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Friday, July 31, 2009

NOITES CARIOCAS














Cabe-me o pensar. As cousas, as gentes.

É uma noite fria, o inverno do Rio que já tinha se tornado incomum, mas que, pelas surpresas da natureza, reapareceu.

Antes, eu gostava mais da chuva, do frio; quando me dei conta de quanta gente sofria por conta disso, abdiquei. Calor arábico não é meu forte, mas me sinto mal em saber dos que padecem – e perecem – nas ruas por falta de roupa, comida e condições minimamente humanas. Certa vez, li em algum jornal vulgar que a preocupação com os outros poderia ser até motivo de cuidado psicológico. Não tenho dúvidas: foi uma das coisas mais idiotas que li em toda a minha vida, talvez só superada pelo bizarro pseudo-mundo literário de Diogo Mainardi, o ex-parajornalista agora alçado a profissional pelas mudanças da lei.

O frio da rua Senador Dantas, e não sei se volto para casa ou se parto para Botafogo. Um garoto descalço, de poucos anos, adolescente, surge à frente. Parece o irmão que não tenho. Não me pede dinheiro, mas que compre para ele uma comida no bar. Lá vamos nós. Merece também uma coca-cola. É o que tenho: dez reais. Ele parece estar diante de um ET; a segunda vez que isso me acontece neste ano. Natural: num planeta onde pessoas quase pisam em mendigos nas calçadas, quando um transeunte oferece dez mangos, pode ser a salvação do dia. Ali, me basto em minha quase incompetência; não posso salvar a vida do garoto, transformá-la para sempre. Não passo de um trabalhador mergulhado na falácia mentirosa do mundo livre, onde o capital promove justiça. Justiça? Garoto de olhos arregalados é para se ler como agradecimento. Sigo em frente. A vida eu não salvei, mas com dez pratas, um belo bife-com-arroz-feijão-e-batata frita mais a suculenta bebida de origem norte-americana, é um bom paliativo.

Lojas Americanas do Passeio Público. Uma cena linda. Uma vez a cada ano, a indústria do entretenimento deixa de lado sua convencional burrice e reedita clássicos, sejam devedês ou cedes. A arte é necessária à vida. Gene Kelly canta seu clássico eterno, “Singing in the rain”. Paro para ver o magistral telão em LCD. Para minha grata surpresa, várias outras pessoas também. O que é bom, prevalece – mesmo que à distância. As pessoas notam Kelly dançando e admiram. Dizer que só gostamos de fânqui e pagódi é mentira da grossa. Imposição.

Táxi a vagar pelo Aterro. Parece um excelente videoclip do Ed Motta. Tudo é tão moderno e, ao mesmo tempo, passado. Vejo o Aterro, a beleza dos prédios cinquentistas, a beleza do preto do céu invadindo o Pão de Açúcar. Nas grandes coberturas, requinte e sofisticação. No chão do jardim monumental, pobreza e dor. Estranha a vida do carioca atento; fitar por todo lado e esbarrar na elegância manchada pelo descaso. Os pobres do Flamengo, os pobres da Praia de Botafogo.

Bonita a Urca como sempre. Bonita e silenciosa. O charme do que parece desconhecido, biscoito fino para poucos. As pessoas estão recolhidas, é o frio. Na Praia Vermelha, basicamente alguns soldados a serviço, mais um ou outro casal corajoso. Continuo tão acompanhado quanto nos tempos em que solidão era necessidade. Mereço uma água de côco, mas não há banheiro por perto. Na cidade, as pessoas não têm direito ao alívio da bexiga sem que paguem por isso, excetuando-se raros casos. Já tomei o Angipress e o Enalapril. Fica para a próxima. Churros cairiam bem. Até hoje não descobri a origem exata: Argentina, Uruguai ou algum outro Mercosur. Seja de onde for, muito gostoso.

O telefone celular toca. Não conheço o número. Não atendo desconhecidos. Aliás, atendo cada vez menos gente. O natural cansaço por tanta ingratidão, desrespeito, falta de consideração. Grandes grupos são para poucos. A sociedade confundiu tudo: amigos não são apenas os que se sentam à mesa de bar ou dividem garotas de aluguel para uma suruba. Ou ainda os que mandam mensagens eletrônicas a cada seis ou doze meses. Amizade é muito mais do que isso. Nada mais mentiroso do que dizer do amigo que é amigo de verdade, que pode ficar longe sempre e continuará amigo. Falácia para justificar omissão e descaso, novamente. Chega de hipocrisia. Sou um velho.

Boteco da Praia, no Flamengo. O caldo verde é delicioso. A carne, também. Estranho que um bar tão qualificado quase sempre esteja com baixa lotação – o que considero ótimo, individualmente falando. Noutra mesa, uma ruiva de arrasar discute com o namorado pelo telefone móvel. Não deixo de notar, com respeito e certa admiração. É que meu amor não dorme, meu amor não sonha e não se fala mais de amor em Gotham City. Um jantar quase silencioso, podemos assim dizer.

Um novo táxi à frente. Não é Leo. Mais uma surpresa: uma motorista. Gosto disso. Abro a porta traseira e cumpro meu papel de cavalheiro com garbo. Voltar a Copacabana, descer a Atlântica em retorno, o Aterro outra vez, o Passeio, a Lapa.

Meu amor não sonha. As pessoas estão recolhidas. A dor do próximo é desimportante. Nossa pátria-mãe gentil é conduzida pela livre iniciativa.

O elevador vermelho, a porta que precisa de reforma.

Ligo a televisão.

Um efeminado âncora da televisão noturna vocifera contra Lula, a quem acusa de proteger José Sarney, o ex-número um, que tem mais de cinqüenta anos de vida pública.

Tornei-me um velho. Não tenho tempo para falácias.


Paulo-Roberto Andel, 31/07/2009

Tuesday, July 28, 2009

PESSOAS



pessoas
tão pessoas
navegam na amenidade
e esperam
o sinal que abre
o trem que pausa
o sol que brilha
até seu fenecer

pessoas
no ir e vir
das grandes ruas
dos velhos bares
tão pessoas
tão felizes e carentes
são avalistas
do sexo vulgaris
da moda cafonália
da amizade banal
sem leme nem pontal*
e fascinam
o turvo da vista
com as vitrines
do centro comercial

pessoas, pessoas
expectadoras
solitárias de tevê
dançarinas
de bate-estaca
e baile funk
esperando
o sucesso acontecer
pessoas, surpresas
com os tropeços
de sarney
saudosas do efeagá
não dá para segurar
pessoas
que pagam impostos
exigem cidadania
mas
parecem tão
impostoras:
escravagistas
pedindo alforria


Paulo-Roberto Andel, 28/07/2009


(contém citação paralela de "Do Leme ao Pontal", Tim Maia)

Friday, July 17, 2009

OUTRA GOTHAM CITY















lá fora, a cena é outra
é muda e provocante

enquanto
meu olhar
se faz contemplação

é o caos e a cidade
com suas vielas
alamedas
uma válvula de escape
a barca, a praça
o paço
um sorriso jogado no chão

alguma aflição

sou turista de minha cidade
meu coração em paixão
tateia sobre o cinza insone
parece que se sente em vão
fustiga um impreciso enorme
num par afável para solidão

cara de cão
açúcar no pão
e um deus de pedra
com o mundo
a seus pés

a cátedra e os quartéis

um cântico de fé
para missionários e fiéis

lá fora, a cena é minha
eu escrevo os personagens
as falas, os papéis
tudo imagina cinema:
o tom e o timbre
a foto e a luz

ninguém me diz o certo
meu estandarte é um porta-retrato
a carregar o que não volta
o que não sente
a imagem que se perdeu

tudo distante do céu de nubla
e a frente que não chega
apenas insinua com seus cúmulos
de prata

um mergulho na noite torta
que desapavora
e se basta
no ir e vir da vida:
ela escorre, sobe
regurgita;
desfaz os planos
da madrugada morta;
acende a vela
para a esperança farta

alguém me lembra martha rocha
num arraial à praia
alguém sussurra alessandra
enquanto não atraco
em meu peito cansado
enquanto o nada
vem me consolar

hoje sou de gotham city
e nenhum sinal no céu
parece digno de me ressuscitar


paulo-roberto andel 17/07/2009

Tuesday, July 14, 2009

O TEMPO NÃO PARA, COM OU SEM ACENTO
















Veio julho, e já chega à sua metade. Os tempos correm.

Dia desses mesmo, eu era um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e naufragado no coração da grande metrópole. O dinheiro continua fugido; os parentes renunciaram. O meu amor virou outro amor, depois outro amor, e agora é outro amor do mesmo nome. Daqueles de um segredo de liquidificador.

Falarei de Cazuza. Um dos grandes poetas de sua geração, que escolheu a música e o canto como forma de expressão. Esqueçam de boemias, homoafetividades e drogas ilícitas – as lícitas, também. A magnitude da obra está acima de tudo, não vê quem não consegue... por conta de alguma grande limitação a ser explicada.

Que prejuízo tê-lo ausente por dezenove anos, completados semana passada. Certamente, teria escrito uma coletânea de canções capazes de reavivar a memória coletiva brasileira, tão perdida para qualquer coisa além de quinze minutos atrás. Quem se lembra do Sivam? Da reeleição de FHC? De Collor? De Marcello Alencar? A chacina da Candelária? Vigário Geral? O caótico tráfego aéreo brasileiro? O apagão? Pois é, cronista urbano que era, Cazuza teria dado conta direitinho do recado. A ponta de sua caneta faz falta.

Meus dez leitores, seis amigos e cem conhecidos bem sabem de minha opinião a respeito da soberba, enorme soberba, exercida por parte da intelligentzia literária brasileira, sempre disposta a exorcizar qualquer poesia que esteja próxima da música. Tamanha barbárie intelectual gera situações patéticas, como a de se analisar a diferença produtiva entre um Vinicius de Moraes “poeta” de um Vinicius “letrista”. Havia um só Vinicius: o gênio. O resto depende de cada manifestação. Rio quando vejo os despautérios propagados por mortos-vivos como Alexei Bueno: desancar a genialidade de Arnaldo Antunes e Caetano Veloso beira o patético. Birra de garoto dono da bola que não é titular na pelada de rua. O principal problema é que os “exclusivamente” literatos morrem de ciúmes da popularidade de alguns poetas da música, e daí vem a indesejável rixa. Uma simples batalha egocêntrica, que nada tem a ver com a qualidade da produção de poesia convencional ou musical.

Como questionar versos de um poeta como “Dias sim, dias não/ Eu vou sobrevivendo sem um arranhão/ Da caridade de quem me detesta”? Ou “Senhoras e senhores/ Trago boas novas/ Eu vi a cara da morte/ E ela estava viva”? Ou ainda “Porcos num chiqueiro/ São mais dignos que um burguês/ Mas também existe o bom burguês/ Que vive do seu trabalho honestamente/ Mas este quer construir um país/ E não abandoná-lo com uma pasta de dólares”. Cazuza é de uma genialidade agregada a um delicioso deboche, um humor irônico como visto em poucos grandes das nossas letras. Poderia perfeitamente ter publicado seu cancioneiro sob forma poética, exclusivamente – e teria grande sucesso, exceto pelo rancor de meia-dúzia de fanfarrões autoritários, supondo-se alicerces da cultura nacional.

É lamentável ver que deixamos de ter Cazuza vivo em letras há quase vinte anos. Mas é sensacional também ver que, quase duas décadas depois, sua obra permanece com todo o vigor de quando foi lançada: doce, furiosa, provocante e engraçadíssima, entre amores, a cidade e a incontestável pluralidade do ser.


Paulo-Roberto Andel, 14/07/2009

Friday, July 10, 2009

RETICÊNCIAS

I

resto-me
diante do improvável

a incerteza
que se faz tão clara

um retrocesso

exceto pelo sol de fora
tão faroleiro
nave-guia flamejante no vento

o recesso

e um momento

nas horas rudes
onde não caibo
e me afasto

o longe me corteja
por um retrato

o fim já não excita

a mansidão não é pecado

agora sou muito longe
feito o cais que aprecia
a minha vinda –

nenhum murmúrio
ou alarido

apenas o fato


II

nada debaixo do céu
resiste ao pranto

nada debaixo da terra
reveste o conforto

nada no horizonte
é verdadeiro porto,
portanto


paulo-roberto andel 10 07 2009

Thursday, July 09, 2009

Monday, July 06, 2009

DOIS CORAÇÕES SOLITÁRIOS NO CORAÇÃO DA CIDADE



dois corações solitários
fechados com desplicência
andam com mãos dadas
simetricamente entrelaçadas
sob certa inteligência
no leve da flana rasteira:
parecem numa rua do Village
do SoHo
uma Copacabana de happy hour
qualquer
passam ao largo dos transeuntes –
o mendigo, o travesti
a rapariga, o capataz

dois corações solitários
levianos mas sem mágoa
entusiasmados à toa
deleitam-se com sonhos
e dramas e medos –
posso vê-los na fumaça
a verde névoa da ganja
cobiçando um trago de conhaque
e um prato de tremoços:
alforria que não é samba

dois corações
que não tomam partido
não vestem camisa de time
não deliram por métrica
piedade
ou auto-retrato –
tão vastos em seus calores
seus hormônios
o tesão sem medo
que trafega afoito
enquanto os carros engarrafam
enquanto a morte não hesita
e alguma lágrima deságua
de um sorriso lindo qualquer

não passam de meros
corações solitários
furtivos
índios da mesma oca
navegantes fugidios –
o que lhes vale
é o calor das mãos envoltas:
trazem engano em romance
à noite da cidade
enquanto
falsos brilhantes são luzes e piscam
ofegantes
perante o luxo, a miséria
e um falsete sem alarme


paulo-roberto andel, 06/07/2009

Thursday, July 02, 2009

Serenata

um amuleto
em forma de canção

a primavera
tão longe da ação

meu amor à espreita
cândida ilusão

o mar, a maré cheia
a urca sob refrão

o cadafalso
para um caso contente

a lareira
missão da noite quente

mão dada
macia, envolvente

a noite à toa
o desejo inconsequente



paulo-roberto andel, 01/07/2009