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Sunday, December 29, 2024

Sanduíche

SANDUÍCHE 

[ou o último domingo do ano

Numa noite de 1982, eu tinha alguns trocados e fui caminhar pelas ruas de Copacabana. Fiz isso muito até o dia em que fui despejado do bairro, caminhar por suas ruas sem um objetivo, apenas flanar, e mantive esse hábito até hoje sempre que posso. Pelo menos uma vez por mês.

Queria lembrar o nome da lanchonete que funcionava na esquina da Siqueira Campos com Barata Ribeiro. Era bem grande. Enfim, parei por lá perto das nove da noite, me sentei no banquinho acolchoado e pedi um cheeseburger com refresco. Sabe aquele bife roots, feito na casa? Era assim. Suculento. Sou capaz de rever a cena toda 42 anos depois. Só não lembro o nome da lanchonete. Ela ainda durou um bom tempo. 

Depois do lanche, desci a Barata Ribeiro até perto da esquina com a Santa Clara. Eu ia na Billboard, loja de discos, pra olhar as capas dos álbuns lançados - e torcer para o Fred comprá-los porque eu não tinha um tostão. O máximo que dava era para o sanduíche, esse nunca me abandonou. Olhava os discos, os artistas, sonhava em ter LPs - que não consegui, mas diz uma coleção legal de CDs. A gente ouvia música, conversava sobre música, ouvia rádio, apreciava os artistas, sonhava com os shows - que eram mil vezes mais acessíveis do que hoje - íamos ao Canecão com trocados. 

[Acho que pensei nisso porque também lembrei do meu amigo Xuru, que faria aniversário hoje mas já se mandou há tempos. Uma pena. Acho que toda semana falamos do Xuru no nosso grupo de Whatsapp e, de certa forma, é um jeito de mantê-lo vivo para nós. Temos ido ao Caravelle comer pizza, bem ao lado de onde ele morava. Se o Xuru não tivesse ido embora tão cedo, eu não passaria 10% das humilhações que passei. Deixa estar. 

Com catorze anos, o meu mundo era pequeno mas simples: sanduíche, loja de discos, casa do Fred, Maracanã, futebol na praia e grupo de escoteiros. Cinema. Shows. Com pai e mãe tudo é mais fácil, a gente não precisava gastar quase nada. A inflação era trágica, mas a gente consumia muito pouco. Não era fácil ser adolescente, aliás nunca será, mas a gente tinha momentos divertidos. 

Um dia resolvi emagrecer. Não aguentava aquela conversa de "você é bonitinho de rosto". Perdi 15 kg, fiquei viciado em corrida e me senti muito bem até o dia em que precisei parar de correr. Eu amo futebol, mas a corrida me proporcionou um bem estar único. Emagreci, mas o sanduíche continuou por perto. Agora eu penso em 1988, que foi um grande ano, e de outros tantos momentos divertidos que me acompanharam até aqui. Há muita dor também, mas o saldo é positivo. 

Chegamos às oito e meia do último domingo do ano. Simone está cantando na TV. Ela é das nossas. Acabou 2024. Desde 1982, meu sonho é ter uma casinha, livros, discos, conversar um pouco e ver a minha cidade menos triste e violenta. Ter um sanduíche com refresco. Se pudesse, eu sairia agora pelas ruas de Copacabana só para me reencontrar com meus 14 anos. Não tem mais Billboard, mas agora eu tenho minha própria lojinha de discos. Não tem mais Fred. Não tem mais Xuru. Nem pai, nem mãe. Sobraram alguns amigos, muitos conhecidos e gente que me agradece porque defendo o Fluminense. Às vezes alguém me abraça porque escrevi sobre alguma luz da cidade. Muita gente foi embora sem dizer adeus, os piores são os que escolherem fazer papel de mortos em vida. Deixa estar: é melhor ser um ex-amigo do que um bajulador. 

Apesar da internet ser um ímã de gente ruim, conheci pessoas fantásticas por aqui. Gente que eu idolatrava e agora conversa comigo. Gente que ajuda a aliviar as dores do mundo. Muito obrigado a todos os que, de alguma forma, têm me ajudado a sobreviver nesse mundo de tanta ingratidão e rancor.

Ah, quando eu via as capas dos discos da Billboard, também sonhava com a chance de publicar um livro. Demorou 25 anos, mas não é que aconteceu? 

@p.r.andel

Friday, December 27, 2024

Gostoso

16:30 de Brasília, coração do Rio.

Desço a Lavradio vazia e entro na rua do Senado. Vem alguém atrás de mim e saio da calçada minúscula para dar passagem. Um rapaz, um homem negro de mais ou menos uns 40 anos, parecendo estar em situação de rua, passa por mim. Para um metro adiante, vira e me olha de cima a baixo. Quando preparo meu instinto natural de defesa, o nacional dispara: "Gostoso!"

Quis o destino que eu estivesse na porta da Hamburgueria da Alfândega. Olhei pro sujeito, mandei meu polegar de tchau, entrei na lanchonete e subitamente lembrei de uma garota em quem eu nunca mais deveria pensar. Dez segundos depois, eu já era um cliente satisfeito à espera de um cheeseburger duplo, com poderosos bifões de 160 gramas. 

Você é o que come. Obviamente, sou gostoso. Mas achei que, com 130 kg e 56 anos, eu já estivesse na faixa de isenção das cantadas gays. 

As garotas também faziam isso, mas só discretamente.

Tuesday, December 24, 2024

Canalha sem convicção...

CANALHA SEM CONVICÇÃO PLENA EM VÉSPERA DE NATAL

Quando chega essa época de fim de ano, acontece uma situação que envolve canalhas e cretinos amadores, que é o remorso. Todos sabemos que um verdadeiro canalha, autêntico, daqueles que não vale o ar que respira, nunca irá se importar com os sentimentos ou prejuízos daqueles que malversou. Não é que o amador também não possa fazer o mesmo, mas pode ser que em algum momento sinta remorso, e aí a dor é inevitável. O pequeno canalha sente o golpe, fica em dúvida, cogita até ser uma boa pessoa perdida - na verdade não é! - mas o exercício do mau caratismo raiz o atordoa. As pessoas falando de Deus, de paz, de um minuto de abraços, da necessidade de resgate do sentimento gregário, da fraternidade, do amor às crianças e aos mais velhos, aos desamparados e, diante deste cenário, o calhorda amador vai se dissolvendo feito sal de frutas Eno num copo de água gelada. O calhorda sem convicção prejudica, bajula, deixa os amigos na mão, trai, é traíra mas está tão condenado quanto seus espelhos de caráter. E se dói, mesmo que não esteja arrependido: ele vive um dilema, dividido entre o canalha que deveria ser mas ainda não é, assim como o canalha medíocre que é, ainda a caminho da involução. Os canalhas que creem em Deus até apelam; já os outros, tentam fingir serenidade em vão.


@p.r.andel

Monday, December 23, 2024

Yo no tengo

Hoje não tem poesia, apenas silêncio e certa dor. As convenções exigem o Natal, mas estou cada vez distante dele. Em nenhum momento recomendo isso para ninguém, é uma questão pessoal minha. Cada vez mais perco meu pequeno espaço num mundo marcado pela ganância e consumismo desenfreados. Vejo pessoas indo e vindo com toneladas de comida enquanto as calçadas estão cheias de gente faminta. Sinceramente, não consigo ser feliz vendo tanta gente do meu povo sofrendo sem parar. E cheguei à conclusão de que estou distante de todas as pessoas que amo, a maioria para sempre. Logo, hoje não tem poesia. Espero que as pessoas se sintam menos desconfortáveis, que a maioria possa ter ao menos uma única noite de paz e reflexão, que o mundo seja menos cruel. Espero com certo ceticismo, é que o mundo é cruel demais. Sei que algun amigos queridos vão inevitavelmente chorar seus mortos - e tanta gente boa se foi nas últimas semanas tão antes da hora. As pessoas que conheci na TV vão chorar por tanta gente destruída pelo ódio que domina essa cidade, explodindo peitos e cabeças com armas violentas, ceifando vidas, destruindo crianças, humilhando a todos. Sim, a poesia existe e eu torço sempre por ela, mas não tem espaço nesta hora de guerra. Ok, as famílias pobres são muito humilhadas nesta cidade cheia de cólera. O que resta é torcer para que um pouquinho de paz prevaleça. Eu torço, eu sempre torço. Que pelo menos uma parte do pessoal possa ter um bom Natal, porque a maioria infelizmente não terá. Mesmo.

Saturday, December 21, 2024

Pro China

Lá se foi a mãe do China, meu amigo há anos. Eu sei bem dessa dor, e toda vez que isso acontece eu sinto duas vezes: pela dor do amigo e pela minha, que volta à tona. Eu revejo meu pai e minha mãe ainda jovens, ainda tendo o que viver, delicadamente mortos e mergulho a 600 km/h num abismo. Quanto custa ter o pai ou a mãe mais seis meses ou dois anos por aqui? Eu não sei, apenas sofro, isso piora em dias como esses, perto do fim do ano, onde existe praticamente uma ditadura que te obriga a ser feliz. Eu não sou feliz, eu tenho momentos felizes. Quem pode ver o mundo como está e ser realmente feliz? A não ser que não pense em ninguém. É claro que pais e mães não são eternos, é claro que filhos enterrarem os pais é o natural, mas nem por isso a gente deixa de sentir dor, que pode durar muito tempo ou até para sempre. Só sei que sinto dor e sofro, sofro muito por mim mesmo e pelos outros, pelos próximos que às vezes sequer conheço. Eu queria falar muitas coisas agora mas não vou falar nada. Só quero dizer ao China que eu me solidarizo com ele. Lembro das vezes que ele foi tão bom anfitrião em sua casa alta. E quando me prestigiou em meus lançamentos. E quando bebemos chopes maneiros. Estou deitado, a TV fala algo que não escuto direito, é noite calorenta de sábado e não vou a lugar nenhum. Sinto dores. Converso no WhatsApp com colegas diversos, a Marina também. Penso em várias coisas que não sei dizer, em gente que perdi para sempre, em gente que ficou pelo caminho, penso nesse estranho mundo cheio de ruindade e solidão enrustida. Meu amigo China está triste e eu também estou, Mitya também está. Hoje foi um dia de ficar deitado. Eu senti dor, a gota atacou, fiquei recolhido. É duro não ser mais garoto e eu, que sempre tive vocação para ser menino, agora sigo outras palavras.

Friday, December 13, 2024

Três anos no Pampeiro

O apartamento era um barato. Dois na verdade, um de frente para o outro. À direita do elevador, silêncio e paz. À esquerda, o caos juvenil. Jogávamos botão quase todo dia, nos finais de semana rolava War. Íamos até meia noite ou mais, depois víamos Goulart de Andrade ou alguma coisa assim na TV. Isso durou uns três anos, mas parecem  dez ou mais, de tão intenso que foi. Eu me divertia a valer. Ríamos o tempo todo, até de gol contra ou de pisar num caquinho. Era 1987, grandes jogos no Maracanã, grandes shows no Rio, depois passei para a faculdade e ficou melhor ainda. A gente não tinha dinheiro e nem precisava: a maior despesa era ir nas Casas da Banha comprar o lanche à meia noite, sempre podendo esbarrar com Fausto Fawcett, Roberta Close, Monsieur Limá, Rogéria, o ator Percy Aires e tantos outros grandes personagens do bairro. Terminada a farinha, voltava bem para casa, ficava a uns 400 metros - o Shopping dos Antiquários já estava todo silencioso, é o único lugar onde me sinto como um autêntico local. Claro que nem tudo são flores: havia a barra pesada. Amigos morreram em acidentes de carro, assassinados no morro, de AIDS, outros simplesmente sumiram para sempre. Eu saí do grupo de escoteiros, totalmente contra a vontade mas era necessário - all things must pass. Mas aqueles três anos jogando botão no Pampeiro ficaram para sempre - se pudesse, usaria todo o dinheiro do mundo para comprar um revival daquilo, mas é impossível e agora, como diz o poeta Gil, não tenho qualquer socorro no meu caminho inevitável para a morte, mesmo que ela pareça longe ainda - boa parte da areia da ampulheta já desceu. O que me importa é que 37 anos depois daqueles dias maneiros, meus amigos de lá ainda me chamam pelo WhatsApp. Agora eu sinto uma dor danada e lembro que este é um dia horrível, mas só de pensar nos meus 18 ou 19 anos, a gente sente um sopro de ânimo. Três anos no Pampeiro. Só faltava ter as Casas da Banha de novo. Nem falei dos Paralamas com "Bora Bora", dos Smiths no Maracanãzinho, das peladas de praia. Era bom demais. Era o meu mundo. 

@p.r.andel

Wednesday, December 11, 2024

Todo dia

Morrer, todo mundo vai. É do jogo.

O problema do Rio é que todo dia morre alguém antes da hora, ou muito antes. 

É a garotinha na praça, é a militar no quartel, é a senhora na comunidade. 

Todo dia a sujeira dessa sociedade explode o peito ou a cabeça de alguém. 

Há quem julgue ser fácil abstrair ou naturalizar a situação. 

Eu não. Isso tudo me faz muito mal.

Quem sou eu para achar normal que, por não ser minha filha, sobrinha ou parente, a morte de uma garotinha por bala anônima deve ser algo natural? Não é. Nunca vai ser. 

Os mesmos erros de sempre. As vítimas estão por toda parte. As famílias despedaçadas choram. 

Onde foi que perdemos a humanidade? 

Só quero lembrar que, antes de explodir a cabeça de alguém, a tal bala perdida fez um longo caminho. Veio de muito longe. Foi protegida por bandidos e militares, até chegar ao ponto de que ela mesmo, bala, decrete a morte de alguém geralmente indefeso. 

Uma tragédia que muitos dão de ombros. 

@p.r.andel

Tuesday, December 10, 2024

Depois o maluco sou eu

Terça, 11:15h, VLT SDU x Gentileza. 

Estou em pé no vagão vazio. Vou saltar logo. 

Perto de mim há um jovem de uns 20 anos no máximo, também em pé, navegando no smartphone. Padrão camiseta preta + óculos + 

Na Cinelândia embarca uma senhora, bonita, mais de 60 anos com certeza. Entra e não senta. 

Quando o VLT sai, ela se aproxima do rapaz, cola as costas em seu peito e começa a rebolar por uns cinco ou dez segundos. 

Para, não diz uma palavra. 

O garoto está paralisado. 

Fico pensando se não estou esfomeado...

Ela desce na Carioca, eu também.

Ela olha para mim por alguns segundos,vira e caminha para a direção contrária de onde viemos. 

Ok, sou de Copacabana. Já vi coisas N vezes mais escabrosas. 

A senhora desparece, o VLT também. 

Quando olho para a frente da estação, há um grande container na calçada da Rio Branco, ou algo parecido.

As pessoas indo e vindo no que já foi o coração da capital. 

Acima do suposto container, um homem jovem usa sua mochila como travesseiro e dorme tranquilamente. 

É o sono dos justos, quem sabe?