Thursday, November 21, 2024

A garota

Lembrei de uma colega da faculdade. Não fomos íntimos, mas convivemos uns quatro anos. Sempre foi uma simpatia comigo, um doce. Nenhuma conversa profunda, algumas amenidades. Ela devia ficar desconcertada porque eu era roqueiro, eu era Black Sabbath e ela era Paulinho Moska. Eu também ouvia bossa nova, mas ela não sabia. Era séria, séria mas tinha um sorriso bonito. Ontem lembrei dela. Morreu há muitos anos, teve uma doença terrível. Será que depois de tantos anos e anos, ela está em algum lugar e soube que eu pensei nela? Podíamos ter conversado mais sobre qualquer assunto. Podíamos ter aprendido mais coisas. Eu lembrei dela. Será que vinte anos depois da minha norte alguém se lembrará de mim? Não sei, mas eu lembrei de minha colega. Falei com um amigo em comum a respeito dela, estudamos todos juntos. Ela era um doce. Devíamos ter falado mais. Eu era garoto, tinha pouco mais de vinte anos. Ela faz falta. Era uma boa pessoa, veio de grande luta contra a pobreza, se esforçou para chegar à universidade. Depois fez um bom concurso profissional. Acima de tudo era uma boa pessoa, tinha o mais importante de tudo. Ela faz falta. Se era doce para mim, distante, imagine para seus próximos. Pensei muito nela, será coisa de religião? Gostaria que ela estivesse num bom lugar, mas não creio. Gostaria que ela estivesse aqui para lhe dar um abraço e um beijo, também dizer obrigado por todas as vezes que foi gentil e simpática comigo - gentileza e simpatia, bens tão escassos nesta terra de sofrimento e ingratidão. Queria que ela estivesse bem. Tão jovem, tão garota, lutou tanto e tudo o que sobrou foi esta pequena lembrança: há justiça nisso? Eu era Black Sabbath mas escrevia poemas de amor e as garotas adoravam. Eu também era bossa nova e cool jazz. Eu era Bill Evans e não sabia. Queria acreditar que ela está nem. Lembro bem de seu sorriso e doçura. Não pude falar nada, porque nem maturidade tinha: eu era um garoto popular louco para conseguir um emprego e ajudar minha família - ela também acabou. Mas não é tristeza e talvez não seja só saudade: era para dizer que eu admirava uma garota que conheci pouco e lamento muito que ela não esteja por aqui. 

@p.r.andel

Wednesday, November 20, 2024

O silêncio dos escroques

Os acontecimentos das últimas horas, revelando claramente o plano de execução de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes são gravíssimos, mas não surpreendentes. Quem nunca imaginou que pessoas que debochavam da morte de milhares de pessoas por COVID poderiam até praticar crimes?

Agora, tão nojento quanto é constatar que o suor de milhões de brasileiros paga expressivos soldos a quem sempre está do lado contrário dos interesses do povo. Tem sido assim desde sempre. Muitos cidadãos que têm mais de 50 ou 60 anos de idade já ouviram falar de amigos com tios, avôs ou equivalentes que "trabalhavam na Petrobras" na época da ditadura assumida (nenhum deles sob concurso). E basta lembrar de momentos como na OAB e no Riocentro para se refletir a respeito. 

O golpe contra Dilma em 2016 já vinha desde 2013, sendo consolidado três anos depois. À época, não faltou quem justificasse o golpe com argumentação rasteira. Outros preferiam silenciar. E de 2016 a 2022 o Brasil viveu o pão amassado e chutado pelo diabo. Acabou a mamata, exceto para os mamateiros de sempre. O cinismo de parte do eleitorado era tamanho que naturalizaram negociatas de imóveis com dinheiro em espécie, a única loja de chocolates no mundo que não lucrava na Páscoa, o maior vendedor de carros usados no planeta (negócios fechados a cada 20 segundos) e outras barbaridades como o genocídio na Covid. E a mesma cara de paisagem está em voga com o silêncio sobre o plano de aniquilação de pessoas para promover (mais) um golpe de estado.

Escroques. 

Escroques. 

Escroques. 

FDPS.

Golpistas. 

Traidores da pátria. 

Saturday, November 16, 2024

G20 x [ 2(4 - 6) + 3(8 - 3)]

Para que tanto ódio? Ganância? Arrogância? Tudo é inútil. Quinze dias depois de um enterro, somente as pessoas muito próximas ainda pensam no morto. Para que tanto desamor? Para que tantos discursos que não se sustentam na prática? Para que tanta hipocrisia? 

Nascemos, crescemos e deveríamos ser gregários, mas somos escrotos. Mesquinhos. E muito hipócritas. Agora mesmo temos um grande evento no Rio, com dezenas de líderes mundiais, onde justamente vai se discutir sobre mudanças que deveríamos ter feito há vinte ou trinta anos. A 50 metros de todos os pontos de concentração do G20 há alguém passando fome e pedindo esmolas. O Rio tem milhões de pobres, falidos e foodidos mas todo mundo finge que nada está acontecendo. E assim empurramos com peito e barriga, até quando Deus quiser e o sistema circulatório colaborar. 

A água, o clima, a atmosfera, a comida, o estudo, a segurança, o conforto... Tudo isso é importante não apenas para cada um de nós, mas para todos, para o próximo. Acontece que, de uns tempos para cá, o smartphone é mais amigo do homem do que o próprio homem, então compreendemos toda essa pomba. 

Crianças chorando de fome, crianças explodidas na guerra, crianças estupradas e tanta gente fingindo cara de paisagem. 

Tanta gente jovem adulta que não tem direito de almoçar e sonha com um bife. São milhões e milhões. Não existe democracia de verdade enquanto as pessoas não podem comer, ter uma roupa, um lugar mínimo para morar. Não existe democracia enquanto trabalhadores morrem com balas na cabeça. 

As discussões são importantes, mas discursos sem prática levam a lugar nenhum. Não basta bradar contra a fome e depois fingir que está tudo bem, porque não está. Não está, nem estará. Não adianta bradar contra a violência e praticar o ódio ostensivo. Falamos tanto de roubalheira... Será que somos tão perfeitos assim? Não!

Precisamos de paz. De verdade. 

@pauloandel

Wednesday, November 13, 2024

Fluminense

Tenho saudades do meu time. Ele não era apenas um time, mas um ambiente, uma atmosfera. Tanto fazia se a arquibancada estava lindamente lotada debaixo de uma nuvem continental de pó de arroz, tanto fazia: podia ser também uma quarta-feira vazia, chuvosa, com alguns bandeirões e a esperança numa vitória, mesmo que não significasse um título. Meu time era ter meu pai me puxando pela mão e me dando cachorro quente; era a sala das torcidas onde você espiava a dança das cores embalada pelo samba autêntico. Tenho saudades do meu time, todo de branco em campo, cheio de valentes jogadores negros, alimentando os sonhos dos garotos com o jogo de bola que, mesmo tão contaminado por ora, mantém seu fascínio através dos tempos. Eu tenho saudades de quando éramos quase todos anônimos e ninguém precisava se promover com polêmicas medíocres, porque o que realmente importava era o time - e não a patética vaidade do senhor dono da razão. Saudades de quando tudo era mais simples e humilde - o Maracanã era povo de verdade. Há quarenta anos, eu deitava sozinho no chão da geral e o céu me parecia uma grande tela circular: as nuvens lentamente navegando pelo céu, uma ou outra estrela sobressaindo e uma réstia de infinito que só revi anos depois nas telas circulares dos shows do Pink Floyd. Eu tenho saudades dos abraços sinceros na arquibancada, saudades dos maravilhosos vendedores de refrigerantes com seus capacetes, tanques de refresco nas costas, roupas brancas e visual de astronautas. Saudades das grandes bandeiras. Saudades dos grandes placares eletrônicos com suas lâmpadas e o nosso escudo estampado nelas quando o time subia a escada do túnel à esquerda para entrar em campo - dezenas de garotinhos corriam loucamente pelo gramado, sonhando em estarem ali um dia como protagonistas. Está quase tudo morto pelo tempo, pois ele sempre vence, mas existe um refúgio permanente: o das minhas lembranças, o da saudade. 

[no fim, tudo é desimportante 


Glauber já!

A gente precisava do Glauber agora, gritando, agitando, o escambau. Atentado em Brasília às vésperas do G20, o fascismo esticando a corda até onde puder, as pessoas alienadas e perto do feriado a mentira vai triunfar. É um alívio ter meu amigo Bigode nas conversas diurnas de bar, ufa, e aprender um pouco com ele sobre a genialidade de Nelson Pereira dos Santos. Aqueles caras geniais que nos anos 1950 e 1960 viraram a arte do Brasil de cabeça para baixo, colocando nas telas de cinema o Brasil real e, por isso mesmo, nem sempre agradável e leve. A gente precisava do Glauber nem que fosse no programa de TV por um tempo, entrevistando, debochando e até rindo, mas quebrando a p0rr@ toda de verdade. O eterno silêncio de Glauber é o nosso silêncio de torpor diante das atrocidades que testemunhamos diariamente, como se tudo fosse normal. Não, não é. O Brasil está sendo trucidado dia e noite. O Brasil precisa se levantar. Precisa. 

@pauloandel

Sunday, November 03, 2024

Vi

Vi, sim

Tenho visto quase tudo nessa estrada longa 

Que não sei onde dará 

Eu vi a dor, o choro

As mãos esmolando

Eu vi o desespero 

Vi a indiferença, o dar de ombros, o nada a ver com tudo

Vi a solidão, a melancolia e o desprezo

Mas também pequenas esmolas de felicidade

[Esta cidade tudo oferece para você que tem dinheiro 

Eu vi mortes horríveis por balas perdidas

fornos de microondas

e esquartejamentos

Vi pessoas famintas nas portas de mercados e 

em filas de hospitais 

Eu vi amores morrendo e nascendo, amores abortados, corações solitários e corpos desejosos

E vi o êxtase dos abraços no Maracanã 

As vozes da alegria na Quinta da Boa Vista 

Vi uma criança com seu balãozinho, outra com sua tampinha de garrafa e a terceira admirando um avião 

Que aqui não pousará 

Eu vi vítimas de incêndios e grandes acidentes

Mas também agradáveis companhias em ônibus de viagem 

Vi o fogo de conselho em seus momentos derradeiros e alvoradas esperançosas

O livro dos dias com trabalhadores indo e vindo 

Vi notícias populares, trágicas, quase felizes

No coração da Central 

Às seis da tarde


E ainda não posso parar

Não tenho direitos 

Eu virei uma alma penada de meu 

próprio cotidiano 

Mas ainda tenho o que dizer

Oh, lindos litorais e pontes arrebatadoras, vocês ficam para trás 

Gatas alucinantes e bares de mil conversas, também 

Eu vi o céu e o inferno no mesmo tecido da toalha que me enxuga

E rancores indiscretos

Escrevi vinte mil páginas para dizer qualquer coisa, mas não tenho mais paz - nunca tive - é uma busca inglória

Eu vi minha vida escorrendo em vão 

Mas ainda tenho algo 

a dizer - quem sabe várias coisas desimportantes?

E só preciso de uma mísera esmolinha de felicidade

Uma simplória mudança pela felicidade 

em moedinhas humildes e sem brilho 

Uma moedinha, uma república 


@p.r.andel

Friday, November 01, 2024

Sex, Sprite e Vila Isabel

CAPELINHA, PARMÊ E MICHELUCCIO 

NAQUELE TEMPO éramos duros mas nos divertíamos. No começo da 28 de setembro havia aberto a filial carioca da pizzaria Micheluccio, que começamos a frequentar e infelizmente durou pouco tempo - a pizza era maravilhosa. Depois descobrimos a Parmê e virou uma febre de bater ponto regularmente.

À noite o negócio era o Capelinha, frequentado no passado por ninguém menos do que Noel Rosa. Uma vez, Martinho entrou no bar - tocadaço - e nos disse "Boa noite, rapaziadaaaaa". E foi pro banheiro. O almoço também era excelente. 

Comecei em Vila Isabel em 1990, por falta de dinheiro. Ficava apertado ir e voltar todo dia duas vezes para as aulas, então algumas vezes eu ficava direto até à noite, das 7 às 21:30h. O almoço, baratinho, num restaurante da rua Sousa Franco - você pagava um fixo e comia o quanto quisesse - tinha que comer muito para aguentar até à noite. Depois caminhávamos, normalmente por Vila Isabel ou Grajaú, até a Tijuca mesmo. Ou voltávamos para a UERJ. Em sextas notívagas com nossas crushs, saíamos à meia noite da Praça Sete, caminhando as pé em bando até a São Francisco Xavier, na porta do campus. Colocávamos as garotas no ônibus e voltávamos para casa. Quase ninguém tinha carro, mas começamos a receber tickets refeição e era o que bastava. Foi de 1990 até mais ou menos 1994, aí nos separamos por causa do trabalho e porque a vida é desse jeito. 

Às vezes sozinho à tarde, eu ouvia o disco novo de João Gilberto no walkman, além do programa de jazz do Jô Soares, que foi um professor musical pra mim. 

Nem de longe dava para pensar que nosso playground do início da vida adulta se transformaria numa praça de guerra diária, com tiroteio para todos os lados.

CINDY

Hum, sonhei com a Cindy. De novo. É uma história muito louca, porque nunca nos beijamos, não por falta de vontade, mas por loucura mesmo - acho que era. Eu a vi uma vez na faculdade e fiquei louco por ela, mas só nos conhecemos um ano depois e mantivemos alguns anos de contato, com raríssimos encontros. Acontece que ela não era apenas linda, mas extremamente sexy, então me dava um tesão enorme, enlouquecedor. Foi a garota que eu mais vezes transei em sonho na vida, não sei ao certo sobre a recíproca, mas creio que tenha tido prazeres pensando em mim. Então não dormi muito, mas foi o suficiente para transar muito em sonho e, quando você acorda, vê que nada daquilo é real mas é impressionantemente verdadeiro - você sente nos lábios o gosto do prazer cumprido, só que imaginário. Acho que devíamos ter vivido muitas coisas, ela não quis, agora é tarde demais. Ou não. Tudo bem. Eu penso em Cindy, eu tenho boas sensações por causa dela. Não importa se não é a vida real: viver é melhor que sonhar, mas não se pode vencer todas as batalhas. O tesão permanece. 

SPRITE

Ainda bêbado de êxtase por causa de Cindy, acordei às cinco e meia, tomei banho e desci para o posto am/pm da outra esquina. Havia uma super promoção: latas de refrigerantes a dois reais, litro e meio de mate a cinco, pão de queijo a cinco. Gastei vinte reais e fui muito feliz. 

Estou cansado. Preciso de um cochilo. Hoje estou de meia folga, vou encontrar amigos geniais dos tempos da escola e, depois de meses, voltarei ao Maracanã. Ainda que não seja mais o velho estádio que frequentei, ele ainda tem um significado forte. Tem o Fluminense, tem a história, meus tempos de faculdade ali do lado, grandes cenas de 1988 a 1996. 

Daqui a dezessete horas, terá passado mais um dia. Eu terei uma lata gelada de Sprite e já saberei o foi feito do Flu. Virá o final de semana, daqueles que a gente fica esmolando moedinhas de felicidade e pequenos momentos divertidos. Se é o que temos, que assim seja. Tomara que seja um dia bom, só um pouquinho, no meio dessa terra cheia de sofrimento, guerras, genocídios e rancor. 

@p.r.andel

Sunday, October 27, 2024

Brasil, república dos biscoitos

O Brasil. Eu nasci no Brasil há muitos anos. É um país gigantesco, que conheço bem menos do que gostaria. Geograficamente, é uma terra linda, cheia de pontos culminantes. O problema é o homem poderoso, que destrói tudo, humilha e esfola. 

O Brasil é uma terra linda que pouquíssimos brasileiros podem desfrutar, já que a maioria ainda vive num regime análogo a escravidão, porém enrustido de liberdade. Nas grandes capitais, milhões de brasileiros são submetidos aos desejos do crime ou das grandes corporações - e esses desejos muitas vezes se encontram, quando não andam de mãos dadas. 

Como a maioria dos brasileiros é permanentemente humilhada, não há tempo para muita coisa além da própria sobrevivência. Não há tempo para reflexão. A única saída para uma vida humilhante e opressora é buscar um lugar no céu, sonhar com uma hipótese já que a vida real é perturbadora e cruel. Isso explica a força de tantos pastores e bispos calhordas pedindo Pix na TV. 

Não há como refletir. As oportunidades são escassas. Não há interesse por leituras, conversas, trocas. Não importa aprender: para quem tem o privilégio da escola, o que importa é passar de ano. E quando vem o grande funil à frente, o que importa é ter o diploma. 

É difícil quantificar, mas o Brasil certamente tem uma das maiores produções artísticas da humanidade. Incontáveis livros, discos, peças, filmes, obras, instalações, shows, produções diversas. Só que 99% disso vive no subsolo, se muito. Não há acesso, divulgação, políticas públicas adequadas e suficientes, afora o descaso do mundo corporativo que, salvo exceções, só tem compromisso com o lucro. Se milhões de pessoas vivem em função de lutar pela sofrida sobrevivência, muitas vezes só almoçando biscoitos, como vão buscar acesso a equipamentos culturais? 

Os números não mentem: vivemos uma das maiores desigualdades econômicas do planeta. Boa parte da população não tem acesso a bens de consumo, uma casa decente, às vezes não há luz nem água. 

Para segurar esse rojão, temos duas fontes da juventude: futebol e carnaval, com todos os problemas que os dois ambientes em questão possuem. É um paliativo, ok. 

(Continua, talvez)

Thursday, October 24, 2024

Turn It on again

1

Silêncios dizem muita coisa. Falam quase tudo. E alto.

2

O que o outro pensa em silêncio? Às vezes desconfiamos. Muitas vezes não perguntamos por medo ou hipocrisia. Noutras, por conveniência. 

3

Sobre o amor que mora em silêncios. O desejo, o sexo, o tesão explícito. Águas bravias represadas, supõe-se. 

4

O tesão guardado em silêncio é uma derrota.

5

E você olhar aquela mulher, desejá-la ardentemente desde sempre, carregar em si todas as potências sexuais e nada fluir. É um desperdício.

6

Ah, o silêncio que carrega tantas coisas. O desejo, a saudade, também a melancolia pela ingratidão, são muitas cargas.

7

Aquela linda mulher deitada nua em berço esplêndido, catedral de carne, pátria de todas as pautas de prazer.

Wednesday, October 23, 2024

Quando o poeta se vai

As palavras me interessam desde bem pequeno. Os nomes, os nomes originais. Quando ouvi o nome de Antonio Cícero, nunca mais esqueci. Primeiro, ouvi sua poesia nas grandes letras. Depois, nos livros. Para completar, AC era irmão de Marina, que o nosso mundo de Copacabana amava de paixão - ela passava pelo shopping depois de uma peça de teatro - de camiseta e jeans -, sorria e ficávamos encantados.

Muitas vezes vi Antonio Cícero nas ruas e deveria tê-lo cumprimentando, mas não o fiz. Ele estava sempre na região dos sebos. Sei lá, fiquei com vergonha, não queria interromper seu flanar, fiz a mesma besteira com João Carlos Assis Brasil, que vivia pela Carioca e Tiradentes. 

Foi gigantesco. Passou por cima da eterna comparação entre a poesia, digamos, formal e a das letras de música: brilhou em ambas muitas vezes e a quantidade destes brilhos é um argumento definitivo de sua obra. 

Tudo passa com enorme brevidade. O trem da vida dispara pelos trilhos a seiscentos quilômetros por hora. Eu ainda lembro da primeira vez que li o nome de Antonio Cícero. Tudo é brevidade. 

Quando um poeta se vai, o rombo parece ainda maior. No mundo das injustiças, ganâncias, covardia e tudo muito temperado com o azeite da hipocrisia, são os poetas que dão algum sentido à vida para que se possa prosseguir. Assim, perder um poeta é tirar o oxigênio da beleza, é asfixiar o cotidiano e apedrejar a sensação de humanidade. Mas como ir embora é inevitável, o poeta deixa seus versos para sempre, pouco importando se são extremamente sofisticados ou mais simples, se têm profundidade continental ou são mais rasos. Não importa. "O poeta é a pimenta do planeta".

As coisas não precisam de você/ Quem disse que eu tinha que precisar?/ As luzes brilham no Vidigal/ E não precisam de você/ Os Dois Irmãos também não.

O Hotel Marina quando acende/ Não é por nós dois/ Nem lembra o nosso amor.

Os inocentes do Leblon/ Esses nem sabem de você/ Nem vão querer saber

Monday, October 21, 2024

Gente interesseira x interessada

Era pra ser engraçado, talvez cruel ou nada disso. Há pouco me procurou uma pessoa que não falava comigo há anos.  Não uma conhecida qualquer, mas alguém que contou comigo em várias situações importantes, e que evidentemente não foi recíproca, daquelas que some para não correr o risco mínimo de algum pedido. Tudo bem,  a vida é assim e a maioria das pessoas é ingrata mesmo. Acontece que, se você só se relaciona com as pessoas que não vão te amolar, precisa estar preparado para o desprezo, a frieza e indiferença por aí. Depois de um tímido oi, a criatura vem perguntar se tem algo errado e digo que não. Insiste, persiste. Explico que não, mas...

"Puxa vida, há tanto tempo que a gente não se fala, né?" (show de cinismo)

”É, tem sim. Desde que você achou que eu ia te pedir favores ou dinheiro emprestado, simplesmente deixou de fazer contato e desapareceu." (não contem comigo para hipocrisia)

[Mensagem visualizada, silêncio e demora de réplica porque o soco foi no queixo e, se a pessoa não é completamente calhorda, ela sente

[Três minutos...

"Eu só queria saber como você está."

"Estou bem. Ótima semana".

"Fique bem". (certamente o objetivo original desta expressão era outro, mas com o tempo ela se tornou um ícone do "phoda c". reparem que em muitos casos, quem a usa gosta de manter distância regulamentar de todo mundo para "não alimentar relações tóxicas" ou "só ficar perto do que faz bem". resumo: gente interesseira que usa a companhia alheia como um objeto descartável...)

Polegar amarelo, outro ícone para dar fim a conversas desimportantes de gente que só te procura de maneira interesseira, não interessada e nem interessante. Toda relação positiva tem interesses também positivos: você tem o interesse fraternal, cordial, afetivo, amoroso, sexual etc, todas com desdobramentos. O interesseiro, não: ele só procura alguém para resolver algo, seja imediatamente ou não, mas já tendo em mente que tem prazo de validade para descartar o próximo, que vê como um simples objeto. Sua questão é apenas atender aos próprios interesses, geralmente materiais, e mais nada. É fácil identificar o interesseiro em qualquer lugar, basta pensar no nome da criatura em análise e refletir o seguinte: "Se a minha relação com fulano/a NÃO envolvesse dinheiro, poder, prestígio ou visibilidade, ela estaria aqui do meu lado?".

O jogo da vida é simples e direto. Com os recursos atuais, só não se fala quem simplesmente não quer. Se os tempos ficaram mais curtos, mandar um recado pela internet, um olá etc, não leva mais do que dez segundos. Desculpas esfarrapadas soam cada vez mais ridículas. Honestidade não faz mal a ninguém. Se você não sente obrigação de valorizar nenhum contato, este é um direito legítimo; apenas não reclame se no futuro o tratamento recebido for idêntico ao que você adotou. A indiferença é democrática e dói para todo mundo, até para os mais calhordas. Não que eu queira oferecer dor a ninguém, longe disso: é apenas uma questão de justiça. 

[O polegar foi respondido com um smile. Para certas pessoas, só cabe mesmo o silêncio sepulcral. 

@p.r.andel

Monday, October 14, 2024

Partime

Quando eu era criança, esse letreiro era a primeira coisa que me passava na cabeça quando crescesse: era um lugar onde os adultos conseguiam empregos. E foi assim por muitos e muitos anos, mesmo depois que fiquei adulto e comecei a trabalhar. Perto deste endereço eu fiz um de meus estágios, há 32 anos, na Firjan. E perto também, há um ótimo restaurante há muitos anos, que hoje se chama Caló(geras). 

Hoje resolvi almoçar justamente no Caló. Vou lá de tempos em tempos. Peguei o VLT. Antes, achei graça porque uma menininha correu para apertar o botão da porta, crianças adoram botões. Saltei na Antônio Carlos. Já tinha me deparado com os restos do letreiro muitas vezes, mas somente hoje resolvi fotografar. 

A loja está fechada há anos. O lugar dos empregos acabou. Os empregos estão acabando também. A cidade está sempre com cara de feriado, meio vazia. Nas esquinas, as piadas foram trocadas por olhares perdidos. Qualquer coisa é motivo para agressões, tiros, assassinatos. Ódio. Ódio.

Eu era criança e pensava: tenho que conseguir um emprego para ajudar meus pais. Deu certo por uns dez anos, até que eles se foram. Continuo trabalhando, as dívidas são as mesmas mas não preciso botar roupas sóbrias, ando de chinelões e me livrei da tortura mensal de viagens de avião. Para alguns colegas de faculdade, deixar a carreira de origem para virar camelô de livros é um fracasso supremo, mas cada um só vê o que sua acuidade permite - e desconfio que alguns não têm coragem de trocar dinheiro pela serenidade. De chinelos, quando chego num grupo, eu ainda dou as cartas - exceto quando sou sabotado. 

E justamente por ser um camelô de livros é que eu posso almoçar às três da tarde, me deparando antes com lembranças marcantes de criança. O letreiro da Esso já não existe mais, agora é o prédio do Ibmec, foi melhor assim. 

Ali pertinho, a uns 30 metros, sobrevive a Casa Vilarino. Só pelo fato de ter sido o lugar do primeiro encontro de Vinicius de Moraes com Tom Jobim, é um palco consagrado. Imagine as conversas boêmias dos anos 1940 e 1950. 

Saio do Caló, desço a Santa Luzia e meus chinelões me levam para o Metrô, sentido Copacabana. Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço, ou rabisco para digitar.



Sunday, October 13, 2024

Dia Mundial do Escritor

Dez da noite de domingo, todos recolhidos, então meu amigo Bigode lembra numa postagem que hoje é o Dia Mundial do Escritor. 

Bem legal. Em julho tem o Dia Nacional, bem na véspera do meu aniversário. 

Passei um dia de escritor. Em silêncio.

Trabalhei. Escrevi para um livro.  

Vi um show dos Rolling Stones e o excelente programa Persona, em reprise com Ary Toledo - um artista gigantesco que os mais jovens não têm ideia. 

Não interajo muito com escritores. Na verdade, não interajo muito com todo mundo. Já fiz muito disso, agora é diferente. E escrever é necessariamente um exercício solitário.

Pela quantidade de pessoas com quem falei nos últimos 14 anos - milhares -, provavelmente muita gente gostou do que escrevi e sou grato por isso. Muito grato. Imagine, há 15 anos eu sonhava em ser um autor publicado, mas não tinha a menor chance de acontecer. Só que veio o inesperado e, entre parcerias e trabalhos solo, foram 40 livros. Pronto. Se no futuro existirem sebos, tenho chance da minha garrafinha jogada ao mar parar nas mãos de alguém, que poderá gostar ou detestar, até ser indiferente, mas eu nada saberei porque já estarei morto há muito tempo. E isso é bonito nos livros: a sintonia entre pessoas sem contato. Meus autores prediletos praticamente não me conheceram. 

Não lucrei nada, tenho lutado como um cão, cada dia é um dia, mas não seria honesto dizer que não fui feliz. Fui e muito. Por exemplo, eu gosto muito do meu time de futebol e escrevi 26 livros sobre ele, imagine. Quantas pessoas no mundo conseguiram fazer o mesmo por seus times? É muito difícil, então me realizei. E fora do futebol foi outro monte que muito me orgulha. Basicamente escrevo sobre o Rio, as ruas, os bairros que considero minhas casas, as pessoas humildes, meus poucos ídolos, meus amigos mortos, um ou outro amor. 

Tanto faz se é um, dois, cinco ou vinte livros: a emoção é a mesma. Um novo livro é sempre um coração batendo mais forte. Começa tudo de novo. 

Escrevi coisas que acho muito boas, outras boas e outras aceitáveis. O que faço é descrever o que vejo, sinto e penso. Muita gente chorou e me disse, outros riram muito. Os haters vociferaram sem ler, é claro. O fato é que não houve indiferença e isso é ótimo. 

Voltando ao meu time: será que, naquela noite de 1973, quando virei Fluminense por causa da palavra e do nome do Félix, já estava escrito que, um dia, eu escreveria sobre o Flu? Não sei, mas eu lembro direitinho daquela noite, hoje tão longe mas tão perto. Outra noite que lembro muito é a do famoso gol de barriga em 1995: ali eu mudei para sempre. 

Minha única tristeza é meus pais não terem visto esse trabalho, nem meu irmão. Eles batalharam para que eu pudesse estudar, se preocuparam comigo e nunca me patrulharam: confiaram em mim. Teria sido muito bom ter fotos deles com algum livro meu, mas tudo bem: não se pode vencer todas. 

"Agora é noite e o silêncio prevalece. 

Daqui a pouco o proletariado vai acordar, ainda no escuro, com suas lutas e marmitas, para a longa travessia ferroviária até a gare da Central do Brasil. 

Nas ruas, famintos sem casa vão virar a noite. É o medo do estupro ou de um assassinato horrível. Não devíamos aceitar que ninguém vivesse assim mas, numa sociedade marcada pela hipocrisia e indiferença, o que temos é o desprezo. 

Agora é noite, a semana invade o meio do mês e a ampulheta do ano está se esvaziando.

Perdemos homens admiráveis antes da hora, mas os medíocres continuam firmes. 

A corrupção e a hipocrisia estão de braços dados e dedo em riste. Somos uma grande Gotham City banhada pelo fascismo. Mas é preciso resistir.

Perto da janela, um vizinho ouve rádio e a voz de Renato Russo corta o silêncio: 'Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz.'

A noite de domingo mistura estranhamente solidão, saudade, melancolia e esperança. Quem vencerá?"

@p.r.andel

Friday, October 11, 2024

Tarde de bola

SEXTA-FEIRA vadia, fria e meio silenciosa, então surge na TV Hungria versus Holanda pela Liga das Nações. Toda hora tem uma competição: Copa do Mundo, Copa América, Eurocopa, Liga das Nações. Bem, acabou a Copa das Confederações.

Jogo na Hungria, estádio lotado. Setenta anos depois de Puskás, Czibor, Hidegukti e Kocsis ainda alimenta sonhos e esperanças, mesmo que vãs. Um time daqueles de novo? Nunca mais. A Hungria fez 10 a 1 em El Salvador na Copa da Espanha, a maior goleada dos Mundiais. E também ganhou do Brasil por 3 a 0 em 1986, com um gol de Détári. Salvo engano, foi a última atuação de Leão como titular da Seleção Brasileira. Minha simpatia pela Hungria, além dos craques do passado, tem a ver com o Fluminense: a semelhança das cores. Ah, em 1982 tinha o goleiro Mészáros, que faleceu ano passado. Uma vez eu fiquei ouvindo pelo radinho Fluminense x Honved, eles ganharam por 2 a 0 no torneio de Córdoba. Não lrmbro se chegou a ter a transmissão ou só as informações da partida. O que sei é que perdemos para o grande Honved dos anos 1950. E o radinho estava colado na minha cara. 

O sonho da Holanda não tem setenta anos, mas cinquenta. O que dizer do time de 1974 que, mesmo sem Cruyff, chegou à final do Mundial da Argentina em 1978? Um bando de craques geniais, malucos e humildes: todos atacavam, defendiam e trocavam de posição. Os adversários enlouqueceram. Krol, Neeskens, Rep, Suurbier. Jongbloed, uma legenda. Van era com a Holanda: Van Beveren, Van Breukelen, Van Der Kherkof, Van Basten - e na música, Van Halen. Agora quase não tem. A segunda leva, com a turma do Gullit, foi excelente também. O terceiro vice mundial, conquistado em 2010, serviu para que, apesar da frustração, a Holanda fosse tão grande a ponto de ser a única seleção que não conquistou uma Copa, mas com status como se tivesse conquistado. 

[Máquina Tricolor e Laranja Mecânica têm tudo a ver, de ponta a ponta, da costa leste à oeste

A partida acabou sendo divertida, mas não brilhante. Prevaleceu a marcação da Hungria no primeiro tempo, quando a seleção mandante fez um belo gol: cruzamento da esquerda e finalização de primeira no alto à esquerda. No segundo tempo a Holanda predominou, mesmo com um jogador a menos, e acabou empatando no fim com bela cabeçada de Dumfries. Memphis Depay ainda não está por lá. Na hora da comemoração foi fácil ver como o uniforme holandês azul é bonito, embora a eterna camisa laranja seja imbatível. 

Ah, no primeiro tempo teve um lance sensacional, que só se compara a uma decisão por pênaltis - sempre corrigida pelo eterno Mário Vianna, com seus dois ênes: "NÃO SÃO PÊNALTIS, MAS TIROS LIVRES DIRETOS DA MARCA PENAL". Ufa! Vamos ao lance: dois toques dentro da área húngara, dez húngaros debaixo da trave, dez holandeses pensando onde a bola pode chegar ao gol, tensão discussão. A bola parada depois da marca do pênalti. A cobrança é uma bomba, mas o desfecho é improvável: o goleiro defende sem rebote.

No fim, os húngaros - que contaram com a vitória magra em boa parte do tempo - saíram meio decepcionados, mas não deixaram de cantar e gritar para seus jogadores. Foi uma boa partida. Não, não: Czibor, Hidegukti, Puskás e Kocsis, nunca mais. Cruyff e Neeskens, nunca mais. Contudo, toda vez que começa um jogo, todos os torcedores voltam a ter doze ou dez anos de idade - assim, tudo é visto com o amoroso doce licor da infância. Faz muito tempo, mas é impossível para Holanda e Hungria entrarem em campo sem abrir as cortinas do passado, um belo e fascinante passado. 

O jogo do radinho. O Honved tinha outro Kocsis. O Fluzão? Paulo Goulart, Marinho, Ademilton, Edinho e Ricardo Longhi; Pintinho, Givanildo e Mário; Osni, Tulica e Zezé. Depois entraram Edevaldo, Rubens Galaxe, Robertinho e Parraro. O Flu vivia tempos de crise e não ganhava nada desde 1977, mas ninguém sabia que, meses depois, com sete desses jogadores que perderam para o Honved, surgiria um grande campeão. Certas coisas a gente só entende depois que o tempo passou. 

Aquele radinho me traz muitas coisas.

Thursday, October 10, 2024

Gata negra

A felicidade de quem eu gosto também é a minha felicidade. Pode ser gigantesca ou ínfima, não importa: um naco de felicidade é um naco e pronto. Seja uma grande conquista ou um detalhe minúsculo, tanto faz. 

Tão estranho quanto aquele que não fortalece quem gosta é quem não tem a capacidade de elogiar nada. Todos somos capazes de fazer alguma coisa que cabe elogio. Todos. E pode ter certeza: quem não sabe elogiar acaba sendo infeliz também na hora de criticar, isso quando não revela facetas piores. 

No mínimo, causa desconfiança.

Antes eu achava que era só o jeito das pessoas, mas o tempo e a experiência só me confirmaram o básico: gente que não joga junto e não elogia carrega recalques, e poucas coisas são mais deprimentes do que a pessoa recalcada diante de qualquer êxito ou felicidade alheia, por menor que seja. Um tiquinho que seja. 

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É muito fácil distinguir um elogio sincero de uma bajulação barata. 

O bajulador dificilmente tem qualidades. No máximo, interesse pessoal. Uma ou outra mesquinharia. Chega a ser constrangedor para os olhares mais atentos. 

E o bajulado? Senhor.

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Desde pequeno, sempre fiquei impressionado e até atemorizado com o tamanho das grandes obras e coisas. Para mim, o armário de dois andares era gigante. Depois descobri que o prédio era gigantesco também. Que a praia de Copacabana era imensa. Por fim, a grandeza monumental do Maracanã. Tudo sempre me impressionou.

Hoje mesmo, passando pelo prédio da Nova Petrobras, tive a sensação de sempre: somos todos formiguinhas minúsculas diante de nossas próprias realizações. Qualquer bicho pequeno passaria com medo se os grandes prédios fossem bichos grandões, mas nós, seres humanos, passamos tranquilos - quero dizer, eu não. Sempre me sinto pequenininho, minúsculo que sou, mesmo que eu possa ter grande importância para algumas pessoas. Há quem chame isso de falta de personalidade, de confiança ou excesso de modéstia. Nada disso: é apenas um belo exercício de entendimento da nossa pequenez e fragilidade. Só. 

Depois de tantos anos, ainda me sinto pequenininho. O que mudou foi o passar dos anos e o aumento dos problemas, mas lá no fundo ainda somos os mesmos. Podemos evoluir e até piorar, o corpo envelhece, mas a essência é a mesma. 

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Na loteria da Marechal Floriano - ou seria Visconde de Inhaúma? - tem uma gata negra de arrepiar. 

Gata negra e jovem, gata e tricolor.

Se a gente ganhar no bolão, ela merece uma cota de prêmio. 

Gatona mesmo. E simpática. E educada. 

Muitas coisas boas num pacote só. 

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Falando em gata negra, eu acho graça de alguns colegas que sempre brincavam comigo, tudo por causa do meu pequeno sucesso com jovens mulheres negras. Isso vem desde os tempos da faculdade, há muito tempo portanto, já que tenho 30 anos de formado. 

O pequeno sucesso vem da adolescência até, na faculdade é que descobriram. 

O motivo, não sei. Talvez haja mais de um. É engraçado, de toda forma. Meu pequeno sucesso nunca teve limitação de cor, é bom que se diga. 

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Já são quase quatro da manhã. Eu acordo às três, perco o sono, escrevo para tentar dormir de novo e às vezes dá certo. É o que vou tentar de novo. 

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O que vai ser de mim quando eu crescer? 

@p.r.andel

Tuesday, October 08, 2024

Enquanto falamos sobre réstias de democracia

ENQUANTO FALAMOS SOBRE RÉSTIAS DE DEMOCRACIA 

(A ENSOLARADA GOTHAM CITY SEM BATMAN, COMISSÁRIO GORDON E O RAIO QUE O PARTA)

Pessoas desmaiadas nas calçadas de todas as capitais brasileiras às sete da manhã. Não dormiram à noite, porque estão nas ruas e têm medo de ser incendiadas, estupradas ou chacinadas. Ninguém liga. 

Trabalhadores dignos e honestos descem esfomeados na gare da Central do Brasil. Vão começar a trabalhar até às cinco da tarde. Quem tiver sorte conseguirá almoçar biscoitos na saída do expediente.

Em várias ruas de inúmeros municípios, bandidos armados dão as cartas com seus fuzis, definindo quem vive ou morre, quem sai de casa ou se tranca.

Crianças com suas caixas de engraxate ou de balas de açúcar fixam seus olhos nas TVs ligadas nas lojas de eletrodomésticos, sonhando com desenhos animados e ter o direito de ser crianças, mas só por alguns instantes, pois a vida real é cruel. 

Numa grande cidade como o Rio de Janeiro, em vários bairros mas especialmente no coração da capital, você vê portas e janelas fechadas, inúmeras placas de "vendo" ou "alugo", mas manchetes fajutas de jornais garantem que tudo vai muito bem, muito bem mesmo. Já os veteranos da região nunca a viram tão vazia...

Os bancos nunca tiveram tanto dinheiro. Os pobres nunca foram tão pobres. A miséria nunca foi tão miserável. A exclusão e a desigualdade nunca foram tão evidentes. Desassistência, desalento, despejos, choques de ordem. "Miséria, miséria em cada canto, riquezas são diferentes".

"As instituições estão funcionando normalmente no Estado Democrático de Direito". 

"Riquezas são diferenças ". 

A "grande festa da democracia" basicamente se limita ao dia da votação de cartas marcadas. É bom poder votar, ainda mais num país marcado por ditaduras e golpes, só que é pouco.

É muito cômodo colocar a culpa exclusivamente na população. 

Enquanto isso, nas autarquias, gabinetes e burocracias, nos escritórios e grandes almoços, os conservadores e revolucionários vão muito bem, obrigado. O mais importante de tudo é eleger e reeleger parlamentares respeitáveis, para assim manter tudo como sempre esteve.

Monday, October 07, 2024

Seis da tarde

O cachorrinho apressado faz sua dona linda quase correr enquanto puxa a coleira. Ela é muito gata, tão linda que lembra a Luciene, ou a Marina ou a Juliana, quem sabe a Ana Paula que morava na Figueiredo de Magalhães. Deve ter uns 25, 27 anos e não tem mais de um metro e sessenta, nem precisa. 

O cachorrinho parece que está num mundo novo: tem pressa, cheira tudo, olha para todos os lados. É um Basset, que a gente carinhosamente chama de salsicha. Ele fica doido com o gramado do Edifício Senado, onde fica a Nova Petrobras - talvez meu amigo Wagner Victer esteja no escritório para resolver problemas nacionais - ficamos de almoçar no restaurante asiático da Gomes Freire, mas ainda não entendemos o horário irregular da casa. 

Alguns vizinhos estão em suas janelas, espiando a beleza do cair da tarde, que se choca com a dura vida adulta no Rio de Janeiro, lindo geograficamente e cada vez mais agressivo como cidade. De toda forma, vale apreciar o azul do infinito emoldurando a meia lua, enquanto passa o trânsito de poucos carros e nenhum ônibus.


[os garotos magriços do iFood começam a dar as caras com suas bicicletas alugadas e a vontade imensa de trabalhar, mesmo que de forma injusta, por tão pouco. 

Ainda a gata. Com suas pernas torneadas  que certamente encantam a muitos fãs, ela tem um sorriso discreto enquanto puxa o maravilhoso cão salsichinha, louco por qualquer novidade na rua. Uma quadra depois, cachorros veteranos da área se reúnem perto da falecida agência da Caixa, agora coberta por tristes tapumes rosados. Logo ali, a barraca de churrasquinho faz sucesso, principalmente porque sua TV é grande e muitos espiam o jogo de futebol da tarde - assim como os cachorros espiam as frangueiras na padaria, os homens espiam a TV com futebol num bar ou equivalente. 

O azul vai escurecendo, faz até um leve frio às vésperas de uma terça feira quente.

[perto da Cruz Vermelha, um rapaz desesperado e choroso olha para cima, vê os prédios, se sente completamente desprezado e diz que só queria ter uma casinha. Nada que as eleições de ontem resolvam, porque quase nunca resolvem absolutamente nada. 

[nós somos muitas coisas, inclusive um país cheio de pessoas desesperadas, chorosas e sem casa. Quase ninguém liga. 

O imponente prédio da Nova Petrobras foi construído num terreno onde havia a maior vila operária nos primórdios do século XX. Tinha mais de 140 casas e centenas de quartos para solteiros, além de dispor de farmácia, açougue e até sapataria. Pioneiros da residência com serviços. Era a Villa Ruy Barbosa, que teve moradores ilustres como o casal Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, o multi ator - tricolor! - Mário Lago, o futuro super cantor Agnaldo Timóteo e até Silvio Santos - tricolor. Não há nenhum vestígio na moderna área da Nova Petrobras que lembre a Villa. 

Os vizinhos então deixam as janelas, os carros vão minguando, não há ônibus e até os táxis se mandam, os cachorros veteranos são levados embora por seus donos e logo, logo, a gatona das lindas pernas dará adeus com seu cãozinho salsicha. Tudo vai virar só lembranças em breve, do jeito que a vida é. 

@p.r.andel

Saturday, October 05, 2024

Quatro pílulas

a

Há quem diga que só interessa o que realmente aconteceu na vida. É um ponto de vista justo. Mas será que é assim mesmo? Não tenho certeza.

Salvo os desatentos, desmemoriados e quem viva desprezando o próximo, mesmo que o novo sempre venha - e vem - o quase é, de alguma forma, uma presença.

O beijo que quase aconteceu, a amizade que quase foi retomada, o grande plano não executado, o amor não exatamente correspondido na medida exata. O momento em que você está numa bifurcação, escolhe um caminho e muito depois pensa "E se tivesse ido pelo outro".

Muitas vezes, em segundos, os trajetos se tornam definitivos e nem sempre dá para voltar atrás. E se...?

["Sorriu para mim/não disse nada porém/fez um jeitinho de quem quer voltar/dançava com alguém que me roubou seu amor/agora é tarde demais, não sofro mais essa dor/é tarde, é tarde, arranjei um novo amor." 

b

O silêncio infalível de quem se sente sozinho num bairro inteiro. Todos estão dormindo, com exceção das pessoas que sofrem muito nas ruas. À janela, não há uma única outra janela acesa. Não passa um carro, um ônibus. O filme do Canal Brasil acabou. 

É tarde. Todos estão dormindo. Não há uma mensagem no WhatsApp. Nenhuma postagem. 

O único sinal de ruído é o ventilador estranhamente ligado na madrugada fria, menos para simular ar condicionado e mais para que o motor elétrico em funcionamento seja um sinal de vida. 

[Ao longe e nem tão longe, o Brasil queima em crimes bancados por bispos escrotos e milicianos 

c

Tenho saudades do meu time. Ele não era apenas um time, mas um ambiente, uma atmosfera. Tanto fazia se a arquibancada estava lindamente lotada debaixo de uma nuvem continental de pó de arroz, tanto fazia: podia ser também uma quarta-feira vazia, chuvosa, com alguns bandeirões e a esperança numa vitória, mesmo que não significasse um título. Meu time era ter meu pai me puxando pela mão e me dando cachorro quente; era a sala das torcidas onde você espiava a dança das cores embalada pelo samba autêntico. Tenho saudades do meu time, todo de branco em campo, cheio de valentes jogadores negros, alimentando os sonhos dos garotos com o jogo de bola que, mesmo tão contaminado por ora, mantém seu fascínio através dos tempos. Eu tenho saudades de quando éramos quase todos anônimos e ninguém precisava se promover com polêmicas medíocres, porque o que realmente importava era o time - e não a patética vaidade do senhor dono da razão. Saudades de quando tudo era mais simples e humilde - o Maracanã era povo de verdade. Há quarenta anos, eu deitava sozinho no chão da geral e o céu me parecia uma grande tela circular: as nuvens lentamente navegando pelo céu, uma ou outra estrela sobressaindo e uma réstia de infinito que só revi anos depois nas telas circulares dos shows do Pink Floyd. Eu tenho saudades dos abraços sinceros na arquibancada, saudades dos maravilhosos vendedores de refrigerantes com seus capacetes, tanques de refresco nas costas, roupas brancas e visual de astronautas. Saudades das grandes bandeiras. Saudades dos grandes placares eletrônicos com suas lâmpadas e o nosso escudo estampado nelas quando o time subia a escada do túnel à esquerda para entrar em campo - dezenas de garotinhos corriam loucamente pelo gramado, sonhando em estarem ali um dia como protagonistas. Está quase tudo morto pelo tempo, pois ele sempre vence, mas existe um refúgio permanente: o das minhas lembranças, o da saudade. 

[no fim, tudo é desimportante 

d

Amanheceu. É sábado. Há frio e chuva. Poderia ter sido a melhor noite de sono do ano. 

Fracassei de forma retumbante. 

Vamos para novos fracassos.


@p.r.andel

Saturday, September 28, 2024

Short Cuts

MISÉRIA - POBREZA - CRIME

SEX - LAST GOODBYE - PRIMÓRDIOS 


1) MISÉRIA 

BEM perto da Secretaria de Polícia Civil, há dois excelentes restaurantes aquilo, geralmente cheios por volta de meio dia. Antes disso, às onze horas mais ou menos, o primeiro deles já está aberto mas o segundo, não - e este tem a sua entrada toda em vidro.

Um rapaz em situação de rua está parado bem em frente à parede transparente. Está pela região há anos. Parece ter uma dificuldade de comunicação quando faz pedidos aos transeuntes, mas é nitidamente pacífico. Até bem pouco tempo, costumava repousar ao lado de uma agência da Caixa, onde podia pedir para os clientes do banco. Aconteceu que a agência fechou e até isso o rapaz perdeu.

Ele olha para o fundo do restaurante, onde estão colocando as travessas de comida para o serviço a quilo. Fixamente. Quase que hipnoticamente. Não é nada difícil perceber seu sofrimento, olhando para todas as comidas que não pode comer, olhando para um local onde não pode entrar e, também sem dificuldade, qualquer pessoa sensata percebe que, mesmo involuntariamente, a entrada do restaurante, sua parede de vidro e suas comidas saborosas se tornam uma verdadeira tortura, um estupro da alma, uma violência assustadora. 

A única testemunha é um senhor de bermudas e chinelos a caminho do trabalho. Do outro lado da rua, a delegacia está cheia. 

Ninguém liga. 

2) POBREZA

Alguém já reparou como a nova moda da escrotidão brasileira é, discretamente, ridicularizar os trabalhadores Uber? 

Especialmente no Instagram, que começou tão bem e agora é praticamente um Twitter de fotos. 

Invariavelmente surge uma propaganda impulsionada onde se lê "E você vai ficar aí dirigindo Uber? Venha ganhar dinheiro. Venha ser bem sucedido". Uma, não: várias. Inúmeras. 

O preconceito à brasileira tem verdadeiro pavor de porteiros, faxineiros, vigias, camelôs, garis, office boys, operários, motoristas, operadores de caixa, estoquistas, almoxarifes e outros mais. 

É um verdadeiro exercício de primitivismo. 

Todas as profissões são importantes. Só pessoas absolutamente estúpidas não conseguem compreender isso. Se você acha que o lixeiro não é importantíssimo, experimente sua rua sem recolhimento de lixo por uma semana. 

Gostaria de ver alguma evolução neste sentido, mas tenho a impressão de que morrerei sem essa pequena conquista.

3) CRIME

Há semanas, o Brasil é vítima de queimadas criminosas, algo bárbaro.

A impunidade reina, claro. E quase todo mundo sabe quem são os mandantes.

O crime em si é devastador, e fica pior ainda quando podemos imaginar os milhares de animais assassinados. Inocentes e incapazes de se defender.

Há pouco, a TV mostrou a terrível imagem de sofrimento de um tamanduá. Queimado, passando pela terra em cinzas, sem água e alimento, totalmente perdido e sem rumo.

Estão destruindo o presente e o futuro. 

O grande problema? Ninguém liga. 

4) SEX

Por que essa garota está sempre nos seus sonhos eróticos se vocês nunca se beijaram, quanto mais transaram? Por que? 

Por que pensa tanto nessa garota se nunca vai rolar o que você deseja? 

Tanto tesão para quê?

Para que tanto gozo perdido de corpos que não se encontram, de bocas que não se beijam, de toques e carinhos irrealizáveis? 

Por que tanto desencontro invade o campo dos sonhos? 

O exercício do prazer descumprido.

5) LAST GOODBYE

agora estou bem longe/ a praia deserta e misteriosa/ tento ver o infinito do Atlântico Sul/ mas não é possível à noite/ 

o que resta é o silêncio e a melancolia/ as flores estão mortas/ mas a poesia resiste. 

6) PRIMÓRDIOS 

Nunca deixei de ser criança. Por isso, nunca parei de chorar. 

@p.r.andel

Tuesday, September 24, 2024

Minha amiga disse adeus

Adriana era minha amiga por aqui há vários anos. 

Sempre gentil e comentando o dia a dia. 

Assim como tanta gente, nos conhecemos por causa do Fluminense. Não me lembro como nem quando, mas certamente foi o Fluminense. Era nosso assunto comum. 

E assim foram muitas postagens, jogos, títulos, decepções, alegrias, porque o futebol é assim: apaixonante porque o fracasso de um domingo pode se transformar no êxtase da quarta-feira. Nenhum grande baque na vida a gente supera em três dias, exceto no futebol.

Tivemos uma amizade de vários anos, por muitas frases curtas e leveza. Era ótimo. O Fluminense era sempre o prato principal, mas havia música, livros e até política convencional. 

Sempre me deu força nos textos e, mesmo quando pensamos diferentes em algum ponto, sua elegância tornava o debate impossível. 

E então assim fomos amigos. Ela passava uma coisa boa pelo mundo virtual, quase sempre entupido do contrário. 

Tempos atrás, na pandemia, meu sebo quase quebrou. Fizemos uma vaquinha, muita gente contribuiu, ela depositou o valor mais expressivo. Tinha recompensas em troca, que ela não buscou. Queria só ajudar, como fazem as boas pessoas, cada vez mais raras nessa terra de ingratidão e descaso. E ajudou demais. 

Há pouquíssimos meses, falamos por aqui. De repente, me deparei com sua foto, o comunicado da doença e a fé na superação. Deixei uma mensagem de força e torci muito. Isso foi há sete semanas. Hoje me deu um estalo, fui ver seu perfil e me deparei com as mensagens de adeus e saudade. Minha mensagem havia sido de todo o coração, mas foi em vão. E a vida não é o futebol, infelizmente. 

Adriana foi minha amiga, um bem tão raro. De longe, ela foi mais amiga do que tanta gente perto, tanta gente que não cumpriu palavra, tanta gente que me deixou na mão. E agora ela foi embora, tão nova ainda. 

Ela foi feliz, teve um ótimo casamento e uma carreira de sucesso. Foi uma mulher simpática e educada. Maravilhosamente descobri que fomos contemporâneos da UERJ velha de guerra, ela no Direito e eu na Estatística. 

Adriana morreu jovem demais.

Demais.

Saturday, September 21, 2024

UERJ

Foi lá que passei muitos dos meus momentos mais divertidos, alguns inclusive dentro de sala. Um dia farei um livro a respeito. Pois bem, eu estive lá de 1988 a 1994 e me deu um vazio tão grande na saída que resolvi fazer Matemática, só para prolongar minha estadia - isso durou pelo menos mais um ano e meio e me deu outras histórias suculentas. Numa bela noite de 1996, eu espiei uma sala cheia, o hall vazio, já não conhecia bem os rostos e decidi ir embora para nunca mais voltar. Relutava, é claro: imagine você deixar pra trás a sua juventude, mas era o que tinha de ser feito. E fui embora do jeito que cheguei: calado, sozinho, sem saber os próximos passos. Ainda lembro de tudo. 

Foram tempos incríveis. Devo muito à UERJ, inclusive a minha própria sobrevivência até aqui. Ok, já podiam ter me chamado lá para falar de Fluminense e Rio de Janeiro, mas tudo bem. Segue o seco. 

Curiosamente, em todo aquele tempo jamais peguei greves. Paralisações da universidade, várias. Ocupação da reitoria, muitas. Uma vez precisei ser primitivo na Alerj, mas eu precisava muito da faculdade e, se pensar no que a Assembleia se tornou, tive razão em tacar umas pedrinhas. Faz tempo. A política fervilhava. Eram as eleições estaduais, municipais, a infeliz nacional de 1989 (semente de muita coisa que vimos em 2013 e, posteriormente, em 2016). O fato é que a UERJ era uma ebulição mas tudo se resolvia pacificamente, pelo menos no lado físico da questão. Segurança esmagar aluno, o Choque invadir o campus e prenderem um deputado arbitrariamente são barbaridades que jamais vi em meu tempo - e eu vivi aquele lugar dia e noite por anos a fio.

A inabilidade política que começou no próprio descarte dos alunos desabonados, culminando com a intolerância do desgoverno de Cláudio Castro, reeleito para ser o pior governador do Rio, demonstram bem o caos que vivemos no Estado, disfarçado por algumas estatísticas nacionais. 

Sim, a Universidade precisa funcionar e era preciso resolver o impasse, mas nunca à base de truculência autoritária, a mesma utilizada contra populações carentes enquanto a milícia deita e rola. O que aconteceu ontem na UERJ, símbolo de nossa cidade-estado, é uma página vergonhosa do início ao fim. E a Reitoria, que se satisfez com a reabertura sem se importar com os meios, terá um preço político caro a pagar. O lugar dos dirigentes acadêmicos é ao lado do alunos e do povo, não em alinhamento com a violência e a opressão. 

De longe mas nem tanto, torço pela UERJ. Sigo torcendo. 

@p.r.andel

Saturday, September 14, 2024

Nós somos muitas coisas

I

Enquanto James, a banda inglesa, toca ao vivo suas boas canções no Rock in Rio  - completamente desconhecidas no Brasil -, eu fico de lado, olho para cima e quase cochilo - o que aconteceu durante todo este sábado. Quase fecho os olhos, quase um REM, então vejo com dificuldade uma rua de terra que me lembra a Avenida Ruy Barbosa. Nenhum carro ou ônibus à frente, nenhuma pessoa além de mim - e não sei se estava num carro ou a pé. São apenas alguns segundos, mas volto setenta ou oitenta anos no tempo - quando eu sequer existia. E sigo em frente, a caminho do desconhecido, da morte, do que quer que seja. James toca uma canção simpática e doce, muito distante do meu caminho no quase sonho de quinze ou vinte segundos, depois de um sábado parado e psicologicamente cansativo por vários motivos que não cabem aqui. 

II

Estamos duros, eu e meu bem. Duros e com depressão. Duros e distantes. Mas uma simples palavra no WhatsApp ajuda a aliviar tempos calorentos e sufocantes, cremos. Fique bem bem, meu bem. 

III

James é um barato. Só Piccoli conhece. Eu conhecia. Ele conhece todas as bandas e viu todos os shows. Então levanto, passo a prestar mais atenção à TV e parabenizo a curadoria do festival: Kingfish e James são o que há. 

IV

Victor me alertou para algo sério: a quantidade de gente que, mesmo sem a menor felicidade ou satisfação, precisa mostrar vitórias em suas redes sociais o tempo inteiro. O tempo inteiro. Falamos por horas sobre a opressão do mundo. 

Mas, pensando bem, quem vive em função de suas postagens nas redes sociais realmente vive? Ou finge que vive? 

V

Enquanto o fogo destrói o verde do Brasil, negacionistas acreditam que é desejo de Deus contra o comunismo. Um pensamento tão estúpido assim me dá vontade de descer e comprar uma cerveja, ou sair andando pelas ruas do meu bairro, sem destino. Eu não vou fazer isso. Eu quase não desço mais à noite. Eu quase não faço muita coisa, mas produzo arte que encanta alguns corações precisos. 

VI

Um copo de água bem gelada. Parece pouco, mas é um privilégio. O mundo é tão mesquinho que 1/6 da população mundial não tem água. A maioria nem liga. 

Refrescante. 

O copo me foi dado de presente pelo Eric quando fomos ao Maracanã. Tem o time do Fluzão. O Fluminense me cerca desde pequeno e, até alguns anos atrás, eu tinha certeza de que me acompanharia até a morte, já que eu tenho prazo de validade, ao contrário da bela instituição decretada por Nelson Rodrigues como vocacionada para a eternidade. Entretanto, se algumas picaretagens realmente prevalecerem, chego a ter medo do futuro - e aí me lembro de uma pichação que vi na Rua de Santana em 1993 ou 1994: "Para que ter medo se o futuro é a morte?"

Um copo de água bem gelada é uma benção. Eu me sinto muito infeliz porque muita gente perto da minha casa não pode beber um copo de água bem gelada. Eu me sinto muito infeliz todos os dias há muitos anos, o que tem piorado com o envelhecimento, mas nas horas vagas trabalho, faço pequenas artes e consigo alegrar meia dúzia de corações distantes. 

VII

O show do James é excelente. As pessoas estão felizes na plateia. É um ótimo show. Tem pop, rock, soul, sopros, percussão, violino. Música faz bem à alma. Ouço música desde criança e tive o privilégio de ouvir muitas coisas por intermédio de meus pais e do Fred. Estão todos mortos, mas penso neles diariamente. 

Se minha mão doer menos, escreverei um pouco mais tarde. Tenho dois livros para revisar também. Está um calor infernal. 

Ainda são nove da noite. Ainda é sábado. Posso ter ficado milionário e não sei. Talvez converse com as pessoas pelo WhatsApp. Talvez veja vídeos antigos de gols imortais no velho Maracanã que os picaretas destruíram. Um filme, talvez. Será que vai ter outro show bom? A conferir. 

Posso também virar de costas até fechar os olhos e quase sonhar com outra rua de antigamente. Ou pensar e pensar nas situações opressoras que tenho visto e vivido. Ou pensar em quem está longe para sempre. Posso desistir de tudo e procurar um calmante no YouTube: desenhos animados, especialmente os de Dick Vigarista e Penélope Charmosa mais Tião Gavião (Silvester Soluço), a Quadrilha de Morte e o Calhambeque Chugabum. 

Piccoli está em Laranjeiras. Marina está em Paciência. Victor está no Espírito Santo. Eric talvez esteja no Maranhão ou em outra capital a trabalho. A Anne viajou. A Ana está voltando ou já voltou da França. 

Cada um de um jeito no mundo.

Amanhã tem o Fluminense. O Fluminense. Mas vivamos o sábado, mesmo que entrincheirados em casa. 

VIII

Nós somos muitas coisas. 

Muito muitas coisas. 

Nós somos muita saudade. 

@p.r.andel

Wednesday, September 11, 2024

Cadê o Russo?

Hoje faz 19 anos que meu amigo Xuru morreu. Amigo mesmo, de verdade, não é conversinha pra boi dormir. Nunca me deixou na pista, nem eu a ele. Passei situações muito difíceis que jamais teria passado com ele vivo. 

Estivemos juntos por 21 anos em mil paradas, shows, bares, jogos, acampamentos, sinucas. Do campeonato de botão na casa do Luiz à roda punk no show do Jello Biafra, no Sindicato do Chope ou na Vila Mimosa, no Maracanã ou na Atlântica. 

Ele vivia na noite, eu não, mas conjugávamos bem as diferenças. Eu nunca gostei de sair à noite, nem de festas e loucuras, mas isso em nada atrapalhou nossa amizade. Pelo contrário. 

Chamava minha mãe de mãe. Ela o adorava. 

A última coisa que conversamos foi algo engraçado. Ele riu, fui embora. Nunca imaginei que aquele seria nosso último encontro. 

São tempos que o Russo faz muita falta. Dado o inevitável, fica o registro e a lembrança de um amigo, amigo mesmo, não daqueles que vê você se fud#$@&$do e faz cara de paisagem. Amigo é outra coisa.

Tuesday, September 10, 2024

Sobre a Seleção

Pensando bem, são muitos os motivos que explicam a queda de padrão do futebol brasileiro, e que naturalmente desaguam nos caminhos da Seleção. Muitos, muitos. Passam por dirigentes escroques e tenebrosas transações. E dão um livro grosso.

Contudo, o maior deles se repete inclusive noutros esportes, mas foi uma espécie de guilhotina cortando a excelência que, um dia, já povoou nossos gramados: o desprezo que o talento passou a receber em troca da atenção absoluta da parte físico-tática.

Em pouquíssimo tempo, o futebol no Brasil virou uma verdadeira febre. Quando o Brasil conquistou sua primeira grande colocação, o terceiro lugar na Copa de 1938, já tínhamos super craques como Domingos da Guia, Leônidas, Romeu Pelicciari e outros. Vinte anos depois, encantamos o mundo com Pelé e Garrincha. Dali, até 2006, com grandes colocações e quase sempre entre os cinco maiores do mundo, sempre tivemos grandes jogadores aos montes, a ponto de todo treinador da Seleção ser cobrado por ausências em sua lista de convocações. 

De onde vinham esses craques todos? De milhares e milhares de campinhos Brasil afora. Éramos uma verdadeira fábrica de craques em larga escala. Campinhos de terra, de areia batida, de pedra inclusive. Milhares e milhares de garotos enlouquecidos pelo jogo em vielas, favelas, vilas, praças, na praia, onde desse pra jogar. E dessa multidão tiramos, durante décadas, dezenas de craques que inundaram o mundo com dribles, passes e jogadas geniais, descobertos por olheiros dos clubes. Foi o que fez a fama do futebol brasileiro, não necessariamente aliado ao rigor tático, mesmo tendo treinadores competentes e especializados. 

Um golpe violento veio com a Copa de 1982. A derrota para a Itália levantou o argumento de que o "futebol arte" era inútil e deveria ser substituído pela força. A nova onda perversa dominou o Brasil, mas nosso petróleo da bola era tão farto que ainda aguentamos 25 anos com as reservas técnicas. E tome Romário, Geovani, Bebeto, Ricardo Gomes, Branco, Valdo, Raí, Leonardo, vários desses tetracampeões em 1994. E tome Amoroso, Edilson, Djalminha, Marcelinho, Kaká, Ronaldinho Gaúcho, Roger, Alex, Felipe...

A Lei Pelé deu alforria aos jogadores. Em compensação, espatifou os clubes, saqueados por dirigentes e empresários. Em paralelo, os garotos passaram a ser formados para o combate em vez da criação. Veio a era dos volantes brucutus. Enquanto isso, os campinhos foram desaparecendo, os garotos descalços foram desprezados, os empresários tomaram o lugar dos olheiros e a indústria exige porrada e força em vez de destreza. E nós, que antigamente tínhamos vinte ou trinta jogadores para escalar onze, chegamos à Era Neymar, a do time de um talento só que seria responsável por resolver tudo em campo. Como se viu, não deu certo. 

Há trinta e poucos anos, o sonho da Venezuela era marcar um gol no Brasil. Apesar da tradição, fazer seis gols no Paraguai e cinco no Uruguai não era difícil em 1979. O futebol mudou e muitos evoluíram em seus cenários. Nós, não: abrimos mão do melhor que tínhamos - nossa habilidade, capacidade de improvisação e perspicácia - para nós tornarmos inferiores às seleções que, um dia nós invejavam. Jogamos fora o principal combustível do nosso protagonista, o talento. Em compensação, temos uma indústria de marcadores. 

O problema maior não está numa derrota para o Paraguai, hoje normal. Até segunda ordem, a classificação para a Copa do Mundo ainda não parece ameaçada. O problema mais grave é que, se conseguirmos confirmar o passaporte para o Mundial, ele será o de coadjuvantes. O problema é verdade que, nesta derrota de quarta, o Brasil não tem um único desfalque expressivo - o time que está lá é o que temos e só. Quem ali realmente faz diferença do ponto de vista da qualidade técnica? 

Alguém espera por Neymar? Quem ainda acredita em sua volta ao futebol profissional de qualidade? 

O Brasil precisa refundar suas divisões de base e valorizar o talento, se não quiser se tornar de vez um centro inexpressivo do futebol. Precisamos voltar a fabricar craques em série e recuperar a identidade do nosso futebol. 

Peço a compreensão dos mais jovens, não se chateiem comigo. Não é saudosismo, mas apenas meu olhar de criança como torcedor. Se naquele tempo alguém falasse de um camisa 10 (ou 8) talentoso e importante, você poderia lembrar facilmente de Dicá, Ailton Lira, Renato, Zenon, Pita, Adílio, Cléber, Zico, Rivellino, Guina, Palhinha, Sócrates, Jorge Mendonça, Falcão, Mendonça, Enéas, Douglas e outros. 

Hoje falamos de quem? 

@p.r.andel

Saturday, September 07, 2024

Serious

Para mim, é a melhor e mais subestimada música já feita pelos ingleses do Duran Duran. Tem a coisa do fim dos anos 1980, que tinha sua mágica, algumas perdas e mudanças - remete imediatamente. A gente jogava muito botão na casa do Luizinho, que era um livro à parte - quem sabe? -, estava sempre no Bar Sniff's e também no nosso quartel general, que era a casa do Fred. Hoje, eu fico tentando entender como dava tempo para todos os lugares. E ainda tinha os jogos do Fluzão, corrida e futebol na praia, mais a faculdade de noite. 

Minhas aulas na UERJ começaram em 1988. Uma vez ou outra eu faltava ou não tinha aula mesmo. No Fred a gente começou a ter muitos encontros de tarde. Uma vez ou outra eu encontrava o Jorge e íamos para o treino do Flu - hoje é impossível. 

Eu frequentei o apartamento de 1978 a 1992. Nunca fiquei três dias sem ir lá. E o Fred era caseiro demais. Ele gostava muito. Depois a turma aumentou, vieram as garotas, as pequenas loucuras e tínhamos grandes momentos na nossa bolha particular. Jogando cartas, ouvindo LPs, vendo TV ou conversando sobre qualquer coisa. Filmes. Cotidiano. Aprendi muita coisa por lá. Não éramos intelectuais, mas antenados de alguma forma. 

Quando chegou a virada para os 1990, a faculdade começou a apertar, perdi as tardes livres com os estágios, o tempo encurtou. Fred foi trabalhar, o apartamento continuou um QG mas sem a presença diária. A gente não se deu conta, mas era o fim de uma era e o início de outra - como grupo, nunca mais nos reuniríamos, salvo por excepcionalidades, uma delas muito triste: a própria morte do Fred, há 15 anos, muito antes do razoável. Ele tinha 42 apenas. Eu contava com ele para ser meu amigo de conversa fiada na velhice que já se avizinha, mas não deu. Não tivemos últimas palavras: na cama do hospital, ele chorou com os abraços e sabia que era a despedida. Fui o último a cumprimentá-lo. Apertamos as mãos, nos olhamos e por uns dez segundos, atravessamos trinta anos. Ele faz muita falta. 

Perdemos os anos 1990. Em 2003, marcamos um encontro na Cobal. Todo mundo duvidava que Fred fosse, já que só saía de casa para trabalhar. Ele foi. Mesmo assim, mantivemos contatos esparsos. Tudo mudou no dia do velório da minha mãe, a quem ele chamava de tia. De janeiro de 2007 a março de 2009 voltamos a nos falar como nos velhos tempos, passei a encontrá-lo novamente em Copacabana. Ele me ajudou muito quando perdi minha família. Parecia tudo planejado: meses depois, ele é que se foi e levei mais um duro golpe. Desde então, fiz muitas coisas mas isso fica para depois. 

Agora, depois da meia noite, se fosse há quarenta anos estaríamos deixando o apartamento do velho bloco F, ou saindo da casa do Ricardinho (nosso QG alternativo, cuja vista da sala era um paraíso verde). Descer a Santa Clara, atravessar a Boca do Lobo, a praça do Bairro Peixoto, não fazer barulho na Anita Garibaldi para não atrapalhar o sono de Angela Rô-Rô, chegar a porta do prédio, abraço, tchau, amanhã começa tudo de novo. Não tínhamos um tostão nem grandes perspectivas, mas tínhamos grandes goles de felicidade diária. Devíamos estar todos juntos agora. Bem, não se pode vencer todas. Paciência. 

Duran Duran diz muitas coisas. 

@p.r.andel

Tuesday, August 27, 2024

O grande capital

Na porta do banco de empréstimos da Praça Tiradentes, um garoto franzino vai parando lentamente sua bicicleta em questão, financiada por um gigantesco banco brasileiro. Com olhar desconfiado, ele desembarca do veículo e o encosta na porta da loja financeira. Tira das costas sua enorme caixa cheia de guloseimas que ele não provará. Pega o pedido de alguma funcionária e entra na loja para fazer a entrega que lhe dará míseros reais. 

[A rua parece tão vazia que tem ares de feriado, mas é tão somente a miséria da região 

A quinze metros da bicicleta do gigantesco banco brasileiro, duas pessoas em situação de rua estão praticamente desmaiadas de cansaço. Não é o sono da vagabundagem, como preferem os ignorantes: "Por que não levanta daí e vai procurar um emprego?". A estupidez é uma tragédia. Bom, ali estão dois mortos vivos, largados a própria sorte que nada significam para a loja financeira, e muito menos para a bicicleta laranja da grande corporação bancária. 

[Enquanto a cliente do iFood ri ao telefone, o menino magrinho continua à espera para finalizar o atendimento e partir para outra loja, sala ou endereço qualquer onde possa ganhar algum real.

A rua vazia talvez tenha uma explicação: o home office. E também a falta de grana: as pessoas simplesmente não se deslocam para o Centro. Continuam no ar as velhas promessas que não vão dar em nada. 

Bem em frente à bicicleta laranja da grande corporação bancária, do outro lado da rua, pessoas nitidamente cansadas estão esperando ônibus em direção à Zona Norte. Hoje em dia há menos empregos, menos consumidores e menos passageiros; consequentemente os coletivos são mais escassos. Quem tem paciência e mais dinheiro vai de metrô na Estação Carioca; quem precisa, fica. Ninguém ri. Ninguém conversa. Os rostos carregam o peso do cansaço.

Andando mais cinquenta metros, você pode chegar ao outro lado da Praça Tiradentes, onde tem a estação do VLT - volta e meia a máquina de cartões não funciona e os passageiros ficam a ver navios, já é? Na esquina da Imperatriz Leopoldina duas jovens com roupas curtas e olhares perdidos, ambas com menos de vinte anos, especulam possíveis clientes para programas sexuais. São profissionais do sexo, o problema é que ninguém é verdadeiramente profissional de nada com menos de vinte anos de idade, a não ser os gênios e estes são bem raros. 

[Toca o sino do VLT.  Os apressados correm dos trilhos. 

Uma outra garota, linda, com mais de vinte anos mas não muito, se apressa para pegar um Veículo Leve sobre Trilhos. Ela ajeita os óculos, a pasta e embarca no mini trem. Será que vai para os arredores da Rio Branco por trabalho ou estudo? Ou seu destino é a inconfundível Niterói? Nunca se sabe. Ela é bela e parece carregar um livro sobre Estatística - pode ser a gota d'água. 

Nos prédios da Praça, tudo parece silêncio das janelas. Um transeunte não pode sequer imaginar que, em alguma delas, haja um potencial suicida ou mesmo homicida. Não dá para saber nada do que a Tiradentes abriga, nem do céu nem da Terra. Se houvesse ao menos um declarado, logo surgiria um grupo de espíritos de porco que, à menor ameaça de suicídio, logo gritariam do térreo "Pula, Pula", mostrando muito de certa face verdadeira no Brasil.

[Debaixo da marquise, a quinze metros do banco de empréstimos, as duas pessoas em situação de rua continuam absolutamente desmaiadas de cansaço, à espera da misericórdia que jamais virá. 

É terça-feira, agosto se despede. A vida escorre. Os bons morrem jovens. Os arrogantes ladram por toda parte. 

@p.r. andel

Morning

Cinco da manhã e um frio do caralho. Já não sei quem sou. Anos de sofrimento, meu bem. Não tenho amigos. Nem dinheiro. Nem casa. Nem futuro. Vejo o mundo desmoronando lentamente, numa erosão bem lenta, naturalmente perceptível mas desprezada porque este é o país do desprezo. Cinco da manhã e não sei onde está meu amor. Namoro um Instagram em silêncio, sem reciprocidade, desesperado. Ainda me acho tão cheio de vida mas parece que tudo está perdido. Tenho visto as pessoas sofrendo desde que eu era criança e agora quem sofre junto sou eu. Penso todo dia nos meus pais mortos, nos meus amigos e ídolos mortos, daí me sinto sozinho demais. Não, não há problema em estar sozinho, nenhum problema. O que eu sinto na verdade não é estar sozinho mas sim um vazio enorme, gigante e absolutamente silencioso. Cinco da manhã e eu me lembro das dezenas de madrugadas frias de 1987, quando atravessava o underground de Copacabana até o Forte para a missão cívica de defender a pátria, que piada - acho que Bigode serviu lá também, mas eu me livrei em cima da hora e saí correndo. Cinco da manhã e eu me lembro de outro frio enorme em Arraial do Cabo quando estávamos na praia e éramos tão adolescentes, nós, escoteiros de uma vida inteira. Humm, horas antes na casa do meu amigo eu dividi um cobertor com uma gata alucinante e isso era enlouquecedor para um jovem no auge dos hormônios - acho que o pessoal olhou meio espantado porque percebeu a nossa cara de satisfação - ela era demais e até hoje a amo. A mesma coisa aconteceu anos depois, também em Arraial do Cabo, aí com outra garota, só que sem cobertor mas também com olhares espantados - essa fazia questão de rebolar em mim. Cinco da manhã e sou um garoto perdido no Leme, temente ao caminho das pedras que, uma vez desrespeitado em dias de chuva, pode resultar em morte. Ah, eu que tive tanta vocação para ser garoto, agora sigo para uma velhice aterrorizante - e não sei o que fazer para me livrar do mal, apenas sonhar. Cinco da manhã, um frio do caralho e o barulho de uma motocicleta rabiscando a Cruz Vermelha, um ou outro ônibus, os garotos e garotas humildes carregando suas mochilas com biscoitos, a única refeição do dia. Que merda um país que só permite biscoitos para seus jovens trabalhadores. Estou cheio de tudo, do caos, do sofrimento meu e alheio, das milhares de noites insones, dos pilantras que querem estuprar o Fluminense. A Marina me faz muita falta. Eu não passo de um brasileiro humilhado, oprimido, que estudou pra caralho à toa, mas que tem alguns admiradores porque escreveu algumas coisas e, num país onde se lê muito mal, ser admirado pelos escritos é uma pequena vitória. Cinco da manhã e me lembro de todas as antigas vitrines de Copacabana que vi e vivi - a maioria está morta. Daqui a pouco faz 25 anos que meu amigo e chefe escoteiro João Carlos morreu. E 20 anos que Xuru morreu. Já fez 15 que Fred morreu. É disso o vazio que sinto, então tento me esconder pelas palavras que deixo escorrer por aí. Onde estão meus pais, Senhor? E meu irmão? E todas aquelas pessoas admiráveis com quem gastei noites decentes rindo e bebendo chope? Será que todos viraram velhotes individualistas de merda que só servem para espiar stories em silêncio? Sei que preciso de sorte, é tudo que preciso por ora. Daqui a pouco dá seis da manhã, o céu ainda é púrpura e o Brasil está cheio de fumaça provocada por bandidos escrotos, daqueles que usam muito o nome de Deus em vão. Aproveito que é cinco da manhã e me mastigo com café com leite e ovo mexido. Mais tarde vou pagar a conta de luz. Queria ter sido um garoto feliz mas não deu, e nada indica que descansarei em paz. Que paz? O mundo é do ódio, da guerra, do desprezo e da profunda ignorância. Uma semana depois de 60 pessoas morrerem num avião, ninguém liga. Não se trata de não entender a morte como algo natural, mas sim o completo desprezo pela vida alheia. Cinco da manhã. Cinco da manhã. Meu coração não dorme. Nunca mais ganhei um abraço, nem um presente. Já fiz muita gente que sequer conheço chorar ou rir muito. Eu procuro meu mestre Ivan Lessa em lugares impossíveis de encontrá-lo, mas é como se ele me dissesse ao pé do ouvido "O cronista vai falando sozinho na frente de todo mundo". Eu não descanso em paz.