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Tuesday, December 31, 2019

Misaque

Exatamente hoje, 35 anos. Embora tenha vivido na casa de Fred por 14 anos ininterruptos, poucas vezes passamos o Ano Novo juntos. Ele não gostava de sair, deve ter sido por isso. 

Naquela noite resolvemos ir ao Sorrento, que ficava no Leme. Doce ilusão: abarrotado. Então caminhamos pelo calçadão, vimos os fogos, o ir e vir das gentes, éramos Copacabana o ano inteiro. 

Decidimos ir ao Gordon, sempre um lanche de fé. Estava lotado, tudo bem. Pedimos vários sanduíches sinistros. Se não estiver enganado, Pedro Brito estava conosco. Talvez Coruja, Ricardinho quase com certeza. Lembro que as garotas mal conseguiram comer o primeiro e deixaram pra gente: comemos muito. Muito. 

Era o fim de um ano de glórias: grande temporada escolar, Fluzão bicampeão, campeonatos de botão, muito futebol na praia e na quadra, praia de manhã também. Grandes acampamentos escoteiros. Dinheiro não havia, mas bastava para um garoto de dezesseis anos. 

Com toda a paciência do planeta, um jovem trabalhador negro atendia cinco mil pedidos no balcão do Gordon. Seu nome era Misaque, havia a plaquinha na camiseta. Vinham o Angélico, o Diabólico, o Tudo e lá ia Misaque indo e vindo com uma tropa de sanduíches. Eu lembro de ter olhado pra ele, percebido que não tinha muita idade além da minha e pensado "Como esse rapaz trabalha sem parar". Era uma luta. 

Um dia o Gordon acabou, hoje é McDonald's. Já comi lá algumas vezes. Fred, nunca mais. As garotas eu vejo no Facebook, Ricardinho também. Outro dia almocei com o Coruja e falei com o Pedro perto do Teatro Riachuelo. 

Tomara que o Misaque esteja bem. 

@pauloandel

Friday, December 13, 2019

"Lágrimas", um dos grandes álbuns de 2019


A reunião da maturidade do poeta Paulo César Feital com a juventude do cantor e melodista Lucas Bueno resultou num dos melhores álbuns lançados em 2019 no Brasil, intitulado "Lágrimas" e produzido de forma independente. 

A beleza das canções, aliadas à poesia que carregam e a interpretação vigorosa da dupla, auxiliada por uma seleção de craques instrumentistas e convidados especiais, tornam o álbum uma espécie de procissão contra tudo o que temos visto no Brasil de 2019. A percepção atenta das letras leva a reflexões profundas sobre onde estamos e como chegamos a tal situação. 

Lucas é, desde já, um dos grandes intérpretes de sua geração. Canta e toca como um veterano do melhor cancioneiro da MPB, e não é injusto pensar que representa de alguma forma grandes nomes do passado, que remetem a craques como Silvio Caldas. Mas é bom que se diga: ele soa como um veterano mas tem uma enorme e promissora juventude pela frente. 

Paulo César Feital dispensa apresentações. É um dos maiores poetas da música popular brasileira em qualidade e quantidade. Ao lado de seu xará Paulo Cesar Pinheiro, carrega o estandarte da poesia na música popular. Fez centenas de canções, mas somente uma já serviria para imortalizá-lo: "Saigon", na voz eterna de Emílio Santiago. 

"Lágrimas" tem melancolia e esperança, tristeza e felicidade, angustia e fé. Soa como oratório e passeata. Entre seus convidados, nomes marcantes da nova geração, tais como o sagaz Moyseis Marques e a maravilhosa Nina Wirtti e também os consagrados Cláudio Nucci e Soraya Ravenle. Deve ser ouvido com calma, reservadamente, sorvido como um daqueles LPs que abrem as cortinas do passado, mas que também sugerem que o amanhã vai ser outro dia. 

Em suma: imperdível. Um dos álbuns do ano, dos melhores da década, indispensável em qualquer CDteca que se pretenda séria, além das plataformas digitais. Mas o bom mesmo é com o disquinho de prata tocando e as letras do encarte na mão e no olhar. 

@pauloandel

Friday, October 25, 2019

remorso

era traíra. carregava a canalhice e a traição em suas veias. não poupava ninguém: cônjuge, parentes, amizades, amantes. e vivia serenamente como se nada fizesse de prejudicial aos outros. tropeçava e caía, levantava-se mas nunca perdia a arrogância que lhe conduzia a novas jogadas de risco. 

confundia destemor com irresponsabilidade, e a tudo disfarçava com falsa humildade. o típico traço de gente perversa que se julga superior a tudo e a todos, e que por isso mesmo desvela a própria estampa primitiva. talvez um pouco de recalque junto, quem sabe? com ou sem dinheiro ou bens, a inveja é capaz de revirar cabeças ocas.

de golpe em golpe, a trairagem prevalecia. pequenos ou grandes, todos lhe davam a certeza ilusória de vitória, de prazer na trapaça, de compensação pelo reconhecimento da própria identidade falida, ignorante, alheia ao mundo e aos bons atos. pulava de galho em galho até a próxima falência moral, e não pensava sequer na vergonha que ofereceria aos filhos, caso eles descobrissem sua verdadeira identidade. não se arrependia: a pilantragem era consciente. tudo que lhe soasse como vantagem financeira era aprazível.

a corrupção assumida lhe trouxe uma pequena vitória no jogo da vida. comprou objetos, sentiu alegria em tratar como trouxa quem lhe fortaleceu e pensou nos golpes anteriores. era fácil fugir, não responder as chamadas, ignorar contatos e preparar o terreno para novas jogadas, de acordo com a cartilha oficial do mau caratismo.

contudo, um recente ato de má fé tem lhe custado caro. ao contrário de muitas outras vezes, não recebeu mensagens nem telefonemas, nenhuma cobrança pelo golpe. tinha olhado o celular com apreensão misturada com o tesão pela canalhice e nada, muitas vezes e nada. pela primeira vez o silêncio das vítimas, tão desejado, oferecia um recado que poderia ser tenebroso: e se a mudez na verdade fosse uma sentença de morte anunciada? 

não chorou nem se arrependeu, mas viveu o medo. pela primeira vez, abraçou a lucidez. 

Tuesday, October 22, 2019

necropolitik

os nossos dias tão desgovernados - herdeiros da necropolítica - viva e deixe morrer quem não é rentável - os miseráveis são culpados pela miséria - e fingimos que não vemos os corpos apodrecendo nas calçadas - virar a cara ou até atravessar a rua - em nome do mérito que os pais financiaram - estes são os dias de trevas e torpor - o desamor é a canção das ruas - o que aprendemos nos livros é em vão - que droga poderá nos entorpecer a ponto de fingirmos nada ver? - a miséria mora nas calçadas sofridas - nos vagões oprimidos e noutros cantos vulgares - alguma coisa me queima o peito - morremos em manchetes repetidas - e fones nos trens abarrotados - em mãos que não se apertam e num mar de indiferença - os nossos dias mendigam paz.

Thursday, October 03, 2019

caos

deitado na escuridão do
quarto e olhando para o 
teto desgovernado no breu
distraída pra morte 
e pro caos

o que vai ser de quem
de quem desfalecer?

o que sobrou é o inferno
a podridão e o egoísmo
o que sobrou é o chorume
e quase ninguém repara

o que vai ser de quem tem
muito a perder?



Thursday, September 26, 2019

Tirem o dedo do gatilho (por Jocemar Barros)

Pelas ruas das favelas,
Entre becos e vielas,
Passam bandidos armados,
Policiais assustados
E crianças distraídas,
Que entre balas perdidas,
A toda hora ou minuto,
Nos deixam órfãos, em luto,
Vidas que vão num suspiro!
E de onde vem o tiro?
Da polícia ou do ladrão?
Quem terá explicação?
Quem nos dirá a verdade?
As nossas "autoridades",
Que têm solução pra tudo?
Melhor, é que fiquem mudos,
Em respeito à nossa dor.
Calem a boca, por favor!
E pra cessar o martírio,
Tirem o dedo do gatilho!

Jocemar Barros

Wednesday, September 25, 2019

bichos

Se eu pudesse voltar no tempo, trabalharia com bichos. Não sei se toparia vê-los sofrer, mas cada vez mais o mundo só faz sentido por causa de crianças e bichos.

Durante certo tempo na infância eu tinha medo de cachorro, o bicho oficial de Copacabana. Eu era pequenininho, estava na praia, um cachorrão grandão veio e me derrubou, pulou em cima de mim. Ele era grandão e fiquei com medo. Isso durou até a adolescência e passou.  Bem antes disso, tinha a Diana, cachorrinha pequinesa da minha mãe que ela deu para uma amiga quando nasci. Toda vez que visitávamos a amiga, a Diana vinha correndo e não saía do pé da minha mãe. Que saudade. 

Tive um amigo de escola que há muito não vejo. Ele tinha vários bichos em casa: passarinho, papagaio, cachorro, gato e jabuti. Ri muito no dia em que o papagaio estava tomando banho de gotinha no tanque de roupas. 

Quando fui escoteiro (há quem diga que ninguém deixa de ser), me deparei com vários bichos. A vaca era sempre a mais legal, às vezes micos, às vezes lagartos ou uma cobra sinistra. A vaca fica na dela, vai lá, muge, volta, faz seu rango natural e anda lentamente. Enfim, era uma vida maravilhosa de garoto, natureza, silêncios, paz. Nunca mais acampei, mas lembro como se fosse ontem. 

Meu ex-vizinho tinha um jabuti e um cachorrão bem grandão que gostava de mim. O jabuti às vezes andava no corredor, era um barato. O cachorrão já latia quando o elevador estava no sétimo andar: ele me reconhecia de longe. 

Outro dia fomos em Paquetá, na Casa de José Bonifácio. Tinha outro jabuti, caminhando numa boa, rangando folhas do chão, arrancando com força a cada bocada. Uma alegria. 

Quando minha mãe deu a Diana, tempos depois morreu um papagaio lá em casa: a funcionária o detestava e o deixou no sol. O coitado morreu estorricado. Minha mãe chorou muito e nunca mais quis ter um bicho de estimação para não sofrer. Tempos antes de sua morte, falávamos de ter um passarinho, mas era muito cruel tê-lo numa gaiola. Ela foi embora e fiquei só para sempre. Aqui em casa é tudo bagunçado, não dá pra ter um cachorro ou um gato, e eu não aguento mais perder ninguém. 

Os cachorros da Kátia, o Antônio e o Cesare, eram sensacionais. Gostavam muito de mim. Convivemos bem entre 2007 e 2010. 

Sendo prático, só preciso do dinheiro que me permita sobreviver nessa terra injusta até a hora da partida. Tirando o aluguel, minha vida é muito barata, não tenho bens, não tenho nada. Mas eu gostaria de ser rico se fosse para também ajudar muita gente, planejar algo. E para ter uma fazenda bem grande, onde pudesse ter meu elefante e meu hipopótamo. Acho os dois muito legais. Gosto de ver no programa de TV a solidariedade dos elefantes. E acho muito maneiro quando limpam a orelha deles com um super cotonete de algodão. Peixe também é muito legal. 

Sei lá, trabalhar num pet shop, ter sido veterinário ou feito Zootecnia. Ou até levar os bichos para dar uma volta. Gosto deles. Gosto muito. Até a aranha do banheiro eu evito incomodar quando ela desce pela teia no frio azulejo branco. E a formiga? Pequenininha da Silva. Ser formiga é muito difícil: você pode ser assassinado o tempo inteiro por qualquer coisa. 

Queria poder cuidar dos bichos. 

Eu seria feliz.

Tuesday, September 24, 2019

pessoas pessoas

pessoas perdidas oprimidas 
pessoas humilhadas excluídas
pessoas pessoas tão famintas
pessoas no portão principal
com braços estendidos em vão
e as mãos calejadas enrugadas
pessoas deprimidas perto do fim
pessoas tão enojadas raivosas
neandertais em pleno mandato
e desumanidade em riste à vista
e cólera às vísceras por todo tempo
pessoas desesperadas com razão
vendo tragédias em tempo irreal
pessoas com lágrimas enlutadas
esperando a próxima vítima crua
para enterros modestos e protestos
pessoas em busca da guerra civil
ou chorando seus mortos de fome
gente sem nome data ou identidade
gente sem pátria caridade ou amor
é o rancor que determina as castas
gente nos trens feito gado ao abate
gente nos trilhos nas janelas ao caos
suicídios a granel delivery iPhone
curtindo a nossa velha idade média
pessoas nas palafitas e papelões
pessoas urrando por desespero e dor
a próxima versão vai reabilitar tudo
resta saber quando ela há de chegar



Friday, September 20, 2019

luar da UERJ

Chet Baker tocando com seu quarteto num especial de televisão belga em 1964. O sex-symbol do jazz disfarçava muito bem sua banguela, deixando fãs loucos e loucas mundo afora. Em certo momento toca "So what" e é claro que aquilo faria Miles Davis dar um soco na parede. Com "Time after time", o jazz vira amor e o ídolo dos anos 1960 canta com sua pequena voz de veludo  - e seu dente ausente em close, mostrando que a beleza também sabe estampar o inusitado. 

Descansando depois de um banho e de um longo dia. 

Acabamos de voltar do aniversário de Anielly, divertidíssimo, num bar do Méier, cheio de gente e de pessoas divertidas. Pequenas histórias ótimas que podem dar em livro. Única coisa triste: ver tantas crianças pedintes. Nunca me acostumarei a isso. 

Quando descemos a Marechal Rondon, eu inevitavelmente pensei em 31 anos atrás, quando subi e desci a rua procurando pela Rádio Transamérica para buscar algum prêmio. Naquele tempo sem internet, google e outros confortos, tudo era mais difícil.  

Depois, a UERJ. Mais de trinta anos depois, ainda me emociono ao ver o grande prédio de luzes acesas, com tantas vidas e sonhos, mas também melancolia e derrotas. Eu era um garoto e sonhava em estudar ali, me formar, conseguir um emprego, sustentar minha família. Tudo passou rápido demais, mas acabou acontecendo. Não fiquei rico nem famoso nem importante nem coisa alguma, mas fui um anônimo digno e tive uma bela história que, espero, ainda esteja longe do fim. 

Jovens estudantes com suas mochilas nas costas sobem a rampa do metrô atrás da linha 2. 

Perto do campo, jovens sem rumo rasgam seus corações com crack.

A lua parece bonita. 

O prédio iluminado da UERJ à noite é uma das coisas mais bonitas do mundo. 

O motorista Uber demonstra certa irritação quando não consigo atualizar os destinos, mas seguimos em frente até deixar Camila e, minutos depois, Elika e Lucimar. 

E fica mais irritado ainda no túnel Santa Bárbara, um de meus percursos favoritos, até que chego minutos depois, a corrida sai pelo dobro do esperado e aí o rapaz não deve se incomodar, porque nesta terra de exceção qualquer trocado dobra qualquer irritação. 

Chet Baker sola vigorosamente enquanto o pequeno conjunto o acompanha. É a trilha perfeita para aquele prédio cheio de luzes, vizinho do meu Maracanã, palco de muitos dos momentos mais divertidos de toda a minha vida - quando se é jovem, quando o futuro ainda é longe e o presente é feliz com um simples pão com ovo e salada mais um copo de refresco. 

@pauloandel

mil lugares

andando por mil lugares e pensando chorando lamentando a vida escorrida nas artérias de asfalto a vida esfomeada nas mãos estendidas rendidas a vida desesperada pelo fim na ponta da bala perdida a vida jogada fora em celas corporativas em troca de salários respeitáveis a vida entupida encardida exaurida por tanto desprezo e indiferença andando por mil lugares e pensando pensando fundo no que resta da vida o beijo o apreço a memória saudosa o tempo o tempo uma velha canção à vitrola uma página virada nenhuma despedida

Sunday, August 25, 2019

as pessoas têm morrido demais

as pessoas têm morrido demais e rápido demais. estão assustadas, ameaçadas, verdadeiramente desesperadas. o ódio vira incêndio e tiroteio conforme a ocasião. as pessoas estão indo embora cedo demais. quem fica vê o horror da necropolítica, o desprezo, a destruição. celebrar o crime virou orgulho, trair e trapacear virou qualidade, humilhar é poder. as pessoas são incapazes de ver a dor do outro e acham tudo normal, esquecendo-se de tanta indiferença ainda vai criar uma nascente de vingança, que crescerá até que nos apedrejemos nas ruas. estamos indiferentes aos inocentes fuzilados, aos corpos desaparecidos, aos estupros e sevícias, ao assédio tosco e vil, aos despejos e leilões, aos suicídios tratados com silêncio, à injustiça. tudo isso só pode ser tratado com naturalidade por cabeças de merda, comandadas por espíritos de merda. é a grande guerra onde quase todo mundo morre no final, para o deleite de uma minoria mesquinha, asquerosa, nazifascista, hipócrita e criminosa. os pequenos bandidos cometendo pequenos crimes e sonhando ocupar o lugar dos grandes falsários, uma ingenuidade estúpida. as pessoas têm morrido demais e rápido, com missões incompletas, enquanto ratos de esgoto travestem-se com roupas de marca e fingem ser lordes, mas não passam de ralé suja de merda.

Thursday, August 15, 2019

luzes da cidade de copacabana

O que sei é que havíamos viajado para Arraial do Cabo por alguns dias, quando podíamos fazer isso sem nenhum dinheiro - exceto para as refeições e um ou outro lanche - não sei como era tão pobre mas conseguia fazer aquilo. Voltamos para Niterói e caminhamos da Rodoviária até às Barcas rumo ao Rio. Lembro que a tarde era um pouco nublada. 

Durante a travessia da Baía, combinamos de lanchar no Bob's mais tarde, só para ver a grande novidade de Copacabana: a iluminação completa da praia. E assim fizemos, entre um Big Bob e um sundae de morango. 

Por volta das seis e meia da tarde, descemos a velha Figueiredo Magalhães até a Atlântica, quando a vista nunca pareceu tão deslumbrante: o céu de azul escurecendo, as luzes fazendo uma grande trilha de ponta a ponta na orla. Dava para ver a areia, a beira, o mar. Bom, os casais safadinhos saíram perdendo seus rompantes idílicos, mas nem sempre se pode ganhar todas. 

Era um sonho. Eu, que passei dez anos consecutivos pisando nas areias sem poder ver direito a bola, enxergava tudo. Ao mesmo tempo, me dava certa melancolia: eu sabia que não ia ser mais como antigamente. Começávamos faculdades, o pessoal trabalhando, os encontros iam ficar mais escassos, não daria tempo para jogar tanta bola. 

Eu me lembro que Ana e Henrique ficaram extremamente contemplativos diante da vista nova de Copacabana. Algo entre o inverno e a primavera. Um dia de semana com pouco movimento, nenhum calor, nenhum vento frio, certo silêncio e mistério que a orla sempre tem de alguma forma. 

Eu olhava para a areia e procurava meus amigos, imaginava lances, via garotas bonitas no pensamento e, por vários instantes, não era apenas um súdito daquela linda terra para onde fui com três dias de vida, mas me sentindo um pequenino rei daquela terra macia, rei das jogadas, olhando o ir e vir das gentes, pensando também que já estava distante dos tempos de menino da praia, onde tudo era futuro. 

Nós, que tanto conversávamos, ali estávamos completamente mudos, docemente entorpecidos pela beleza da geografia que sempre nos abraçou. Ao longe, os outros dois Henriques - um, grande, parceiro da UERJ e o outro, pequenininho e gente boa, faziam barras. O nosso silêncio era um espírito da paz que parecia não ter fim - e talvez não tenha tido mesmo: por anos e anos a fio, sempre que estive em algum pedaço de litoral, pensei nesse dia de paz, dos raros na minha vida. Ano passado, escrevi um livro em três noites na Praia dos Ingleses, em Florianópolis. Eu estava lá, mas sonhava e revia o berço esplêndido das areias de Copacabana, as mesmas onde gostaria que jogassem as minhas cinzas - mas isso não tem a menor importância.

Nunca mais me esqueci das luzes da cidade de Copacabana. Elas não se apagam.

Wednesday, August 07, 2019

copacabana solidão

sozinho na praia deserta de copacabana/ perdi um poema livre inteiro/ que falava da minha dor/ com meus olhos cheios de tristeza/ e incerteza/ enquanto a maresia suaviza a noite em riste/ areias de encanto mas também miséria/ e a solidão sem fim de frente para o atlântico sul/ copacabana minha praia/ minha casa abandonada/ procuro pelos meus amigos mas estão todos mortos/ ou ausentes para sempre/ não vejo meus pais de mãos dadas/ não abraço meu irmão/ não aperto a mão de meus colegas/ os bancos do calçadão hospedam a tragédia/ a cocaína escarra na desesperança dos junkies/ where's my violet femmes?/ o posto seis a bolívar a constante a figueiredo o lido/ parece que estamos em 1936/ os carros não passam para buscar as travestis/ copacabana o meu delírio sem encarnação/ as pessoas estão trancadas em seus apartamentos/ e só berram por justo motivo/ a praia deserta de copacabana é minha liberdade e certeza de condenação/ estou desfigurado/ meu mapa mundi é um horizonte apagado debaixo de um céu nublado e frio/ existe o amor em muitos lugares de copacabana/ noutros ele desacontece/ os tiros na ladeira aleijam a alegria/ meus escoteiros estão sem teto/ por culpa do grande capital da humilhação/ nos arredores da praia mais linda do mundo há o cheiro das ruas tristes/ e os lindos puteiros estão fechados/ eis a cidade reacionária/ quem vai perdoar minhas dívidas como eu perdoei a meus devedores?/ existe o ódio ao longe/ o fracasso da sociedade debaixo das marquises/ a devastação escondida entre coqueiros/ onde foi que enterraram os meus amores?/ não quero amolar ninguém/ apenas choro sozinho olhando o horizonte do mar noturno de copacabana/ minha logotham city/ fausto fawcett meu batman/ quem vai pagar o preço do descaso? há luzes ao longe fracassos corporativos e pequenas ambições/ copacabana é dos humildes/ os oprimidos que se esgueiram nas beliches das quitinetes/ e na favela esperta/ no drible malandro do jogo de praia/ no saudoso zé das medalhas/ há navalhas em muitas carnes/ enquanto outras repousam em berço esplêndido/ eu sou a tristeza e o fracasso o fim da linha/ a artéria entupida em desamparo/ onde vou encontrar meu biscoito chinês da sorte/ por entre as quinquilharias de copacabana?/ o verdadeiro poema foi perdido/ este é apenas um prêmio de consolação de um poeta fudido/ sem futuro nem rastro/ à procura das últimas esmolas de amor de seu aquário natal/ eu procuro o jazz e o blues das profundezas de copacabana/ ainda me lembro do grande mendigo caminhando solene pelas últimas calçadas de carinho em copacabana/ meu amor nunca mais vai responder/ eu digo adeus.

Sunday, August 04, 2019

foco!

estamos juntos, estamos longe
qualquer abraço é memória vã
continuamos imperfeitos de fé
e desperdiçamos tanto tempo
que agora uma hora é um mês
não temos tempo nem conforto
nem oportunidade ou mera rotina
o que nos resta é viver do passado
o que foi, o que não foi, o talvez
o que poderia ter sido duma vez
o que não daria num campeonato
e agora somos outros, multi outros
choramos sozinhos no sofá de casa 
nos arrastamos em nossas sombras
e fisgamos a luz à primeira réstia
não temos mais mesa ou conversa
ninguém vai falar ao telefone, ora!
basta um ok, um olá, um polegar
enquanto ouvimos velhas notícias
de um país contaminado e colérico
ninguém mais vai ter tempo, não!
agora somos masterchefs de família
com o limite da conta estraçalhada
e o cartão cheio de grandes bobagens
uma postagem basta, é o que resta
até que cheguem as péssimas notícias
os velórios, a missa de sétimo dia
para então fazermos vale de lágrimas
em nome da nossa hipocrisia ferina
ah, que pena! não deveria ser assim!
depois de doze dias, quem se lembra?
e achamos que sofremos muito, muito
em camas confortáveis neste domingo
de inverno cruel para os desprezados
nós não temos tempo mas temos likes
e muitos comentários, muitas figurinhas
ah, que pena! força! bora empreender!
foco e mira nas oportunidades! crescer!
nunca fomos tão sinceramente idiotas

Saturday, July 13, 2019

NYC

olhando para a parede
uma parede de uma
exposição no ccbb sobre
new york city e seus junkies
e seus gênios dos anos 1970:
numa foto o jovem velvet
underground, noutra a jovem
patti smith com o fotógrafo
robert mapplethorpe
sob trilha sonora de antony
and the johnstons
as ruas de nyc são tristes

parece copacabana ou estácio
ou pedaços de vida suburbana
carioca, quentinha tão gente!
há ruas tristes e sujas, há dores
e cocaína brindando tristeza
desesperança e rude poesia
as pessoas estão cabisbaixas
ninguém acredita no futuro
mas a doce melodia de antony
and the johnstons é um incenso
doce e profundo, um acalanto
quase uma oração de mendicância
NYC é profundeza das almas

com suas ruas sem futuro e pobres
artistas geniais, a cidade sobreviveu
e repintou sua identidade - agora
é sobreviver e aprender a jogar

@pauloandel


Wednesday, June 05, 2019

o primeiro dia do inverno que não existe

lá fora estava frio, frio como não se viu neste ano. não liguei muito por mim, já que sou gordo e tenho meu próprio aquecimento, mas pensei no monte de gente que está sofrendo nas calçadas, a gente tão desprezada por esse governo filhadaputa, e então senti tristeza. sei que continua frio, pois não é preciso ligar o ventilador turbão que temos no quarto. pedi um sanduíche, o moço da entrega veio de casaco. tudo bem que por aqui todo mundo coloca casaco com vinte graus, mas o vento é frio mesmo. é menos pior do que aquele calor demoníaco que tira todas as forças, mas depois de um certo tempo em que você desenvolveu sua preocupação para com o próximo, fica impossível não torcer para nunca ter chuva - os barracos desabam, os mendigos ficam ainda mais desamparados, a cidade é um choro triste de criança abandonada. acabou o futebol, o fluminense perdeu, na televisão tem um documentário sobre badi assad. pensei no frio, me bateu certa melancolia e, enquanto fui espiar o facebook, vi a foto de um menininho que parecia meu irmão e me deu mais vontade de chorar. estou deitado na mesma cama onde fui um garoto de trinta centímetros de altura e hoje tenho mais de cinquenta anos. onde meus pais viveram e morreram. eles agora estão longe demais e eu sou a pessoa mais sozinha do mundo. felizmente sou covarde, pois já pensei muitas vezes no que significaria um voo de morte à janela, mas a minha covardia repele o pensamento - alguns dizem que é lucidez. acabou mais um dia, ou está acabando - eu já vivi mais de vinte mil dias, talvez em vão, talvez sem nenhuma importância e nem um tiquinho da lembrança de pessoas das quais lembro muito bem. deixando a tristeza de lado e ouvindo ao longe os sofredores lutando na loja de recicláveis, carregando sacos enormes em troca de moedas sofríveis. há um silêncio lá fora e algum frio. as pessoas sofrem muito e isso me corta feito uma facada verdadeira. num instante eu olho para o teto e vejo quarenta anos atrás com enorme facilidade. ou trinta ou vinte, quarenta e cinco às vezes porque tudo foi tão rápido que é fácil ver o ontem em 1973. já não está tão frio, talvez seja bom para um banho, colocar o pescoço debaixo do chuveiro até a tristeza escorrer enquanto os gols não aparecem no noticiário. e pensar que a tristeza não passa nunca, mas ela sempre pode ter intervalos até generosos. 

Tuesday, May 28, 2019

vezes

quantas e quantas vezes os lordes
brindaram felizes enquanto os
miseráveis choraram bem à frente
das tabernas, sem rumo ou futuro?
a indiferença venceu a humanidade
desfilaram as hordas de soldados corporativos com suas vestes sóbrias
de matizes discretas e comprimentos

[e desejos reprimidos

[há melancolia nos peitos nus

a paz está guardada debaixo dos escombros da grande guerra suja
onde poucos têm direito a viver
e a solidariedade é uma fantasia

olhar para o céu de tijolos e entender
que o fim se avizinha tão lentamente
em pequenos tragos e tristezas vãs
em mesas com garrafas vazias 
e corredores vazios abraçando vitrines
de um mundo que poucos conhecem

quem vai cantar uma canção de alívio?

a morte é o exílio da felicidade! 

as pessoas brincam de se divertir e fotografam o que se vê ao longe
esperando um porto seguro à toa: 
ele não existe, o conforto não existe

nossos comerciais, por favor

@pauloandel

Sunday, May 26, 2019

manhã de domingos

parece que não está frio nem quente, o verão ainda ameaça em maio mas timidamente. talvez as ruas estejam vazias. em casa tem silêncio e alguma melancolia: o rádio que não toca, as conversas emudecidas, até às pequenas brigas. a televisão mostra filmes reflexivos em curta metragem.

não tem ninguém na sala, no outro quarto, na cozinha, ao lado. pela fresta da cortina percebe-se a réstia de sol que não chega a empolgar.

não tem jornais, revistas, presunto fininho, ovos mexidos e sequer a esperança de jogar futebol com bolinha de isopor em frente de casa.

é o domingo, o silêncio, a tristeza pela distância infinita, o fim mais perto do que o começo, tudo alinhado a uma esperança que sequer se justifica, mas que ajuda a escrever o livro dos dias.

Monday, April 29, 2019

não se espante

então não se espante comigo. estou deitado. lá fora está um lindo dia que não me interessa. pouco me importa uma manhã de solidariedade morta. eu não tenho mais paciência para o óbvio. a estupidez é tão popular que pede bis e tris. moro num país tropical banhado por sangue e mergulhado num copo de cólera com quinze gotas de adoçante.  oh, manhã de segunda-feira, abraço tuas notícias insólitas e cruéis. e repouso minha cabeça no travesseiro como se fosse um popô num sofá de areia. fiquemos eu e meu pensamento feito o músculo adormecido do sexo, a ordinária vanguarda convencional, o quartel-general da escrotidão delicada. suprassumo da inutilidade yo soy, desconocido sou.

Sunday, April 14, 2019

fashion mall


vivem num mundo próprio
à parte onde
o outro não cabe
aquele outro roto, pobre
humilde, abominável
pela própria natureza
louvado seja aquele sangue
derramado
e se pudessem, matariam
mais da metade do mundo
mas lhes falta a danada
da coragem
por isso, aplaudem os nazistas
e seus discursos de merda
aplaudem o rancor e o aparte
são quatro horas da madrugada
e alguém pobre está debaixo
daqueles escombros
jogado naquela calçada
sentado no chão daquele
barraco
enquanto os blasês nem veem
o tamanho do caos que defenderam
o estado novo da morte
o pavor e a indiferença
são quatro horas da madrugada
e as veias de asfalto sangram
lágrimas
é o morro do bumba, a muzema
é o morro de são joão
é a rocinha num incêndio
de balas traçantes
ninguém liga no fashion mall!
vivem num mundo à parte
os nazistas de merda
acreditando mesmo que existe
algum lugar seguro de vez
numa terra onde o outro
é ninguém

@pauloandel

Sunday, March 24, 2019

fim de domingo

hoje meu grande herói beat 
lawrence ferlinghetti 
completou cem anos
e dentro de quinze dias meu amigo
fred completará dez anos de morte
em poucos meses terei cartorze anos
de amizade com meu amigo leo
e trinta e três com henrique
e trinta e três com ana
e trinta e sete com gomes
lá se vão dez anos da façanha
do meu fluminense
e onze anos sem meu pai
e doze anos sem minha mãe
meu irmão não me abraça
há dois anos
a geral acabou há catorze
meus campeonatos de botão há vinte
meus amigos de faculdade morreram
os de colégio também
mas copacabana ainda vive linda
as pessoas sem nome e rosto
continuam a esperar a morte 
nas calçadas frias e sujas
sem tempo ou idade, apenas dor
david gilmour tem setenta e três
e sua guitarra continua cortante
o pink floyd infelizmente faleceu
hoje é noite de domingo
esperamos dias de liberdade
cada vez mais raros e vazios
a liberdade que lawrence ferlinghetti
ensinou ao mundo com seus amigos
e nem todos souberam entender
hoje cada um de nós está mais perto
do fim ou do começo
e ficamos ansiosos pelo dia seguinte
a semana seguinte
a longa estrada cujo fim desconhecemos
o domingo chegou ao fim
a semana exige trabalho e sacrifício
então vivamos!

Friday, March 15, 2019

os últimos passos do verão

os últimos passos do verão irrompem a madrugada feito bala estilhaçada
no peito dos sonhos bons
nem todos dormem
os mendigos certamente não dormem:
temem o crepúsculo da morte
ao primeiro camburão ou carro de sinhô
à primeira chama de um assassino
a cidade está deserta e os bandidos estão livres, eleitos e tão poderosos
até o próximo golpe pútrido.
mas é preciso dizer: nenhum fascista vai calar o nosso amor.
este terror de merda não vai nos demitir da vida - somos diferentes em tudo!
o Brasil vai ser libertado, acreditamos.
pequenos raios de sol esfaqueiam a manhã indefesa.
eu estou em minha cama deitado e penso em todos os que não consegui abraçar, os amores que se foram, o que está por vir. os trabalhos e a grande dúvida. o medo e o medo, o mesmo.
o mesmo sol que abre seus raios na cidade do medo é o que alegrará os banhistas.
nada será como antes, portanto.

@pauloandel