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Monday, December 28, 2009

OUTRAS PROCISSÕES



RASANTE

depois que ficou
rasante
sugeriu a morte
num rompante
para o belo
virar traste
no estalar de um
instante
depois que ficou
rasante
porque a chapa era
quente
há fúria de um fuzil
estridente
depois que ficou
rasante
é que se entende
o estúpido da luta
onde todos vivem
derrota –
mesmo a vida
fugitiva
doravante


SÃO

não me espere
pois vou embora
já passou do ponto
e da hora
quero a gíria preferida
que me faça
dar o fora:
a noite já virou
senhora
a moça que amei
é folha morta
e o bom daqui
se fez coisa tão rara
que fadiga à demora
não desespere
porque vou embora:
qualquer vida desses
eu volto;
basta que a pena de valer
seja
clara


DRIVE-THRU

transito
pelo vaivém do ar
que freqüenta
meu peito

cada segundo, uma rua
cada suspiro, uma via

entre a poeira
e o engarrafamento
a tristeza
é um atropelamento
a saudade
é a morte no acidente
que aborta a mocidade
um rompante me namora –
é o ostracismo!
basta somente
o carro vazio
perdido
no estacionamento.


TRANSPARÊNCIA

o primeiro fonema
e mais dez minutos
de prosa barata
forjam prazo
suficiente
para você me desvelar
até o fim
dos
nossos
dias


MANIPULAÇÃO

men
in pool:
action!


RELICARIUM

saudade:
o nunca-mais
repousado
em lençol esplêndido
insone e ansioso
pelo até-breve
que não tilinta
o telefone
pela madrugada


CENA COTIDIANA

Casa vazia. Um berimbau adorna certa canção popular que milita à sala. Olhos de gula saboreiam a bela mulher estampada numa cena de televisão muda. E telefones adormecem. Todos estão muito ocupados para conversar; precisam viver suas televisões mudas, cada um de modo distinto e todos crus. O justo é invadir cada um dos canais pagos, sem maiores intimidades, sem fincar raízes, feito um voyeur contemporâneo. O jeito é postergar as louças em débito e roupas na fila. O jeito é contemplar o passarinho que ladeia a janela, para depois voar ao longe, onde todos estão mortos. O óbvio é um corpo cansado que mendiga descanso, longe dos indigentes em penitência nos arredores. E os braços ficam abertos para o coração da capital – o teto. A fé que não transforma reluz numa parede mal-caiada. As cortinas cerradas, de tom azul-cobalto, velam o mundo. O prazer do repouso à cama escorre pelo horizonte que lhe cabe.


DIALÉTICA MODERNA

não me cabe
regar rancores
por conta de meu
destempero
e este papel já não me serve:
certas vezes, ou muitas,
desenhei tatuagens perversas
nos olhos dos que me
opuseram
e vieram ódio, mágoa, tristeza.
vieram lágrimas sensatas
em sabor de alecrim
que lhes emprestou
alguma beleza.
hoje, deitado no recato,
o máximo que me permito
é replicar
tolices conservadoras
a mim cuspidas
no século do twitter:
palavras rápidas,
nem tão ácidas,
mas limitadas em número
a tal ponto
de tentarem somente
fustigar
tamanha cegueira
de um todo


COR

a paixão da minha cor
só faz todo sentido
quando se despe do púrpura
que alumia
um vestido fino
quando se despe
em meu desejo
e intento o sono profundo
que não se interrompa
no sonho
é que a paixão do meu sono
é branca
e quase loura
e quase doce
quando dança aos mares
e pouco fala
entre um riso raso
e outro aos goles
a cada mal, ela me reza
a canta canto, faz-se voz-guia
e o desejo de meu desejo
é que seja infinita
feito o tesão que me arrebata:
uma covardia!
a paixão da minha cor
é bem mais que uma procissão
uma religião
é maior do que a rebeldia
nas calçadas
e mesmo com tudo isso
me desampara
porque dorme tão

longe

de
mim


LEITE E MEL

não é preciso ser um gênio
um ivalski
um catalano
tibúrcio
ou qualquer takimoto
para ver com alegria
o semblante firme de john lennon
no filme de penny lane
e perceber que o bardo
também é um gênio
basta
respirar
e ver.
não há importância alguma
no estúpido assassino
que lhe ceifou a vida
frente ao edifício dakota:
o inferno católico servir-lhe-á
de penitência quando for a hora
da fogueira acesa.
fato posto, nem convém
reiterar o amargo desgosto
na orfandade de minha eletrovitrola:
penny lane a namora.


RUBRO CINZA

na uva pisada
exala o cheiro doce
do sangue tinto
a vinho

na pedra polida
o pó de brita flutua
até fazer no céu
o cinza

no cimento da lápide
a pá escorre a pasta
que trancafia
a morte
na urna

no bustier escarlate
moram seios de encanto
mamilos intumescidos
e vida


TRADIÇÃO

Quiseram me perguntar a respeito do que rezava minha tradição, como se isso dissesse de alguma relevância na insensatez desta terra. E perguntaram, pedindo uma resposta sucinta, com sabor de drive-thru. Respirei e falei: sou Copacabana, menino. Resposta exata para um bom entendedor: dizer de um pouco de tudo, um pouco de todos nós. Quiseram me perguntar de minha tradição e isso vem de longe, feito a história que cada um de nós carrega no ventre. Eu era criança do Lido, com chupeta de cordão de ouro e minha mãe com riso de menina toda vez que me cortejavam, especialmente um Sérgio Brito ou um Bornay, para ciúmes de alguma tia da praça. Eu brinquei de bola na beira do Atlântico Sul e visei o Copacabana Palace com entediado, mas respeitoso, olhar de déja-vu. E fui criança do Bairro Peixoto e da Figueiredo Magalhães, mais precisamente no coração da rua Tenreiro Aranha, que o progresso assassinou junto com minha escolinha. E vi a mendiga Lina falando francês na calçada de Siqueira Campos enquanto esmolava. Depois, aprendi o Leme, o Posto Seis, o Arpoador e todas as fronteiras d’água. O Fernando me ensinou do Botafogo no Edifício Keats; do Fluminense, já nasci sabendo. E morei muitos anos num prédio cheio de personalidades e anônimos, num esbaforido entra-e-sai típico daquele bairro-mundo, num apartamento que não fazia jus ao que meu pai possuiu no passado. Ele chorava o rancor nos bares, enquanto envelhecia e empobrecia. Minha mãe chorava e sofria, chorava e trabalhava porque Deus era bom e ia extirpar nosso sofrimento. Nossa turma era pule de dez nos jogos de praia, de futebol de botão e nos acampamentos dos escoteiros – e também nas reuniões vespertinas na casa do Fred. Eu passava na porta do São Sebastião para fitar Eliane e ela continua linda. Eu fitava Kátia na galeria do Cine Condor e ela continua linda. A Vera pagava meu picolé depois da aula de basquete no quartel, eu suspirava por aquela mulher perfeita e sei que o tempo lhe foi inerte. Estudei muitas coisas, aprendi muitas músicas com o Gustavo, bebi cerveja com o Jorge e me iludi pensando ser adulto. Entrei para a faculdade e o pessoal desconfiava das minhas camisas de manga comprida, só por eu ser Copacabana. Alguém me ensinou o caminho dos mafuás e puteiros, eu ensinei aos demais. Escutei com atenção qualquer palavra que os mais velhos me diziam na porta dos botequins. E o tempo e o tempo são tempos. Aos poucos, Copacabana deixou de ser a minha vida para ser a minha grande paixão: virei da Vila, do Méier, do Grajaú e Bangu, eram outras palavras. Um dia a sirene tocou; faltava derrubar o muro, somente. Dezenove de novembro de mil, novecentos e noventa e três, seis e meia da manhã. Tranquei a porta sem saber meu novo endereço; parecia a guerra. Nunca mais voltei. Copacabana mora dentro de mim. Meus pais continuaram sofrendo, tiveram dias felizes e ficaram comigo até outro dia, eu com eles porque lealdade sempre foi a nossa sina. Foram embora sem se despedirem e creio que preferiram assim. Eis minha tradição e seu próprio jazigo.


Paulo-Roberto Andel, 28/12/2009



Tuesday, December 22, 2009

DIAS DE DEZEMBRO



(ou porque as coisas não dão certo coletivamente)

I

Chegou o verão. A estação dos sonhos cariocas, quero dizer, daqueles que têm disponibilidade para freqüentar praias e outros regalos da vida. A maioria se espreme nos coletivos e trens apinhados. Certa turma, com mais de dez salários-mínimos no bolso, também reclama: queriam as vias livres para desfilarem com seus “0kms”. Não há espaço. É coisa do mundo. Carro nunca deveria ter sido caro; agora que é mais fácil para assalariados, todos têm. Eu não. E acho ótimo.

A três dias do Natal, são ruas calorentas, as classes média e alta se engalfinhando por presentes para alcançar a bênção de Deus, a classe oprimida esperando a mesma ajuda do tímido Deus. Dizem que nesta época, nos dias finais do ano, as pessoas tendem a ficar mais sensíveis. Procuro, procuro, mas não acho.

O Natal, o Ano-Novo, o Carnaval, a Copa do Mundo. O resto é de intervalos para dor. Dor dos que sofrem, dor dos que se incomodam com a presença dos sofridos. Parece incrível, mas não é.


II

Meu amigo Marco, apressado por conta das atribuições e nós, sentados numa mesa de lanchonete. Posso dizer: Bob’s. Não sou pago para escrever. Faço porque gosto. Não riam com a simulação de certa propaganda. Antigamente nossa lanchonete oficial era o Gordon, mas o Plano Collor acabou com tudo.

Falávamos da dor do mundo e das pessoas, da falta de capacidade do próximo e dividir. Os apressadinhos querem falar de demagogia e paternalismo. Eu quero falar de baixa acuidade social. Ele me conta que, baseado em experiências pessoais, sabe de casos dos moradores de condomínios que, ao verem suas vizinhanças sendo ocupadas por moradores de rua que vêm buscar comida doada por instituições de caridade, reclamam com as mesmas: “Bota esse pessoal noutro lugar”.

Para alguns, isso parece o medo de encarar a realidade dura de que o mundo é cheio de infelicidade, por mais beleza plástica e natural que possua. Sempre vivemos em guerra, essa é a verdade. Mas, sinceramente, acho que é coisa bem pior.

Nazismo.


III

Já se foi a primeira década do século XXI e ainda me surpreendo com os seres humanos.

Impedir alguém de receber uma esmola, um prato de comida, parece coisa de Auschwitz.
Mas acontece.

Depois de tudo o que temos vivido nessa cidade, com direito a gente carbonizada e helicópteros derrubados por bazucas, há quem seja capaz de acreditar que a segregação e a remoção de pobres das favelas/ ruas seja solução.

Há quem creia que o que está aí é imutável, sempre foi assim, não tem o que mudar e será assim sempre. O que me parece o ponto de inflexão entre a humanidade do ser e seu avesso. Se você perdeu o senso de humanidade, babau! Não adianta rezar, não adianta fazer amigo-culto nem pedir para Papai do Céu (sem deboche). Não sendo capaz de valorizar o próximo na Terra, na vida real, onde o fará?


IV

Se você não é capaz de pensar e valorizar o próximo, como pode esperar de quem sempre foi criado como selvagem um comportamento de lorde?


V

Discurso hipotético:

“A culpa é do governo. É do Lula. Por que eu vou dar meu dinheiro para estes salafrários que não fazem nada? Sonego imposto mesmo. Se tiver que usar nota fria, eu uso. É a lei da vida. O dinheiro é meu! É muito bonito ter casa para todo mundo, ter emprego para todo mundo e hospital, mas quem vai pagar por isso? Eu? Na-na-ni-na-nã!”

Alguma vez você já ouviu alguém dizendo algo parecido com isso?

Se ouviu, uma coisa é certa: antes de estar à frente de um idiota, você está à frente de um brasileiro. O típico brasileiro que faz o país andar para trás.


VI

Dizem que capitalismo move o mundo. A julgar pelos números, atravanca. Livre iniciativa é uma das maiores mentiras da Terra, repetida por papagaios cheios de opinião e vazios de argumentos consistentes. O mais incrível disso tudo é que os sistemas liberais se sustentam defendidos justamente por quem mais é explorado por eles: trabalhadores assalariados, clientes de banco com água na garganta dos juros do “chequespecial”. Um contra-senso admirável.

Outra coisa que me chama atenção é como jornais, revistas e noticiários de televisão passaram a ser verdadeiras autoridades da verdade. “O Mainardi escreveu”, “O Jabor falou”. Os famosos “quem?”, notoriamente conhecidos por força da propaganda massiva (outra característica herdada do Reich) que os torna “gênios” de uma hora para outra, mesmo que a formação intelectual e acadêmica passem longe de qualquer graduação. Se algum desses sujeitos vociferar que estrume de cavalo é bom para a pele, imagino a orla do Leblon num domingo, em campanha para a “saúde” das pessoas. Inevitável imaginar o fedor da merda.

Depois de uma boa campanha ou passeata, nada melhor do que uma relaxadinha.

A probabilidade de alguém não telefonar para o Disk-Junkie é zero. Mas convém ressaltar: eles são contra a violência, ao menos entre a estátua do Zózimo e o costão do Leme. Fora disso, não tem “lugar bonito para passar na tevê”.


VII

Ano que vem tem eleição.

Ano que vem tem mil eventos.

O país tem mudado – e muito – para milhões de miseráveis que vivem fora das zonas televisivas. Mas ainda é pouco.

Enquanto não impulsionarmos uma verdadeira revolução supra-partidária, supra-religiosa, supra-econômica, nada mudará de vez para melhor.

Enquanto se ignorar o próximo, o humilde, o desassistido, o indigente, tratando-os como se fossem lixo, entulho de remoção, nosso caos não cessará.

Qualquer garoto de dez anos que domine bem a tabuada sabe que o modelo de “liberdade” vigente no Brasil não liberta ninguém além dos abonados: inescrupulosos, herdeiros, coça-sacos, parasitas e outros que, por terem o “seu dinheiro”, jogam titica de pombo na cabeça dos pobres e riem.

Onde está o espírito de Natal destas pessoas?

No shopping!

Há que se olhar para a cidade, o país e o mundo. Mas, sinceramente, eu gostaria que em 2009 a hipocrisia fosse menor.

No Morro dos Macacos, os direitos humanos são dez mil vezes mais desrespeitados do que em Cuba, Honduras, Venezuela e – pasmem – Irã. Macacos, Adeus, Alemão, Juramento, Borel, Providência. Al outro lado del Rio.

Nas favelas cariocas, mata-se mais do que na eterna guerra em Bagdad.

Não sejamos tolos de comparar a dificuldade financeira do artista plástico do Leblon com o sertanejo de Paraopeba. A dureza de um é não ir ao Antonio’s. A do outro é sobreviver à fome.

Não sejamos patéticos em achar que as dificuldades são iguais se bem sabemos que as oportunidades não são.

Ainda há tempo em se acordar. E isso não depende do governo, do Lula, do Cabral, de ninguém. Só nós mesmos, e nossa solidariedade que hoje mora no Rio Sul ou no Barrashópi.


VIII

Para enxergar melhor o Rio sombrio, o Brasil que se perdeu, o mundo com o dar de ombros ao próximo, vale uma dica.

“Monodrama”, de Carlito Azevedo.

Á boca-pequena, podemos confabular: um dos livros de poesia em língua portuguesa da década. Desde já, condenado a ser página eterna das nossas melhores letras em todos os tempos.

A quem ler, repare no poema que trata da junkie se espetando no Aterro do Flamengo.

Zona Sul não é só beleza e alegria da bossanova.

Por boas festas e um ano de menos cegueira coletiva.


Paulo-Roberto Andel, 22/12/2009

Friday, December 18, 2009

PROCISSÃO MENDIGA















choram
porque a fome lhes esmaga o ventre,
porque a chuva é cruel
e faz dilúvio nas camas de pedra,
despidas de lençóis e fronhas
ou qualquer conforto
que não seja
o entorpecente capaz de inebriar
aquela mesma fome de esmagar,
o frio, a dor
e tantas mazelas que ninguém
há de descrever ao certo

choram porque sofrem
e são esquecidos,
sem direito a vitrines “sold out”,
marcas importadas,
lanches coloridos
ou alguma futilidade qualquer:
choram sem janelas ou paredes,
choram sem anistia,
choram enquanto as estrelas,
brilhantes e já tão mortas,
fazem vezes de telhado
numa terra de covardia

cá fora, o mundo tão bonito
com suas ruas apinhadas
e o corre-corre das compras,
o clingue-clangue do metrô
e outros veículos modernos;
o fascinante mundo a crédito,
a fatura, a prestações,
a cheque sem limite –
do outro lado da calçada,
do lado de fora das grades,
aqueles choram;
vivem um sofrer
que nunca dorme,
um pesadelo que não fenece:
a humilhação de milhões
e milhões
para tudo se tornar um corpo inerte,
abandonado e decomposto à maca
de uma casa médico-legal:
a casa que sempre lhes faltou
agora é um berço de carne pútrida -
horror de morte na celebração
insensata da indiferença


antes disso, choram e choram
por que o mundo lhes despreza,
dá de ombros e desconversa:
o mal que lhes atinge
é problema de deus!
é problema do outro,
sempre o outro –
somos inquestionáveis,
infalíveis e dotados da mais
pura isenção:
quando viemos para cá,
já era assim;
o que nos traz culpa então?
eles choram e choram
porque falamos de deus,
de amor ao próximo,
de boas festas e prosperidade,
mas achamos que eles
não são de deus,
não são da terra,
não são gente feito nós –
e é assim que floresce
todo crepúsculo
da indignidade da gente
que se diz humana:
como se fosse possível
sermos mais gente
do que a gente.
eles choram
por água e pão, somente:
isso me lembra
a beleza de um livro
que não conseguiu nos mudar,
nem transformar
o mundo abominável
que nos cerca,
o qual disfarçamos
com as mesmas vitrines,
as mesmas cores e sacolas
para tentarmos mascarar
nossos piores sentimentos.


Em homenagem ao bilhão de miseráveis na Terra, desprezados pelos governos, pela “livre-iniciativa” e que não terão Natal, Ano Novo, Carnaval, aniversário...

Paulo-Roberto Andel, 18/12/2009

Thursday, December 17, 2009

POEMAS DO SER - PARTE II



GAFE


houve um amanhã,
um mais-à-frente
e me deparei
com a réstia de lembrança
do meu amor,
numa lista de casamento
chique
estampada num computador:
a lembrança
do que já não é amor
nem chique,
nem sequer está à venda.
quando
o amanhã chegou,
o que se imaginaria
era meu vale de mágoas,
minha praia em lágrimas;
porém, meu choro não sucedeu.
não sou mais eu mesmo,
nem meu outro.
o que devia ser rancor
floresceu-se estranheza.
o que merecia ser espanto
tomou praça de lugar-comum.
a saudade quase colidiu
com a indiferença.
resta-me outro amanhã
que ainda não veio.
o mais distante de tudo
é ser adulto:
tempero a fogo
de sobriedade,
tatuagens de serenidade
e um até-breve
que desfoca todo amor
da nossa vã
juventude.


NUA

nua nos meus anseios,
nos desejos mais lascivos
e intimistas,
de modo que me cultiva
à alma:

nua de tão encantadora,
tão romântica e rascante
que só a vejo minha e nua,
numa obsessão catalânica
que me foge à vida.

uma estátua de carne tenra
e fino aroma:
botões de flor à mostra,
receita de lascívia
que me enche o peito,
os sonhos,
me acende na alvorada
e mora no meu pecado:
baila meu ventre,
minha boca seca,
faz meu sexo viver.


GRITO URBANO I

paralelas de concreto,
nacos de ferro,
pedra e néon.
paralelas às ruas
e passarelas:
látex no asfalto,
fumaça liberta no ar
e tudo é um formigueiro
claustrofóbico, cinemático,
que nos logra
a miraculosa
maldição do progresso.


Paulo-Roberto Andel, 17/12/2009

Monday, December 14, 2009

UMA VERGONHA PARA A ETERNIDADE!


Clique no cartaz para melhor visualização!

























Em memória de Mendel Andel, jovem formando de Medicina da Universidade do Brasil que, por não concordar com o nazismo imposto ao Brasil pelos militares, a elite econômica e as multinacionais de origem norte-americana, foi condenado à expulsão do país em 1970.

Nunca mais retornou à terra natal.

Faleceu em julho de 1987, em Israel, onde foi enterrado.

Mendel, meu tio.



Paulo-Roberto Andel, 14/12/2009


JINGOMBÉU


I

Então, o Natal se aproxima. Aquele sujeito que falou mal de você o ano inteiro no emprego quer se mostrar um pouco mais afável. A vizinha de andar, fofoqueira de sempre, dá “bom-dia” com maior intensidade. Um real para o Natal. Vamos dar comida às criancinhas (ao menos) na Noite Feliz. Prosperidade (?), saúde (?), amor (!!!!?). Algum desavisado lembra que precisamos ter mais (?) consciência social. Mais?

Era 1973, corria o fim dos dias e eu andava de mãos dadas com minha mãe na rua Figueiredo de Magalhães, lugar onde vivi boa parte da minha história. Antes, um refresco de côco (com o devido acento) na lanchonete das Lojas Americanas, que ficava na porta de entrada. Algum filme no Condor, o Metro era ali perto, com seu hiper-ar-refrigerado (ou seria condicionado?). O tempo que se foi e não volta mais. Eu vi um mendigo dormindo perto da sensacional Lanchonete Akay, onde hoje reside um Bob´s. Tive medo. Nunca entendi por que pessoas tinham que dormir na rua, no relento, sujas e com fome. Antes que os tresloucados de plantão empunhem armas, atesto que isso foi muito antes de me tornar comunista. Para os mesmos, não custa lembrar que o mesmo comunismo tem mais pontos em comum com a doutrina católica do que se gostaria – aí está Dom Helder Câmara, centenário, para confirmar os alfarrábios.

Tempos depois, muito tempo depois, me apaixonei por uma menina linda chamada Patrícia. Amor de garoto, de menino que sonha com coisas que, quando a gente cresce, não vê jamais, de acordo com o canto maravilhoso de Roberto Ribeiro. No primeiro dia que a levei em casa, olhei para o outro lado da rua. A Akay em grande forma, com seu misto-quente de arrastar multidões; no entanto, a imagem que me atormentava era do mendigo de uma década antes.

As ruas vêm e vão, lá estão os mendigos, os párias que criamos na hipocrisia da sociedade em que vivemos. Achamos Cuba uma ditadura (eu, não!); achamos que Honduras segue um caminho de legalidade (eu, também não!) – e não somos capazes de enxergar a perversidade que se desfolha em nossas calçadas e marquises. Dia desses, assassinos derrubaram um helicóptero policial, em verdadeira ação terrorista, tudo culpa da guerra em que vivemos por conta de porcarias que só servem para destruir famílias, amizades e laços. A polícia, bem sabemos, tem gente de bem mas infiltrados idem. Matamos e morremos mais do que no Iraque, mais do que no Vietnam. É isso que chamamos de democracia?

Ninguém melhor do que um gênio comunista feito Oscar Niemeyer para definir solução de favelas, sempre embonecadas com “humanização” por governos. Perguntado sobre o tema, disse o mestre: “Nenhuma. O importante teria sido não invadir os espaços vazios, respeitar a natureza e conter o poder imobiliário”.

Tapar o sol com a peneira, fingir que não se vê o mendigo de mão estendida, fingir que não se vê o favelado morando na palafita entre ratos, tiros e tristeza. “Eu pago meus impostos e pronto (leia-se “O Estado é meu serviçal”)”. Fingir a velha e mofada falácia de que "é tudo vagabundo que não quer nada". Mas no Natal tudo vai ser diferente.

Quanto a mim, jamais tolerarei um sistema de livre iniciativa que mantém pessoas em favelas e no abandono das ruas. Estou há trinta e cinco anos com esse pensamento e, conseqüentemente, velho demais para mudá-lo. Acredito, piamente, que todos os que se posicionam de forma cruel contra essas pessoas, seja através do desprezo e descaso, seja através de raciocínios ainda mais espúrios como a remoção delas para lugares onde não sejam vistas, são cúmplices do Estado quanto à esta verdadeira atrocidade.

É muito cômodo falar de livre iniciativa com a bunda na poltrona, a tv a cabo ligada e o jantar multivariado assegurado. A realidade da esmagadora maioria não é essa.


II

Houve um tempo em que César Maia, esse mesmo que pode ter forte ligação com os panetones milionários do Governo Arruda, era sucesso no Rio de Janeiro. Gostavam de sua admiração por ordem e autoridade, sem perceber que o ex-prefeito recheava seus discursos com teses e frases claramente emprestadas da doutrina de Mussolini. O pessoal da orla gostava, sim, e muito. E a turma do outro lado do túnel a ver navios – na fotografia. Sujeito que é metido a mandatário sempre faz sucesso. Lembram do Collor? E de Sandra Cavalcanti, braço-direito de Carlos Lacerda nas remoções criminosas de moradores de favelas na Guanabara, tempo em que não faltavam “incêndios acidentais” nas comunidades carentes? Virou braço-direito de Maia.

Há vinte e cinco anos, a cidade era o caos. Vinte também. Dez, hoje. Havia sempre um discurso pronto: “A culpa é do Brizola”. Raras vezes a seguir, o imaginário popular foi tão bem-dotado de completa idiotice. Atualmente, há outra: “A culpa é do Lula”.

Poucos anos depois da confusão que insiste em permanecer nublada, dado o interesse de muitos, o desconforto em ver Delúbio, Silvinho e a cara amarrada do Deputado Genoíno ainda é muito grande. Mas existe uma diferença enorme do jingombéu de Brasília: faltam imagens claras, gravadas, de um governador agradecendo a caridade dada (em notas). E a crise da Arena 2009 não foi denunciada por Roberto Jefferson, ex-advogado do povo (na tv), ex-companheiro de auditório de Serginho Mallandro e que, ao ser questionado sobre as provas que teria a respeito das denúncias do “mensalão” (péssimo neologismo popularizado pelo obeso ex-parlamentar), afirmou com singeleza: “São histórias que vi e vivi”.


III

Os traficantes sanguinários que hoje trazem dor e desespero à cidade maravilhosa do Rio de Janeiro pertencem justamente à geração herdeira dos milhões de desempregados no governo Collor, em paralelo sem precedentes que foi o desgoverno de Marcello Alencar. Seria alguma coincidência? Ou a “culpa” vai cair sobre Saturnino Braga?


IV

Gente é gente todo dia. Gente precisa de atenção e amparo todo dia.

O individualismo das ruas extirpe essa idéia.

Ou se muda a sociedade ou ela desabará por seus próprios meios. E não vai adiantar correr para o São Conrado Fashion Mall em busca de abrigo – a Rocinha é bem ali.


V

Pouca gente é capaz de conviver com seus super-heróis. Eu consegui.

Minha mãe não tem paralelo na minha vida por ter sido minha mãe, somente. É porque foi a melhor pessoa que conheci na vida.

Em 1978, vivíamos muita dificuldade em casa por conta da derrocada financeira de meu pai. Eram tempos de coisas contadas, mesmo, bem diferente da pujança de pouco tempo antes. Certo dia, caminhávamos pelo Bairro Peixoto quando a vi assustada: ela tinha acabado de avistar um rapaz com quem trabalhara em alguma loja. Ele, de mãos estendidas, se chamava Matias. Tinha virado mendigo.

Toda a praça parou para nos ver, claro. Se hoje, 2009, não é comum uma pessoa “bem-vestida” conversar com um mendigo na rua, imaginem trinta anos antes. Além do mais, minha mãe estava arrumada e ainda era muito bonita, o que aumentava o choque de preconceito. Não lembro bem o que conversaram, mas sei que minha mãe me trouxe com ele, comprou algumas roupas no shopping center de Copacabana (hoje, o “Shopping dos antiquários”) e subiu conosco para nossa minúscula casa. Desnecessário dizer da reação das pessoas na rua, mas minha mãe nem estava aí para nada quando o assunto era fazer o bem. O Matias subiu, tomou banho, trocou de roupa. Descemos novamente, fomos ao barbeiro também no shopping. Virou outra pessoa, mesmo.

Como nossa casa tinha se tornado muito pequena, não havia como hospedá-lo. Minha mãe tinha pouco dinheiro, mas comprou um jornal, parou num orelhão daqueles que usavam fichas da Cetel e telefonou: conseguiu uma vaga para o Matias num anúncio de jornal. E pagou dois meses. Lembro que, depois da ligação, ele não parava de chorar e eu não entendia, claro: na verdade, estava agradecido.

O tempo passou, um, dois anos talvez. Por razões que a memória esqueceu, lá estava eu na rua com a minha mãe de novo em algum lugar do bairro. Num súbito, deu um grito de alegria: era o Matias. Estava com avental, na hora de folga, flanando: era cozinheiro de algum restaurante de Copacabana. Quando nos despedimos, eu lembro bem da alegria que tomou conta da minha mãe; criança ainda, eu não tinha a real noção de grandeza daquela situação. Literalmente, com alguns trocados, uma ficha de orelhão e muita atitude, minha mãe mudou a vida de uma pessoa sofrida para sempre.

Felizmente, as histórias que vi e vivi são bem diferentes das contadas pelo Sr. Roberto Jefferson. E das registradas em vídeo com a participação especial do Governador Arruda.

Meu Natal é minha mãe.


VI

Vale a pena reproduzir aqui o excelente artigo escrito por Frei Betto a respeito do novo fenômeno da internet, a blogueira cubana Yoani Sánchez, cantada e decantada como uma versão latino-americana de Mahatma Gandhi a lutar contra as injustiças de Cuba. Não se trata de uma verdade absoluta; tão-somente, um instrumento de reflexão. O artigo de Frei Betto foi publicado em inúmeros jornais e veículos recentemente. Veja:

“O mundo soube que, a 7 de novembro último, a blogueira cubana Yoani Sánchez teria sido golpeada nas ruas de Havana. Segundo relato dela, “jogaram-me dentro de um carro... arranquei um papel que um deles levava e o levei à boca. Fui golpeada para devolver o documento. Dentro do carro estava Orlando (marido dela), imobilizado por uma chave de karatê... Golpearam-me nos rins e na cabeça para que eu devolvesse o papel... Nos largaram na rua... Uma mulher se aproximou: “O que aconteceu?” “Um sequestro”, respondi. (www.desdecuba.com/generaciony )

Três dias depois do ocorrido nas ruas da Havana, Yoani Sánchez recebeu em sua casa a imprensa estrangeira. Fernando Ravsberg, da BBC, notou que, apesar de todas as torturas descritas por ela, “não havia hematomas, marcas ou cicatrizes” (BBC Mundo, 9/11/2009). O que foi confirmado pelas imagens da CNN. A France Press divulgou que ela “não foi ferida.”

Na entrevista à BBC, Yoani Sánchez declarou que as marcas e hematomas haviam desaparecido (em apenas 48 horas), exceto as das nádegas, “que lamentavelmente não posso mostrar”. Ora, por que, no mesmo dia do suposto sequestro, não mostrou por seu blog, repleto de fotos, as que afirmou ter em outras partes do corpo?

Havia divulgado que a agressão ocorreu à luz do dia, diante de um ponto de ônibus “cheio de gente.” Os correspondentes estrangeiros em Cuba não encontraram até hoje uma única testemunha. E o marido dela se recusou a falar à imprensa.

O suposto ataque à blogueira cubana mereceu mais destaque na mídia que uma centena de assassinatos, desaparecimentos e atos de violência da ditadura hondurenha de Roberto Micheletti, desde 27 de junho.

Yoani Sánchez nasceu em 1975, formou-se em filologia em 2000 e, dois anos depois, “diante do desencanto e a asfixia econômica em Cuba”, como registra no blog, mudou-se para a Suíça em companhia do filho Téo. Ali trabalhou em editoras e deu aulas de espanhol.

Em 2004, abandonou o paraíso suíço para retornar a Cuba, que qualifica de “imensa prisão com muros ideológicos”. Afirma que o fez por motivos familiares. Quem lê o blog fica estarrecido com o inferno cubano descrito por ela. Apesar disso, voltou.

Não poderia ter assegurado um futuro melhor ao filho na Suíça? Por que regressou contra a vontade da mãe? “Minha mãe se recusou a admitir que sua filha já não vivia na Suíça de leite e chocolate” (blog dela, 14/08/2007).

Na verdade, o caso de Yoani Sánchez não é isolado. Inúmeros cubanos exilados retornam ao país após se defrontarem com as dificuldades de adaptação ao estrangeiro, os preconceitos contra mulatos e negros, a barreira do idioma, a falta de empregos. Sabem que, apesar das dificuldades pelas quais o país atravessa, em Cuba haverão de ter casa, comida, educação e atenção médica gratuitas, e segurança, pois os índices de criminalidade ali são ínfimos comparados ao resto da América Latina.

O que Yoani Sánchez não revela em seu blog é que, na Suíça, implorou aos diplomatas cubanos o direito de retornar, pois não encontrara trabalho estável. E sabe que em Cuba ela pode dedicar tempo integral ao blog, pois é dos raros países do mundo em que desempregado não passa fome nem mora ao relento...

O curioso é que ela jamais exibiu em seu blog as crianças de rua que perambulam por Havana, os mendigos jogados nas calçadas, as famílias miseráveis debaixo dos viadutos... Nem ela nem os correspondentes estrangeiros, e nem mesmo os turistas que visitam a Ilha. Porque lá não existem.

Se há tanta falta de liberdade em Cuba, como Yoani Sánchez consegue, lá de dentro, emitir tamanhas críticas? Não se diz que em Cuba tudo é controlado, inclusive o acesso à internet? Detalhe: o nicho Generación Y de Sánchez é altamente sofisticado, com entradas para Facebook e Twitter. Recebe 14 milhões de visitas por mês e está disponível em 18 idiomas! Nem o Departamento de Estado do EUA dispõe de tanta variedade linguística. Quem paga os tradutores no exterior? Quem financia o alto custo do fluxo de 14 milhões de acessos?

Yoani Sánchez tem todo o direito de criticar Cuba e o governo do seu país. Mas só os ingênuos acreditam que se trata de uma simples blogueira. Nem sequer é vítima da segurança ou da Justiça cubanas. Por isso, inventou a história das agressões. Insiste para que suas mentiras se tornem realidades.

A resistência de Cuba ao bloqueio usamericano, à queda da União Soviética, ao boicote de parte da mídia ocidental, incomoda, e muito. Sobretudo quando se sabe que voluntários cubanos estão em mais de 70 países atuando, sobretudo, como médicos e professores.

O capitalismo, que exclui 4 bilhões de seres humanos de seus benefícios básicos, não é mesmo capaz de suportar o fato de 11 milhões de habitantes de um país pobre viverem com dignidade e se sentirem espelhados no saudável e alegre Buena Vista Social Club”.

Moral da história? “Assim não é, se lhe parece”.


VII

Foi-se o tempo em que eu acreditava na bondade dos homens no Natal. No Papai Noel, também.

Era 1974. Eu e meu amigo Júnior estávamos em minha casa, na rua de Santa Clara, 345, num prédio que não mais existe – agora é um moderno fléti. Era véspera de Natal, dia 24.

Bateram à porta. Ficamos assustados e nervosos. Minha amada mãe disse que poderia ser o Papai Noel. Corremos, abrimos a porta e lá estava um sacão de brinquedos de enlouquecer qualquer criança. Imediatamente, corri para a banheira a testar um pequeno submarino que flutuava n’água. O Júnior ficou muito contente também com muitos presentes. A ingenuidade de crianças não nos permitiu perceber que o Papai Noel era meu pai, que levou o sacão e voltou ao apartamento pela porta dos fundos. Foi uma grande noite. Eram tempos de fartura econômica para meu pai, infelizmente despedaçados para sempre a seguir. Tudo bem antes da história do Matias.

Fui uma das poucas crianças deste país a ganhar um presente desses numa noite de Natal, embora o gesto de carinho seja infinitamente maior do que os objetos presenteados. Sou e serei eternamente grato a meus pais por tudo o que me ofereceram; até mesmo nas inúmeras dificuldades, aprendi bastante. Se é que os perdi para sempre, o passado está intacto.

Dedico aquela grande noite à minha querida família, que sempre estará por aqui de alguma forma.

E também ao mendigo sofrido da lanchonete Akay.


Paulo-Roberto Andel, 14/12/2009