era traíra. carregava a canalhice e a traição em suas veias. não poupava ninguém: cônjuge, parentes, amizades, amantes. e vivia serenamente como se nada fizesse de prejudicial aos outros. tropeçava e caía, levantava-se mas nunca perdia a arrogância que lhe conduzia a novas jogadas de risco.
confundia destemor com irresponsabilidade, e a tudo disfarçava com falsa humildade. o típico traço de gente perversa que se julga superior a tudo e a todos, e que por isso mesmo desvela a própria estampa primitiva. talvez um pouco de recalque junto, quem sabe? com ou sem dinheiro ou bens, a inveja é capaz de revirar cabeças ocas.
de golpe em golpe, a trairagem prevalecia. pequenos ou grandes, todos lhe davam a certeza ilusória de vitória, de prazer na trapaça, de compensação pelo reconhecimento da própria identidade falida, ignorante, alheia ao mundo e aos bons atos. pulava de galho em galho até a próxima falência moral, e não pensava sequer na vergonha que ofereceria aos filhos, caso eles descobrissem sua verdadeira identidade. não se arrependia: a pilantragem era consciente. tudo que lhe soasse como vantagem financeira era aprazível.
a corrupção assumida lhe trouxe uma pequena vitória no jogo da vida. comprou objetos, sentiu alegria em tratar como trouxa quem lhe fortaleceu e pensou nos golpes anteriores. era fácil fugir, não responder as chamadas, ignorar contatos e preparar o terreno para novas jogadas, de acordo com a cartilha oficial do mau caratismo.
contudo, um recente ato de má fé tem lhe custado caro. ao contrário de muitas outras vezes, não recebeu mensagens nem telefonemas, nenhuma cobrança pelo golpe. tinha olhado o celular com apreensão misturada com o tesão pela canalhice e nada, muitas vezes e nada. pela primeira vez o silêncio das vítimas, tão desejado, oferecia um recado que poderia ser tenebroso: e se a mudez na verdade fosse uma sentença de morte anunciada?
não chorou nem se arrependeu, mas viveu o medo. pela primeira vez, abraçou a lucidez.