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Sunday, August 31, 2025

uma vírgula

1

no fim das contas, para a maioria a verdade é uma só: viver em condições precárias, em meio à opressão da elite, debaixo de escombros da memória.

2

gente humilhando gente. matando gente. estropiando gente. escrotizando gente. gente com nojo de gente.

3

quando tudo está perdido, uma única e magérrima luz se oferece como torre de vigia, iluminando o caminho. 

4

quem me dera ser gente.

5

eu não passo de massa de carne e água solenemente desprezada e humilhada no mundo, cumprindo uma pena que o capitalismo me impôs, até chegar a hora de me atirar rumo ao nada. 

6

agosto se foi e continuo muito infeliz.

7

lá fora chove e tudo e difícil. a cidade oprime.

8

quem me dera ser alguém.

9

vejo tristeza por toda parte, até mesmo onde tudo sugere indiferença. 

10

eu queria ser uma rua simples, com árvores e casas confortáveis, com cachorro e gato e vida. 

Saturday, August 23, 2025

15 ou 16

Acho que eu queria ter quinze ou dezesseis anos outra vez, que fosse por um ano ou menos. Queria, mas é naturalmente impossível. Quem me dera... Comer sanduíche no Sumol ou no Gordon de madrugada. Jogar bola na praia escura. Acampar com os escoteiros quase todo mês, torcendo pelos feriados! Jogar botão com o pessoal no Bloco F. Ir ao Maracanã duas vezes por semana, sonhando em passar um dia para a UERJ, tudo muito Fluzão. Andar pelo Centro do Rio apinhado de gente. Ir toda semana a um cinema de rua. Jogar bola também no Corpo de Bombeiros. Queria voltar a correr no Forte do Leme. Navegar as ruas de Copacabana em busca de cada farelo de vida nas calçadas e portarias. Pegar praia deserta às seis ou seis e meia da matina. Queria ver a Ana Paula desfilando linda pela Silva Castro, ou a Patrícia no antiquário dos pais. Queria ver a turma na casa do Fred, todos atentos aos papos sobre Genesis e Pink Floyd. Queria ver Monsieur Lima ao vivo na TV, ou o Flávio Cavalcanti espumando contra o rock. Eu queria ter quinze ou dezesseis anos para sentir o coração batendo mais forte pela beleza das garotas desfilando na Figueiredo Magalhães, e não porque o fim pode estar muito perto. Queria ouvir Mark Knopfler solando, os Paralamas batucando, o Jorge Pinto descendo a Ladeira dos Tabajaras. A Ladeira! Eu queria ver o Luís, o Marcelinho e o Augusto, o Ivan também. Eu nunca mais vou ter quinze ou dezesseis anos e por isso nunca mais terei esse maravilhoso naco de vida. Nem falei do Bairro Peixoto, de tantas garotas, de amigos queridos que o tempo levou para sempre. Isso foi outro dia, então é muito injusto que eu nunca mais possa. Faltou dizer da última espiadinha da noite, o pai e a mãe roncando de leve quando meu irmão nem existia, eu olhava para eles, via que dormiam bem e aquilo me dava uma sensação bela e rara, devia ser o que chamam de felicidade. Faz falta.

@p.r.andel

Saturday, August 16, 2025

Trechos

I

Faz tempo, tempo demais. Todos os que estavam perto de mim, morreram. Faz cinquenta anos. O meu pai me puxava pela mão, quando subiríamos a escada da estação de trem, acho que em São João de Meriti. Ele tinha uma loja lá. No meio da escada, nos deparamos com uma senhora pedindo esmolas ao lado de sua filha, que era do meu tamanho. Por instantes, cruzamos os olhares. Ela era linda e tinha olhos lindos de azul profundo. Pela primeira vez na vida me dei conta do que era uma garota linda. Mas sua beleza infantil era muito maltratada pela miséria, pela humilhação de estar naquela escada pedindo o que comer. Meu pai não era um senhor, mas um homem de 35 anos, jovem demais. A senhora também devia ter idade semelhante. Aquilo durou uns três ou quatro segundos. Sem saber explicar, eu entendi toda a beleza do olhar daquela menina, mas também senti toda a dor que a acompanhava. Meu pai já tinha sofrido tudo: ficou órfão, foi criado em colégio interno, a irmã foi dada para uma família, ele perdeu o irmão para a ditadura. Estava acostumado a dor. Seguiu subindo e me içou. Fomos para algum lugar que não lembro, eu tinha uns sete anos de idade. Nunca mais me esqueci da beleza sofrida daquela garota, algo tão perturbador que hoje, cinquenta anos depois, ainda é uma lembrança nítida.

II

Eu não lembro do seu nome, apenas do sorriso e isso chega a ser curioso, pois tenho uma memória relativamente privilegiada. E a gente deve ter se visto umas dez vezes, todas na casa do Fred - o mundo inteiro ia pra lá. Não sei porque, ela se irritou comigo por alguma coisa e sempre que me encontrava soltava alguma ironia. Eu devolvia. E a gente se dissipava na algazarra da turma, gente boa e jovem com o mundo pela frente. Um dia eu cheguei mais cedo e ela atendeu a porta. Fez cara de descaso, tudo bem. O Fred estava no banho. Entrei e sentei no sofá. Não sei como, de repente estávamos conversando como nunca fizemos antes, sem nenhuma rusga que nem sabíamos de onde tinha nascido. Eu lembro de seu rosto tão jovem, do sorriso muito jovem com os dentes levemente desalinhados mas harmoniosos, do seu olhar de garotinha à procura dos mistérios. Então eu toquei seu rosto, ela fechou os olhos, o Fred surgiu na sala e disse "Vocês dois, hein?". Não paramos de rir. Era 1988, ainda faltava muito para o século XXI. O Brasil prometia muita coisa, feito uma garota jovem e sorridente em busca do charme do mundo. 

@p.r.andel

Friday, August 08, 2025

Chove

Chove. É necessário. É parte da vida, mas da morte também. A chuva é bela, mas também humilha e mata, faz sofrer e desespera. O belo espetáculo da natureza é cheio de contradição. Quando era jovem eu gostava de desafiar a chuva correndo e jogando bola, ou ainda mergulhando irresponsavelmente no Atlântico Sul - depois que soube dos riscos, nunca mais repeti - os jovens têm medo de morrer, de desperdiçar toda uma vida. Então escapei vivo e continuo nesta república federativa cheia de árvores e enterros precoces, cheia de tanto desamor e falta de empatia enquanto fanáticos religiosos fingem o contrário. Choveu muito há pouco, eu estava protegido em minha casa postiça enquanto o mundo sofria na Cruz Vermelha, e então apareceu uma cena de enterro no novela - eu parei e chorei porque revivi as mortes de meus pais - isso sempre me acontece, volto àqueles dias terríveis. De lá para cá, produzi coisas que dizem ser belas, escrevi mais de dez mil páginas, sofri feito um porco, fiz um monte de gente feliz, juntei pessoas diversas e agora estou aqui encolhido, vivendo intensamente a arte de ser infeliz para todo sempre. Amém.