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Wednesday, March 02, 2022

Rio 457 Rio

A cidade fez aniversário. Na verdade, ela é um país, um pequeno país cheio de contradições, problemas seríssimos, confusões, mas também de uma beleza que remete à expressão cunhada por um dos seus famosos habitantes do passado, Ibrahim Sued: "linda de morrer". Nem mesmo seus inúmeros detratores contestam a beleza, exceto quando não querem ser levados a sério. 

Embora o Rio seja mundialmente conhecido pela sua geografia à beira-mar, a cidade está longe de se resumir a isso. Pense num lugar como a Portuguesa de Olaria - se você não conhece é melhor ir logo - e caminhando por lá você se depara com lindas casas e gentes, sem contar os grandes músicos de chorinho ao vivo no domingo à tarde. Festa boa é festa de subúrbio, com comida, bebida e terraço a valer. A trilha pode ser samba, pode ser funk e pode ser rock, você vai se surpreender. E tome Olaria, Ramos, Madureira, Honório, muita coisa boa mas escondida. E o trinômio Méier + Todos os Santos + Cachambi que se estica até Del Castilho e põe todo mundo para se refrescar no grande shopping? 

O mesmo trem da Central que une a cidade partida e desenha as desigualdades é também uma verdadeira aula de marketing, com os camelôs a plenos pulmões vendendo tudo o que podem - tudo é tudo mesmo. Tem conversa, turma, purrinha e adjacências. A concessionária precisa tratar melhor seus clientes, mas ali você compreende melhor a cidade múltipla. 

Pode ser na Praça da Harmonia também, já perto do Centro, onde o clássico e o novo se encontram da janela do VLT.

Ou numa birosca perto da Praça da Apoteose, do velho Estácio dos bambas, construindo uma história secular desde os tempos de Tia Ciata. 

Pode ser no ir e vir da turba na Carvalho de Souza em Madureira, perto do Viaduto Negrão de Lima - calma, é só o sobrenome! - e, se você der um pulo até Edgard Romero, pode se esbaldar a valer no Mercadão, patrimônio da terra. O Miguelão não existe mais, não se pode vencer todas. 

Outro polinômio faiscante é Maracanã + Vila Isabel + Tijuca + Andaraí + Grajaú. Em certos pedaços, ninguém sabe ao certo que bairro é, mas está garantido um universo de gênios da raça: artistas, intelectuais, personagens botequinescos e próceres locais, num caldo cultural que vai de Noel Rosa a Aldir Blanc e deságua na mais carioca das universidades, a UERJ - que, claro, é do Estado, com suas bibliotecas de frente para o Morro de Mangueira. 

Há muitos Rios num só, e desde sempre a dor e a alegria andaram juntas. Tivemos e temos muitos erros, mas a quantidade de gente boa sempre será maior do que a ruim, o que garante a sobrevivência até em destruições econômicas - como a que vivemos desde 2016 - e a maldita pandemia, que botou nosso sorriso no armário por um bom tempo. Ah, e temos nossos próprios condados, verdadeiros bairros-cidade a gosto do freguês, vide Campo Grande, Bangu, Jacarepaguá e Ilha do Governador. 

"Do Leme ao Pontal não há nada igual", assim cantou um dos nossos maiores símbolos, Tim Maia, com seu vocal inesquecível. "Sem contar Calabouço, Flamengo, Botafogo, Urca, Praia Vermelha". Quer fazer um passeio inesquecível? Pegue um frescão no Santos Dumont em direção à Barra: antes de chegar à lindeza do Atlântico Sul carioca, você vai cortar e olhar uma das maiores criações do homem: o Aterro, com jardins de Burle Marx - calma, é só o sobrenome! A visão da estrada com as árvores, o gramado, e o Pão de Açúcar - este, por conta de Deus - deixa uma visão única na mente de qualquer turista. Em mais de quarenta anos, não conheço um que não tenha dito "Lindo!". 

Quer comer uma sardinha inesquecível? Beco da Sardinha, lá na ponta do Centro. Um sanduíche antológico? Paladino, inaugurado em 1907 e fincado na Marechal Floriano com o pedacinho da Uruguaiana. Batata frita, 1, 2, 3? Marechal Hermes! 

Que cidade do mundo tem o Aterro, o Campo de Santana, a Quinta da Boa Vista e o Parque de Madureira? Já ouviu falar do Parque Guinle? E da Travessa dos Poetas de Calçada? Pegue o trem, cruze a cidade e rememore Candeia, Alvaiade, Paulo, Mano Décio. Turiaçu, você lembra? Sampaio? Bonsucesso com certeza. E Anchieta? 

Permita-me o desafogo. Tirar o nó da garganta. Essa cidade tem coisas demais. Se "só" tivesse Machado de Assis e João do Rio, valeria por um milênio, mas a quantidade de poetas, escritores, artistas plásticos, atores, cineastas e profissionais da arte em geral é tão grande, mas tão grande, que fica impossível listar. Todo o Brasil e boa parte do mundo já passou por aqui ou ficou de vez, juntando-se aos craques locais. O baiano Glauber Rocha é Rio, o baiano Caetano Veloso também. Dorival Caymmi e Gilberto Gil. João Gilberto. O mineiro Ary Barroso. O mineiro Darcy Ribeiro. Percebem como a lista é interminável? 

As garotas do Rio, lindas de morrer como dizia Ibrahim, que esticam suas cangas na areia e alimentam poemas imediatos - elas vêm de todos os bairros. A garota de Ipanema muitas vezes mora na Cruz Vermelha, em Vigário Geral, Guadalupe, Paciência ou Boiúna. São esquadrões e esquadrões. Tem Tatiana, Alessandra, Ana Cláudia, Vanessa, Gabriella, Marina, Juliana, Renata e o resto fica por conta do cartório. 

Esse não é um discurso ufanista, é apenas uma humilde tentativa de falar da vida como ela é. O Rio é cheio de problemas, miséria, violência, fanatismos, mas ele não se resume a isso. A cidade é partida e precisa derrubar o muro, mas há tanta vida lá fora, mesmo que precisemos de máscaras e vacina quádrupla - questão de ciência -, e, por isso, sonhar é preciso. 

Temos coisas demais, todas muito importantes. 

Não deu tempo para falar dos grandes cinemas e teatros que perdemos, dos bares inesquecíveis e das coisas que acabam porque, no fim, tudo passa e precisa mudar. 

A luta é árdua e a cidade precisa se unificar, dando uma banana para os limitadores xiitas, sejam eles quais forem. Realidade possível ou utopia, o Rio de Janeiro merece um lugar no topo do mundo. Cá entre nós, muito cá entre nós: quem fala muito mal ou não conhece a cidade ou carrega aquele apêndice desagradável que, muitas vezes, resumimos: inveja de não poder estar aqui. 

Agora me dá licença que eu vou pegar meu VLT, espiar a Cinelândia, a Biblioteca Nacional, o Teatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes e, se bobear, vou até o Edifício A Noite, primeiro arranha-céu da América Latina. No percurso, dá para lembrar das decorações de carnavais inesquecíveis. 

Copacabana? Ah, meu amigo, eu já escrevi um livro. Esse ano eu lanço.

Um viva à Casa de Portugal: foi de lá, no Rio Comprido, que eu caminhei até aqui. Faz muito tempo. 

@pauloandel