tem causado furor a cada nova turnê mundial. 

Todas as cantoras pop que surgiram a partir de Madonna prestam-lhe natural reverência, e nem há como ser diferente: ela é o ideal de sucesso e pluralidade, o mito, o sinônimo de consagração. É difícil imaginar que qualquer uma delas chegará também aos 64 anos com o mesmo tamanho da blondie girl, mas lutar é sempre preciso. E, por mais que todas tenham reconhecido sucesso mundial, nenhuma delas ameaçou o reinado de Madonna, que também alcançou as telas do cinema e as estantes das livrarias. 

Desafiadora, provocante, ousada, libertária, inovadora, Madonna chega onde nenhuma diva pop chegou. Tendo vendido mais de 300 milhões de discos em todo o mundo, ela é a artista feminina mais bem sucedida de todos os tempos segundo o Guiness Book. Com faturamento superior a 1,5 bilhão de dólares com ingressos para seus shows, ela continua sendo a artista solo de maior bilheteria em turnês de todos os tempos. Seus números astronômicos fazem jus ao seu tamanho artístico. E, ao que tudo indica, a multiartista ainda tem muita lenha para queimar. 


Monday, August 07, 2023

Copacabana 03:27 AM

Pessoas famintas e naturalmente chorosas, deitadas por esgotamento perto da igreja na Praça dos Paraíbas, bem perto do cadáver da Miami Peep Show.

Jovens sem futuro fumando crack na porta de agências bancárias nas imediações da Praça do Lido, sonhando com uma recuperação impossível. 

Dois amigos gays atravessam a imensa calçada do lado direito da Barata Ribeiro, que vai da Belford Roxo até o famoso Edifício Richard, ex-200, atual 194 - e Fausto Fawcett deve estar acordado escrevendo sua literatura high tech down by law. 

Na elegante rua Toneleiro, com suas múltiplas grafias, os prédios de garbo têm quase todas as suas janelas com luzes apagadas, enquanto uma moto passa no asfalto a 172 quilômetros por hora.

Alguém sente saudades da maravilhosa Sorveteria Bolonha, que viveu por cinquenta anos na esquina de Constante Ramos com Barata Ribeiro, mas não resistiu à pandemia. 

Bons espíritos podem se lembrar da Casa Gaio Marti, do Mercadinho Azul, do Metro Copacabana com seu ar condicionado potentíssimo e de tantos cinemas maravilhosos do bairro - somente o Joia resiste. Uma inimaginável Copacabana sem cinemas. 

De São Paulo, o espanhol Antonio Carlos Gonzalez ri das grandes noites do bairro nos anos 1980, repletas de garotas e loucuras.  

Bem mais de perto, há o cineasta e poeta Luiz Carlos Lacerda, que cortava o bairro com sua jovem e linda amiga Leila Diniz, culminando no Beco da Fome na madrugada. 

Algum saudosista esfomeado e com dinheiro deseja a volta do Gordon, a mitológica lanchonete que ficava aberta até às seis da manhã e tinha crepes, mate  e hambúrgueres maravilhosos. Alguém vai se lembrar do atendente Misaque? 

[meu coração é uma lágrima. paro um tempo, vou à geladeira, trago um copo com água gasosa. 

Temendo o despejo de sua quitinete, um garoto bonito e solitário chora num banco de concreto da praia de Copacabana, enquanto espia o mistério fúnebre do mar à madrugada - em 1993. 

Algumas garotas de programa ficam de sentinelas do sexo na avenida Atlântica perto do Posto Quatro. Mais adiante, fica o esplendor das travestis na Souza Lima, que Cler tanto admira. 

Numa conversa risonha do botequim na Aires Saldanha, alguém defende o fim da muralha da Praça Sarah Kubistchek. 

Os carros, esses invencíveis namorados do asfalto de Copacabana, vão e vem, cortando a velha Gotham City brasileira que já não tem vestígios do Sacha's, do Vogue e até da Fiorentina. 

Sempre tem alguém nos pontos de ônibus deixando o bairro que nunca dorme, a caminho da Central do Brasil, Nova Iguaçu ou Caxias. Quem sabe Vila da Penha? 

Nenhum vestígio de famosos moradores em situação de rua que marcaram época, tais como Baiano, Mister Éter e Ramiro, mas também não há de celebridades como Cat Stevens, Mick Jagger e Bob Dylan. Nem do grande aniversariante Caetano Veloso. 

Ivan Lessa, inesquecível cronista, sempre recordou o valão da praia em frente à Constante Ramos, com uma grande faixa de areia preta por causa do esgoto. 

Alguns poucos clientes nos quiosques da praia, compreensível por conta do medo da violência. 

Impávida, a estátua de Carlson Gracie senta praça bem perto do metrô da Siqueira Campos, leia-se acesso pela Figueiredo Magalhães, a metros do Shopping dos Antiquários e do Solar da Família Couceiro.

Quase nenhum jovem da região sabe dizer sobre o atentado no Edifício Albervania, melhor dizendo, o atentado contra Carlos Lacerda que levou ao suicídio de Getúlio Vargas em 1954. 

Daqui a pouco é um novo dia.

@pauloandel

A crônica não morrerá

Publicado por aí, um pretenso intelectual com infinitamente mais likes e dinheiro do que eu decretou: a crônica morrerá. E todo pretenso intelectual com muitos likes e dinheiro é louvado por sua corte a qualquer manifestação, mesmo que ela se pareça por exemplo com um flato. 

Para o dito cujo, não há mais tempo a se perder com o gênero essencialmente brasileiro. 

Há muito tempo, li e ouvi sobre o fim do rádio. Depois, o fim do jornal, das revistas, dos livros, agora da crônica e também da televisão. Ok, o mundo muda muito, mas não a ponto de desintegrar certas coisas. 

Comecei a escrever para mim mesmo, há 40 anos. Ninguém leu, eu tinha vergonha do que escrevia e joguei tudo fora. Assim fiquei até 1993, com 25 anos, quando passei a colaborar com o jornal da faculdade e recebi elogios de colegas que hoje nem sabem da minha existência - ou seja, as palavras foram sinceras. Poucos anos depois, um escritor premiado internacionalmente me convidou para colaborar em sua revista. Comemorei como se tivesse feito um gol no Maracanã e nunca enviei nada, por vergonha. Essa tolice me custou uma década até ser finalmente publicado em 2010 e, sete anos depois, também fora do futebol. 

Publiquei alguns livros lidos por milhares de pessoas e outros que ninguém leu. Continuei pobre. Tenho uma vida de sofrimentos. Contudo, escrever é meu oxigênio. Por isso, meu nome está na autoria e coautoria de mais de 40 livros. Gosto de todos, especialmente os menos lidos. Semanalmente escrevo em blogs, sites e num jornal de grande circulação no Rio. 

Por que eu deveria parar de escrever, fazendo o que sei? Por que eu mesmo deveria sabotar uma das únicas alegrias da minha vida?

Escrevo, não obrigo ninguém a ler. É uma experiência voluntária de quem se interessa pelo meu trabalho. Tirando alguns livros, as pessoas leem meus escritos gratuitamente. Hoje, mais do que meu prazer, é praticamente uma tentativa de sobrevivência nesse mundo injusto, cruel e opressor. 

A internet é um dos grandes inventos da história. Graças a ela, muitos escritores puderam ser descobertos e lidos, pessoas se aproximaram e interagiram, tanta coisa boa aconteceu, não há o menor sentido em se acreditar no fim da crônica. Ela viverá, porque conta as pequenas histórias de tudo que vivemos, mesmo quando já não estivermos mais aqui. 

Simples ou profunda, divertida ou pesada, apaixonada ou fria, esperançosa ou cética, a crônica veio para ficar. Pode não chegar mais a milhões ou centenas de milhares, mas terá o que dizer mesmo que para um só leitor. É o que basta.

@pauloandel

Sunday, August 06, 2023

A grande rampa

Para quem vai ao Maracanã há muito tempo, é certo que muita coisa mudou. O velho estádio setorizado virou uma arena, mas também segmentada e pior, gradeada. Não há vestígios da velha geral, nem do glorioso setor de cadeiras azuis, que já tiveram a cor laranja também.

Sábado passado, para aliviar um pouco das dores da vida, fui assistir Fluminense e Palmeiras. Comprei o ingresso em cima da hora no único local disponível, Leste Superior, que antigamente chamávamos de meio de campo e, mais tarde, de cadeiras brancas. Resolvi fazer um caminho diferente, de muitos anos atrás: saltei no metrô São Cristóvão, indo a pé pelo Cefet e rememorando caminhadas fascinantes com meu pai rumo ao palácio do futebol. Mais policiado do que eu esperava, com pequenos grupos de tricolores rumando para o Maraca, eu fui junto. 

Uma saudade: parar bem na esquina e lembrar da antiga bilheteria, onde comprávamos nossos ingressos em 1978 e 1979, também onde garotinhos pediam moedas. Várias vezes meu pai comprou três, quatro ou cinco ingressos e deu para eles, que saíam enlouquecidos para entrar no Maior do Mundo e viver duas horas de sonho. Saudade que ia se repetir mais duas vezes: primeiro, ao lembrar que na entrada da Leste vi Alberto Lazzaroni pela última vez, há uns dois meses, e ele queria doar um ingresso sobressalente. Nos anos 1970 mil garotinhos viriam correndo, mas não conseguimos ninguém. E Alberto foi embora muito antes do justo e razoável. Segundo, bem perto do encontro de Alberto, fica um degrau da escadinha onde eu sentava com meu pai, às vezes uma hora antes dos portões abrirem - ele adorava chegar cedo. Tempos em que o Maracanã era cercado por bancos de praça e vendedores de laranja, a fruta mesmo, mais cara quando descascada. 

Ir de Leste Superior, assim como na Oeste, dá direito a uma experiência maravilhosa: subir a rampa original do Maracanã, a imortal, que serve aos torcedores há 73 anos. Dela, eu já aproveitei quase 50. Subo lentamente com meu chinelinho velho e sinto vontade de chorar muitas vezes, porque todos aqueles anos incríveis vêm à tona: a emoção de rever a infância, a sensação de ter meu pai ao lado, espiar às torcidas organizadas vendendo seus produtos nas pilastras, aqueles garotinhos da bilheteria subindo e rindo tão felizes mesmo com roupas rasgadas ou descalços, os senhores carregando suas almofadinhas para aliviar o calor na arquibancada. Subidas com esperança em vitórias maravilhosas que nem sempre vieram, a seguir descidas de cabeça quente ou repletas de vitória. 

Dois minutos de subida que valem uma vida. Agora estou sozinho, ninguém me acompanha e o novo Maracanã tem uma pequena rampa anexa para continuar o percurso até a entrada do setor. Para quem viveu muito o Maracanã, um jogo não é só um jogo: há toda uma carga do passado maravilhoso. Então compro meu velho cachorro quente, um mate, vou para a arquibancada e repito um ritual de muitos e muitos anos: olhar para o novo e rever os anos inesquecíveis de minha vida. 

O jogo é duro, meu amigo Edgard não pôde vir, o Luciano chegou atrasado e vimos o Fluminense vencer bem. Teve gol de pênalti e gol bonito. Ver o Marcelo tocando a bola e driblando relembra momentos espetaculares do nosso futebol, que eram muito comuns. Tudo é diferente, sem dúvidas, mas tem sabor. Difícil foi ver o Alberto no obituário do telão, é estranho demais porque ele era cheio de vida e, num estalar de dedos, tudo mudou. 

Fim de jogo, a torcida do Fluzão sai feliz e confiante, então descemos a rampa e me sinto em berço esplêndido como em nenhum outro lugar. Há mais de 70 anos, quanta gente desceu ali? Quantas vezes houve alegria ou tristeza. Quantas vezes não saímos inebriados com um golaço ou uma jogada inesquecível? Fui feliz ali muitas vezes, mesmo nos piores momentos. 

Logo depois do portão, me despeço do Luciano e, à esquerda, está o nosso degrauzinho, meu e do meu pai. É a lembrança, é o que me resta. Tal como na ida, faço a volta diferente e vou a pé para o metrô de São Cristóvão, depois salto no Catete, peço um lanche no Big Néctar e lamento muito que meu amigo Eric não esteja lá para me acompanhar num sanduíche. Ainda vou pegar um táxi para casa. Na terça que vem eu vou de Norte, então não vai ter a emoção da grande rampa, mas espero que se repita em muito breve. 

@pauloandel 


O trovador anônimo

O Sr. Robert, 70, desceu à rua. Veio ao Rio de Janeiro por motivos profissionais, mas já conhecia a cidade de outros tempos.

Num domingo nem frio, nem quente, com nuvens em Copacabana, ele caminhou vestindo um casaco talvez jeans, uma touca e óculos escuros. Noutros lugares, talvez a indumentária chamasse a atenção, mas não no bairro da praia mais famosa do mundo, onde andar vestido com um uniforme de super-herói ou com uma fantasia de viking não causa qualquer espécie - desde os anos 1940, alguns moradores da região faziam coisas bem piores (ou melhores, dependendo do ponto de vista).

Passando pela Rua Ronald de Carvalho, avistando a Praça do Lido, depois engatando na Belford Roxo (onde já não se encontra a famosa discoteca Pussy Cat, com deliciosas garotas de lingerie, se muito) e espiando o mar na Avenida Atlântica, para depois voltar pela Prado Júnior (a menor avenida do mundo, berço dos prazeres mundanos do bairro) e encontrar a Barata Ribeiro (passando em frente ao Cervantes, o mitológico bar de sanduíches e chopes imortais, frequentado pelo poeta Fausto Fawcett, o Jack Kerouac de Copacabana - já o Jack Kerouac original é um dos ídolos do flâneur em questão), o Sr. Robert andou com as mãos no bolso, discretamente, e não trocou uma só palavra com qualquer pedestre, o que não lhe era estranho - ao trabalhar em outras cidades do exterior, muitas vezes foi às ruas para bater perna e espionar um pouco dos mundos humanos. 

Ninguém o estranhou, pediu-lhe alguma informação ou perguntou-lhe as horas. 

Caminhou por uma hora aproximadamente até voltar aos seus aposentos, de onde só sairia à noite para a lida profissional. Experimentou a música urbana das ruas de Copacabana. 

Durante o percurso, espiou revistas numa banca de jornal e achou graça numa manchete musical pendurada. Admirou duas lindas mulheres, uma delas muito parecida com sua musa Alicia Keys. Riu de um garotinho que corria atrás de um balão. E estranhou que os carros ultrapassassem o sinal vermelho numa boa. 

Conforme o esperado, à noite ele desceu novamente, agora para a labuta. Uma van o esperava à portaria. Foi para o seu ofício de muitos anos, onde foi efusivamente recebido pela sua clientela e retornou já de madrugada, apenas para dormir e preparar uma nova viagem a serviço, prática que já exerce há tempos e tempos. Sua caminhada pelas ruas de Copacabana teve um sabor especial: em muitas viagens, ele não tem a oportunidade de caminhar nas ruas, seja pelo tempo escasso ou por outras questões. 

Na manhã de segunda-feira, já estava sentando praça no Aeroporto Tom Jobim, pronto para mais uma jornada de trabalho em algum lugar dos mistérios do mundo.

Dias depois, foi revelado que um único cidadão teve a curiosidade de registrar a caminhada breve, anônima e solitária do Sr. Robert pelas ruas dark side de Copacabana. Ele o fotografou em close, mas ninguém tinha entendido nada nem prestou atenção - o bairro que nunca dorme tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. As fotos foram parar em jornais e revistas imediatamente. 

Nem todo mundo sabe que o Sr. Robert é na verdade o maior artista estadunidense vivo em qualquer área, atendendo em suas rodas de trabalho - há mais de meio século – pela alcunha de Bob Dylan, o bardo imortal. 

[os tempos mudaram, rapazes!]


(Publicado originalmente em "Os trechos dos livros que ainda não foram escritos", Vilarejo Metaeditora, 2018)

Friday, August 04, 2023

Do Aterro ao Caravelle

I


Pedi o carro e, minutos depois, estava no Aterro. Às vezes a gente se esquece de como aquele caminho é bonito. Você descer direto até o Túnel do Pasmado e depois o novo, seguir até a praia e espiar os mistérios do Atlântico Sul. 


Burle Marx queria o Aterro inteiro sem luz elétrica. Achava que o parque ficava mais romântico. Não dava, ainda mais hoje, mas as luzes em nada atrapalham a beleza do parque, colada à geografia descomunal do Pão de Açúcar. 


Como é bonito. 


É o Rio de Janeiro que todos os cariocas merecem. 


Dura uns sete minutos de carro até o túnel, mas que valem um mês. 


Já estou com saudades.


II


Se o Aterro é bonito, Copacabana instiga. Eu era criança e, quando passava do terreno onde seria o Rio Sul, brincava de pensar que o túnel do tempo me levaria para outra época, até desembocar na Princesa Isabel. Hoje em dia, velho de doer, ainda tenho a mesma sensação. Talvez porque no fundo, bem no fundo, em certas coisas a gente nunca deixa de ser criança. 


Eu deveria estar desesperado, lutando contra uma ânsia justificada pelo suicídio, mas basta olhar para a esquerda do carro e tudo passa por alguns instantes, de forma alucinógena. É o mar, é o Atlântico Sul espumando na boca de Copacabana. Entorpecido pela vista, aproveito os pouquíssimos minutos para namorar minha terra natal. As areias desertas são mistério, as traves já testemunharam craques e craques, assim como as redes de vôlei e futevôlei. Senhor! Onde foram parar minhas musas maravilhosas, as crushs de hoje em dia, as garotas lindas que nos faziam suspirar? 


Força e Saúde, Racing, Juventus, Bairro. Tudo é vivo demais depois de quarenta longos anos. 


O motorista é gente boa. Faço logo o pix da corrida para não atrasá-lo. Ok, eu sei que há muita tristeza e miséria nas ruas de Copacabana, talvez como nunca antes, mas hoje eu vou dar uma única chance à minha pequena alegria.


Então vejo direitinho os falecidos caminhando na calçada ou atravessando a Atlântica, ou ainda jogando altinho. Muitas gente boa se foi. Eu fiquei para chorar, mas é um consolo rever a praia onde nasci e vivi. 


III


Domingos Ferreira é a rua do Edifício Master, consagrado no documentário de Eduardo Coutinho. E também dos galetos, do Sesc, do falecido primeiro Bob's, do Istambul e, claro, do Caravelle (é a pizzaria mas nos acostumamos com o artigo definido masculino). 


Meus amigos estão lá. Talvez sejam os últimos, os únicos, não sei dizer. Só sei que vamos rir a valer com besteiras e incorreções políticas nas próximas três horas. Já estão Cler e Raul, Gomez vai atrasar como sempre, Luiz dará uma passada por conta de intempéries.


São coisas simples. Pizza napolitana incomparável, Malzbier, chope, depois uma lasanha dividida por quatro. Gomez chega atrasadíssimo (como nos últimos 40 anos), Luiz aparece, a gente fala, fala, fala e ri. Só besteiradas, que não repetimos com mais ninguém. O Xuru não veio porque foi embora há muito tempo, mas a gente se recusa a vê-lo como morto - é como se ele pudesse descer a qualquer maneira do prédio ao lado e viesse dar uma risadinha. Doce ilusão, doce. 


Rio tanto que esqueço dos pensamentos suicidas. A gente devia se ver mais vezes, porque tudo passa rápido e daqui a algum tempo - que espero estar longe - vai faltar mais alguém na mesa, porque assim é a vida. Temos liga de longa data, vem dos anos 1980. Rir é o melhor remédio, o melhor entorpecente. Fracassei em quase tudo, mas numa eu acertei em cheio: ajudei a juntar uns caras que parecem andar juntos para sempre, se sempre houver.