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Saturday, June 21, 2025
Guerra
Friday, June 20, 2025
Noites no campo - Vale do Sol
Chácaras Vale do Sol
1984
A ronda é minha. Estou sozinho nessa. Os chefes foram de carro para algum lugar onde houvesse uma birosca. São duas da manhã. Há um silêncio enorme debaixo do céu de azul cobalto e estrelas. Todos estão dormindo em suas barracas. Eu tenho um rádio e posso escutar música, mas o mistério do silêncio me agrada e então prefiro manter o aparelho desligado. Gostaria de beber um Toddy quente mas é inviável ligar o fogareiro; além do mais, tudo é racionado e é preciso respeitar a programação. Tenho vontade de ligar para minha mãe, mas está tarde e eu só tenho um monte de fichas telefônicas - cadê o orelhão?
[Todos estão dormindo, das crianças aos adolescentes, todos cansados depois de um dia de atividades, cada um com seus sonhos, todos juntos. Somos uns cinquenta, talvez. Sessenta. Somos muita gente reunida em prol dessa vida escoteira cheia de encantos e, a cada noite no campo, silêncios que fazem viajar no tempo e espaço.
Ao longe, no terreno vizinho, surge uma solitária vaca. Como assim? Uma vaca notívaga? Pois é. Lá vai ela com passos bem lentos, tranquila, talvez a caminho do descanso.
O céu. Onde ele vai parar? Na Via Láctea, ok. Céu de mistérios, que talvez abrigue os bons que já se foram, quem garante? Em Vale do Sol o céu parece íntimo demais, próximo, familiar.
Lembro que tenho um gole de vinho barato. Vou à cozinha de bambu e pego uma caneca. Volto e me sento numa espécie de tambor. Eu também sou um silêncio enorme.
Provavelmente o Fred estaria aqui comigo, mas ele não veio acampar. O Coruja está deitado, cortou o dedo. Pedro já capotou há tempos.
Nenhum sinal dos chefes.
Do nada, sorrateiramente, aparece Patrícia, vitimada pela insônia. Ela pede para sentar ao meu lado, sem qualquer problema e começamos a conversar. Então bate certo vento frio já perto das três da manhã, ela sorri e puxa minha mão para a sua, querendo aquecê-la. Por alguns minutos, paramos a conversa e ficamos ali no relento de Vale do Sol, plenos de silêncio. As mãos se abraçam com aquele carinho fraternal que talvez só os jovens saibam oferecer com pureza. Talvez pudéssemos virar a noite ali, já que a alvorada é às seis horas.
De longe, o Chevette branco acende seus faróis de milha. Os chefes estão voltando. Eles param, saltam do carro e alguém pergunta "Tudo bem com vocês?". Balançamos a cabeça, como se disséssemos "Melhor, impossível!". É noite em Vale do Sol. Eles beberam bem, mas estão em boas condições. Brincam e riem. Enquanto isso, as nossas mãos namoram pelo calor mas nem desconfiamos estar nos melhores anos de nossas vidas. Ainda é cedo para se entender as coisas.
@p.r.andel
Tuesday, June 17, 2025
Pensando
PENSANDO. Pensando. Eu penso em muitas coisas muitas vezes, nas pessoas, em muitas pessoas. Eu lembro de muitas coisas de vinte, trinta ou quarenta anos como se fossem ontem. As coisas que acabaram e as que continuam, alegres, tristes, coisas que fazem pensar ainda mais e chega a doer a cabeça. Eu penso muito. Quando estou na rua, penso em como sou minúsculo perto dos edifícios, penso na tristeza que sinto pelo sofrimento de pessoas que eu nunca vi, mas sinto. Em quantas vezes dei meu incentivo, apoio e força para quem sequer me tratou como gente, ou que pisou na minha mão quando eu estava agarrado ao precipício? Quantas vezes fui incompreendido, subestimado e sabotado covardemente? Também fui roubado. Uma vez me acusaram injustamente de roubo, mas provei a injustiça. Na rua, eu vejo um lindo dia frio de sol e penso que nos dias bonitos também acontecem enterros e assassinatos e crimes horríveis. Então continuo minúsculo diante dos grandes edifícios, sou um número republicano qualquer, um CPF que anda pelas ruas cheio de dívidas, sem amigos nem apreços, sem uma única pessoa que se comova com isso - o que não deixa de ser libertador. Meus colegas de escola são avós, estão com suas belas famílias em garbosos endereços enquanto eu vivo escondido. Então penso em arte, música, trechos de filmes, trechos de livros, frases, coisas bonitas que algumas garotas disseram para mim e nunca mais vão se lembrar. Penso que ando em qualquer lugar em que ando sou um estrangeiro, mas fui expulso de minha terra natal por ser pobre. Ah, eu lembro de frases e conversas, diálogos inteiros de muito tempo atrás - alguém também se lembra disso? Lembro quando eu namorava os LPs na porta da loja Billboard, e agora eu torço para que eles sejam vendidos em minha lojinha. Pensando. Pensando. Será que ainda vou ter tempo de viver momentos divertidos ou a porta já se fechou? Eu quer escrever muitas coisas mas não vai dar. Queria também falar coisas, mas não tenho quem ouça - e isso é também libertador. Penso em como era contente com os feriados, a praia nublada, a dupla de praia até escurecer e não enxergarmos mais a bola na areia - um casal transando à beira mar, um nacional fumando um becão. Eu penso na minha família e aí sinto uma facada no peito. Os meus amigos de verdade, poucos, estão mortos muito antes do devido - eram jovens. Me restou um ou outro amigo no WhatsApp. Lembro dos colegas no futebol. Os jogos no Maracanã, meu Deus! A casa do Fred - Ah, Ah, tinha uma das garotas cujo nome não lembro, mas que sempre implicava comigo até que um dia ela riu muito, então paramos os dois e nos aproximamos até não trocarmos o beijo que merecíamos, tão jovens - 1989. Lembro das noites nos acampamentos escoteiros, lembro dos dias nas quadras de futsal dos Bombeiros, das conversas no bar Sniff's e sinto dor porque está tudo longe demais e irrecuperável. "Será que é tudo isso em vão?". "Até quando esperar?". Eu penso nos meus pais e no meu irmão, sinto muita falta deles. Penso nos garotinhos tristes que volta e meia vejo chorando numa esquina, aí me lembro que tirando minha velhice e meu corpo cansado, eu também sou um garoto que chora. Eu penso no futuro e tenho medo, penso no passado e agradeço por ainda estar aqui, mesmo que com tanta tristeza e medo - afinal, era isso ou nada. Pensando mesmo para quê? Será que faz algum sentido?
@p.r.andel
Saturday, June 14, 2025
Já (2015)
SÁBADO à noite e você escuta uma canção na televisão para passar o tempo, enquanto sua namorada não manda um beijo de boa noite pelo Whatsapp. Pensa em escrever fragmentos de um livro ou se deixa tomar pela preguiça generosa da noite descompromissada. Lá fora a chuva perdeu força, o frio permanece e nem todos se lembram de que debaixo da marquise nem todos são esfaqueadores enraivecidos. Nem todos, nem metade ou metade da metade. Numa cama quente de um quarto idem, você ainda pode sonhar. Mas já pensou no sujeito com o rosto na chuva e a pele sofrida sendo cortada pelo vento leve, mas gélido? Pois é, a rijeza da vida não bate somente na cabeça de assassinos numa noite fria de sábado. No coração do Centro do Rio são muitas dezenas de pessoas, algumas centenas na verdade, dormindo e vivendo o esplendor da miséria em ruas onde não passa ninguém nos fins de semana. Crianças de colo pretinhas, algumas maiores, senhores de idade, adultos sem força para viver. Gente à procura de um pedaço de pão, um gole de café, a chance de poder tomar um banho, uma vida onde o sono é o desmaio interrompido pelo horror de acordar e dar de frente com a realidade. A indignação contra a injustiça deve ser o primeiro passo de ações – a indignação pela indignação é apenas um suspiro. As ruas estão desertas por causa do frio. Estamos indignados em nossas confortáveis casas com luz, TV a cabo, computador, água, calor, lençóis limpos, amor safadinho, pensamentos que voam longe. Os miseráveis sofrem com seus dias de horror, sofrem com um ou outro bandido ao lado, com a chacina silenciosa do Estado, com a impossível chance de reverter uma desgraça, com a desagradável sensação de não serem humanos sentados no chão enquanto as respeitáveis pessoas de bem passam pela Rio Branco, Assembleia ou Presidente Antonio Carlos
– Cinelândia também, Carioca, vários lugares. A internet voa longe e você está aqui por causa dela. Somos primitivos demais quando nossa indiferença se limita a esta bela tela. O que vai ser de nós até a próxima manchete fraudulenta, a verdade editada, a democracia ditatorial, a vida de alguns que vale a vida de uma multidão? Somos primitivos demais e está frio lá fora. Frio demais. Uma das crianças pretinhas chora com o frio e nunca mais vai se esquecer da vida na rua. Se ela crescer e der tudo errado, mandamos prender. Se der certo para o belo sistema vigente, ela morre antes. Não somos racistas: o que acontece nas penitenciárias, casas de infratores, delegacias, comunidades, hospitais da rede pública, bairros humildes e outros mais são tudo “coincidência”. A vida escorre. Pena de morte, mortes sem pena. Alguém vai sofrer logo mais. Na verdade, agora. Agora. Agora. Já.
Publicado originalmente em "Cenas do Centro do Rio", Vilarejo Metaeditora, 2017, página 83.
Thursday, June 12, 2025
Eu queria ter doze anos
Não é exatamente um desejo de ser mais jovem, mas de voltar no tempo mesmo. Acordei neste junho frio do Rio - para nós, cariocas, 17 graus são praticamente a Patagônia - e do nada me entorpeci com o sonho de voltar a ter doze anos de idade exatamente em 1980.
Aquilo tudo passou rápido demais e certamente não aproveitei 99% do que poderia.
Por várias coisas, um garoto de doze anos daquele tempo é bem diferente de agora, 45 anos depois. Em tudo. Quase tudo.
Eu queria ter doze anos de idade para sentir aquele velho calor de expectativa aos domingos, quando em algum momento meu pai dizia “Paulo, toma banho logo!”, o que significava que iríamos ao Maracanã e eu andava pelas estrelas só de pensar. Quem viveu isso sabe como ninguém. E não era um Maracanã simplesmente, mas aquele Maracanã - o de 100 mil torcedores, o da nuvem mágica de pó de arroz que mais parecia uma viagem do Pink Floyd, do meu time todo de branco subindo o túnel com uma multidão de crianças em volta - o que eu nunca pude fazer. Bom, o mais importante era ter a mão do meu pai me guiando de Copacabana ao estádio imortal.
Eu queria ter doze anos para poder voltar a lanchar o cachorro quente das Lojas Americanas da Figueiredo Magalhães. Pão, salsicha e molho de tomate com cebola. Que delícia! Igual, nunca mais. E perto da loja tinha a galeria do Cinema Condor, maravilhosa - o Condor era gigante, ir ao cinema era um luxo!
Eu queria ter doze anos para jogar bola com meus amigos na Tenreiro Aranha, a vila, bem em frente à minha escola. O progresso trouxe o metrô da Siqueira Campos, a Tenreiro acabou e a escola já tinha fechado antes. Pelo menos eu falo com meu amigo Leo no WhatsApp, ele mora em Juiz de Fora. O Fredão morreu há anos e me deixou na mão. Dureza. Ele tinha que estar aqui.
Em 1980 a gente sonhava com os LPs da vitrine da Billboard, ao lado da Modern Sound na rua Barata Ribeiro - de lá para cá, mataram e ressuscitaram os discos, que agora são muito mais caros. Dureza.
Eu queria voltar a ter doze anos de idade porque estava descobrindo a beleza feminina. A Márcia e a Simone passavam ali perto de casa toda hora. Elas eram lindas, mas claro que só olhavam para os super-homens de quinze anos, o que nós, garotos, somos incapazes de compreender pelo resto da vida inteira. Não importa: como era bom vê-las e admirá-las. A Leila era linda também.
Eu queria ter doze anos de novo para ver desenhos animados com minha mãe e poder provar a comida maravilhosa que só ela fazia. A gente ria, via os desenhos, jogava até botão mas não dava certo porque ela queria fazer gol com a mão, jogando o dadinho na rede. E queria abraçá-la e dizer “Eu amo você, mãe!”, como fiz dos doze anos de 1980 até 2007, quando meus dois sóis explodiram.
Ser garoto era tudo. A gente nunca entende, quer ser adulto logo até que percebe o erro e o tempo, este senhor do universo, nos leva de forma implacável pelos caminhos da vida, até que um dia as cortinas se fecham sem perdão.
DEATH FLIGHT
Há muitos anos, tive um vizinho de porta. Parecia uma boa pessoa. Não era de muitas palavras. Muitas vezes, nos encontramos no fim da noite e fazíamos uma breve viagem do térreo ao oitavo andar, mais os pavimentos de garagem, limitados às burocracias da educação - boa noite. Nossa história de poucas palavras, silêncio e respeito começou no fim de 2000 e acabou em 2002. Sua última viagem foi respeitosa como todas, trocamos o boa noite e abrimos as portas dos apartamentos. Mal fechei a minha e ouvi gritos desesperados no apartamento da diagonal: ele entrou, deu dez passos até a janela de sua sala e voou para a morte.
Sunday, June 01, 2025
Aquela garota
Nunca mais vi, nem ouvi falar. Eu gostava dela, gostava muito, queria namorar com ela mas nunca tive chance. Eu a achava linda, linda demais, muito doce e linda mas desconfio que a gente não tinha nada a ver com o outro, exceto pelo tesão. Sim, ela me dava muito tesão, acordei várias vezes de pau duro depois de sonhar que a gente estava transando muito. Eu sonhei mais de uma vez em chupá-la e olhar para a sua reação, aí acordei e encarei a realidade: era tudo sonho, fantasia, sem prática. Na primeira vez que a vi, descartei um ex-amor e só pensei nela por muito tempo. Eu queria acordar junto com ela, enchê-la de beijos e depois fazer todas as putarias possíveis mas não rolou. A gente não tinha nada a ver um com o outro, mas a simples lembrança dela me enchia de desejo, mas não apenas isso: eu queria sua companhia, sua proximidade, sua voz doce perto e também seu corpo delicioso. Eu queria várias coisas mas infelizmente não sobrou nada além de lembranças do que poderia ter sido tão prazeroso. Eu penso nela quase todo dia, eu transo com ela nos meus sonhos e fico esperando que o impossível ainda tenha alguma chance, minúscula chance, mesmo que os anos tenham passado, mesmo que tudo seja inútil.