I
Então o telefone tocou antes da partida de futebol na televisão, jogo do Vasco. Alvaro Doria, que adora frases bombásticas ditas como se nao fossem nada, assim comunicou:
- O marido da Silvia morreu de infarto.
II
Jose era um homem bom, engraçado, divertido. Há coisa de anos, quando frequentava a Livraria Berinjela quase diariamente por conta de minha amizade com um de seus sócios, Maurício, esbarrava com ele. Era o cunhado do outro sócio, Daniel. Eu sempre o via trazendo um carrinho e isopores, por conta dos sanduíches que vendia pelo centro do Rio e arredores. Vindo da Argentina sob crise nos anos noventa, tentava prosperar no Brasil. Na mesma livraria, jogávamos fabulosos campeonatos de futebol de botão, geralmente num domingo a cada mês. Para matar a fome, lá estava Jose com seus sanduíches. Lembro de que ele tinha um dedo da mão parcialmente amputado, o que naquela época era motivo para recusas em processos seletivos de emprego - e há quem diga que o Brasil nunca foi racista nem preconceituoso. Eu me pergunto se os crentes nesta tese vivem como avestruzes. Apesar das supostas dificuldades, sempre chegava com algum sorriso ou piada. Parecia feliz.
Tinha o cabelo liso feito os índios que, de alguma forma, habitaram o solo portenho. Era gordinho, atarracado, de óculos e o portunhol carregado era uma verdade indisfarçável. Era um fã das mulatas cariocas e, entre os amigos cariocas, ficou famosa sua expressão "Negra linda!". Noutra situação, ao admirar as formas da então namorada de um conhecido comum que tínhamos, me chamou e sussurrou:
Tinha o cabelo liso feito os índios que, de alguma forma, habitaram o solo portenho. Era gordinho, atarracado, de óculos e o portunhol carregado era uma verdade indisfarçável. Era um fã das mulatas cariocas e, entre os amigos cariocas, ficou famosa sua expressão "Negra linda!". Noutra situação, ao admirar as formas da então namorada de um conhecido comum que tínhamos, me chamou e sussurrou:
- Peitinho gozztoço, hã?
Não tínhamos um tostão mas passávamos bem os dias da semana.
III
Nada é para sempre. Um dia, Jose se divorciou e voltou para a Argentina. Não deu tempo de despedida. Mais tarde, Maurício desfez a sociedade. Sempre me lembrava, mas não havia por onde fazer o contato. Assim, os anos escorrem. Estamos sempre muito ocupados com nossos computadores, nossas contas, o ir e vir do nada para o além. É chato ser adulto, tal como conversei com Bola ontem. Campeonatos de botão, nunca mais. Ou quase.
IV
Então o telefone tocou no começo do expediente há coisa de uns vinte dias. Depois de quase um ano, era o Maurício, ligando de outra livraria. As palavras continuavam as mesmas. Tantos anos depois, Jose estava no Rio por conta do aniversário da filha e o tinha visitado. Perguntou por mim, queria meu contato, Mauricio passou, ele acabou não ligando e voltou para a Argentina. Queria tê-lo visto; em compensação, dei um pulo na nova livraria e vi o velho amigo livreiro, pouco antes de ver o maravilhoso show de Elton Medeiros na terça-feira retrasada, no CCBB. Conversamos rápido, fiquei de voltar. Ainda não fui.
V
V
Então o telefone do Maurício tocou no começo do expediente de ontem, cirurgicamente dez da manhã. Conversamos e falei do ocorrido. Seria uma despedida o que aconteceu antes? Nunca saberemos, talvez. A vida é muito breve.
Jose foi um amigo muito divertido nas inúmeras conversas rápidas que tivemos. Não há uma foto, uma gravação, um registro formal mas sim várias lembranças engraçadas de alguém que, por amor e sobrevivência, não hesitou em tentar a sorte num outro país.
Qualquer morte me dói. Sou ateu. Tenho certeza do fim.
Por outro lado, os mortos nunca foram tão vivos ao meu lado.
Meus maravilhosos pais. O Xuru. O Fred. O João. O Bruta.
Atores que vejo, escritores que leio.
Tanta música que ouço.
Craques que me deram tanta alegria nos gramados de antigamente.
Será que a morte é morte mesmo? De alguma maneira que sei ser abstrata, estão todos aqui bem perto. A vida persiste enquanto estou por estas bandas.
VI
Voltar no tempo é experiência rara. Fiz isso ontem com meu amigo Bola, ao revirar uma caixona de cds no Extra de Niterói, feito os tempos em que íamos até a Barra para fingir comprar discos, mas na verdade com o intuito de conversar e experimentar essa estranha sensação na terra, que é a da amizade - afinal, hoje é tempo moderno, de redes sociais, amigos virtuais e nenhuma troca.
Bola está muito vivo.
E acho que eu também.
Paulo-Roberto Andel, 28/05/2011