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Wednesday, April 30, 2014

devaneio

você fechou os olhos
e eu desapareci fugaz:
onde está algum sonho?
eis-me longe, estrangeiro
pensando num certo eu
que não tem teu vão valor
eis-me frio, contemplativo
acordado em pleno hiato

@pauloandel

Saturday, April 26, 2014

costa brava

então faz-se a minha mão a tua mão
boca, saliva, secreção
ardor de pele à pele ao chão -
sejamos vulcão, um tufão
tornado e tempestade
lua cheia e firme ao tempo cão
então seja minha oração
uma religião sem alarde
receita de romance no atlântico sul
lance, toque, meu novo tesão
então seja mais do que momento:
seja a razão do meu tempo azul
tempo
tempo
a fúria do sim contra o ranço do não
e não apenas entretenimento

@pauloandel

Friday, April 25, 2014

copacabana gotham city

a noite a deitar em berço esplêndido do horizonte
enquanto fazemos velhas promessas
sonhamos com o passado perdido
ou com novos tempos novos
e buscamos abrigo no coração da grande cidade
ah, mansidão que não aquece!
vastos outros corações em chamas!
os que sofrem e choram, falecem
há quem viva ao léu da dor
e pessoas de bem estraçalham-se em suores num vagão lotado
garotos fumam a morte para se esquecerem da vida
garotos com suas caixas de engraxate
e jovens com belos sobrenomes brindando champagne
a noite é Copacabana e seu cais de mil memórias
os netunos vão resgatar nossos amores
e nada será sempre perdido no fundo do mar
e nada será sempre o perdido no fundo do mar
ainda vamos inventar outra cidade
onde seus corações serão perdidos de amor - uns sobre os outros
e nenhuma dança será em vão
nenhum poema desperdiçado
mesmo que os arranha-céus sejam a regra
nós ainda vamos escrever a história de outra cidade

@pauloandel

Thursday, April 24, 2014

chuva, lágrimas e mães

Acabei de CHEGAR em minha humilde e confortável casa na Cruz Vermelha. Escapei de uma chuva enorme. Hoje era dia de doação de comida para moradores de rua em frente ao meu prédio. Quando a água apertou, o pessoal correu para debaixo da marquise - era a única alternativa. O porteiro tentou fazer uma piada sem graça: "Os mendigos vão fazer manifestação?" - nem todo humano faz jus à definição de bípede.

LEMBRO bem da primeira vez que fiquei triste por causa de alguém que sofria nas ruas.

Era uma noite de 1974 na avenida de Copacabana, bem em frente ao Cinema Metro, cujo ar condicionado gelava a calçada do outro lado da rua quando as portas de saída eram abertas.

Minha jovem e linda mãe me puxava pela mão direita quando saíamos do cinema. À porta, uma senhora pedia esmolas com uma garotinha que devia ter o meu tamanho ou menos. A mãe abriu a carteira, ainda éramos uma família com posses. Deu algumas notas, apertou a mão da senhora, fomos embora e pegamos um táxi.

Foi a primeira vez que vi minha mãe chorar. Ela estava muito triste com o sofrimento da senhora. Anos depois, a mãe me contou que, em seus primeiros dias no Rio, desesperada em busca de um emprego para ajudar meu avô no Paraná, chegou a dormir alguns dias na rua e até numa garagem até conseguir emprego numa casa de família.

Já em casa, Santa Clara 345, minha mãe ainda tinha o rosto avermelhado pelo choro. Eu entendi que uma pessoa sofrer na rua, desamparada, é triste e inaceitável - ao menos para quem tem o mínimo amor ao próximo.

Agora, tantos anos depois, quarenta, as pessoas continuam sofrendo na rua, fico tão triste como minha mãe me ensinou um dia e, a cada dia que passa, penso em como somos uma sociedade imbecil e inconsequente porque damos de ombros a quem sofre na rua. São vagabundos. Por que não trabalham? Falam tanto de Deus, de religião, de corrupção e ninguém enxerga uma mão estendida pedindo um pedaço de pão.

Um orgulho enorme em rever minha mãe apertando a mão da senhora mendiga. Uma dor enorme em cogitar saber do que aconteceu com a garotinha.

Somos estúpidos demais.

@pauloandel

Wednesday, April 23, 2014

copacabana sangra

eis que copacabana sangra
e suas ruas rugem o horror:
alguém morreu à toa, triste
a polícia apresenta as armas
a morte vira uma estatística
as manchetes em sangue frio
onde as vidas não tem valor
a bossa nova é sempre foda
mas a miséria da alma agride:
estupra, mata, corrompe, suja -
ordem, progresso e desamor -
pátria amada, Brasil - ninguém!

@pauloandel

Tuesday, April 22, 2014

copacabana amêndoa


chutando amêndoa
numa calçada enquanto
o mundo passa
no asfalto da Copacabana
um casal acha graça
uma mendiga em desespero
desconfia
e o rapaz do interior devolve
um objeto perdido a uma gata
pessoas passam num recado
carros lutam por suas vagas
e as grades brancas do Igrejinha
trazem vidas no compasso
das outras vidas - um arremedo
enquanto quase ninguém
lembrou de Almir Pernambuquinho
no Bar Bico
a vida é breve e tão sem graça
um carro à venda, outro negócio
uma calçada e sua amêndoa
alguém a chuta redivivo -
entre a paz e o caos e os rococós
Copacabana tem marra e charme
seja à luz dos grandes postes
ou de velas acesas na encruzilhada

@pauloandel

Thursday, April 17, 2014

somos tão modernos

numa rua da nova guanabara
passam ônibus nunca vistos antes
nos seios da noite, na hora da casa
e pessoas apressadas com seus fones correm
contra o tempo a desperdiçar
- vamos às casas - TVs a cabo - solidão nas salas - calores de corpo e almas apaixonadas à distância - deus nos perdoe - sonhos sinistros
uma linda mulher num deserto vagão de trem urbano
uma linda criança e sua mãe numa calçada do Centro
e a verdade escarrada em manchetes assépticas enrustidas em rasa elegância
o outro lado de qualquer lado da história
romance de nada - roubado é mais gostoso!
ninguém vai escutar um outro tiro noutro morro adiante
nem gritos de dor, desespero cru
estupro e covardia
ninguém pode mudar o mundo
os vãos vizinhos são números
ninguém vai escutar um outro tiro noutro morro adiante
nosso caos moderno, fraturado
desalmado, corações rancorosos
e todas as vitrines não podem dizer o bastante
ninguém vai escutar um outro crime noutra esquina adiante
uma linda mulher e um coração
que lhe cobiça ao distante
a nova guanabara soma forças
e cambaleia sem cortes

@pauloandel

Wednesday, April 16, 2014

mãos vazias

quando as mãos mendigas
estavam erguidas e tristes
havia uma noite de chuva
e marquises frias em cinza
as mãos em desespero e fé:
um resto, um trago, um troco
e a vida que a deus pertence
as mãos lutando noite e dia
insones, enrugadas e vazias
o perigo e a violência da rua
morte e vida tão encardidas
ninguém tem tempo a perder
nem pensar em certa covardia
somos o que temos, bobagem
a vida é breve, sem os rastros
a linda e tenra carne apodrece
nenhuma arrogância prevalece -
somos uma bobagem sincera
os dias são as mãos iludidas

@pauloandel

Tuesday, April 15, 2014

o catador

Entrei no ônibus vazio, cumprimentei o motorista, vi poucos passageiros, todos com ar tenso ou cansado, natural numa noite de segunda-feira às dez da noite. Vou para os últimos bancos. Chuva, frio, as ruas desertas, apenas solitários passageiros nos pontos ou sofredores de rua, sempre com o risco de algum infeliz assassiná-los porque "não são gente".

Na porta do Clube Municipal, mal prestei atenção aos letreiros dos próximos shows. Pela porta dos fundos, entrou um rapaz com roupas humildes e dois sacos com vários objetos. Perguntou se o ônibus passava no (Batalhão de) Choque, expliquei que deixava razoavelmente perto. Foi à frente, pagou sua passagem, o trocador não girou a roleta, ele voltou para os fundos, sentou-se e desandou a falar.

Nas primeiras palavras, percebi sua humildade ainda maior pelos vários dentes faltantes. Era um catador. Mas ele estava numa alegria só: mostrou com toda festa que tinha conseguido uma máquina de cortar cabelo, novinha na caixa. Um par de tênis, nem tão novos mas perfeitos para uso. Moedas. Um relógio não propriamente em folha, mas disse-me do sonho de colocar uma bateria nele para funcionar. Vibrou quando disse que tinha já o dinheiro para a hospedagem do dia seguinte e até para a comida. Ainda completou, dizendo torcer que nenhum dos achados fosse produro de roubo, que fossem apenas lixo para quem os despejou. Claro que nada roubado é mais gostoso, exceto para bandidos e imbecis.

Conversamos, eu o parabenizei e fiquei feliz também: num mundo cheio de ganância, ruindade e escrotidão, é um alento ver um rapaz tão sofrido comemorando a vitória de um dia, a gota no oceano de solidão, egoísmo e hipocrisia das grandes cidades. Justamente no fim de um dia em que me senti tão derrotado, a alegria de quem sofre é um alerta: perdemos muito tempo com coisas e gentes inúteis. O futebol, por exemplo: deveria ser só uma diversão mas vira sofrimento quando nele vemos os retratos mais sujos de hipocrisia e preconceito. As fofocas, o cotidiano fútil, a indiferença de quem se sente confortável em relação a quem agoniza lentamente. O que dizer dos imbecis que perseguem comunistas em 2014?

Coisa de minutos, o rapaz desceu apressado no Sambódromo com suas quinquilharias e pertences. Não nos despedimentos, não havia tempo e a chuva apertava. Eu torci para que ela não piorasse. Só queria que ele chegasse bem em sua humilde hospedagem, descansasse e comemorasse ainda sua pequena vitória diante de um mundo tão injusto, desequilibrado e infeliz. Tomara que tenha dado tudo certo.

Nunca mais falaremos. Foram cinco minutos em que tive um correto irmão de volta. Um tempo em que as pessoas conversavam umas com as outras importando-se com elas. Nenhum nazismo nas ruas, praças e arquibancadas. Quando a vida de terceiros era um bem precioso e respeitado.

Desci perto de casa, comi uma fatia de pizza no bar da esquina, voltei para casa, conversei com minha garota e ouvi um disco de músicas tristes. A simplicidade de um catador e a luta diária para sobreviver honestamente fazem pensar.

As multidões são solitárias.

@pauloandel.

Tuesday, April 08, 2014

romance proibido


COMBINAMOS um pacífico chope no Paladino, com seu mar de histórias e um século de sorrisos. Depois de um pequeno contratempo, comecei a caminhada para cruzar o coração da cidade por volta das seis da tarde.

Descer a rua do Senado e perceber que o verão disse adeus: o céu escuro, a rua vazia e nos poucos rostos disponíveis, procurei meu irmão em vão. Uma tristeza enorme que persistiu mesmo com a beleza das luzes no hotel moderno da Praça Tiradentes - as ruas cheias de carros, barulhos, gente impaciente e cansada, tudo em nome dos tempos modernos.

Tomei a Sete de Setembro, comprei três discos no sebo, ainda o Zeca Baleiro nas Lojas Americanas, já cheia de ovos de Páscoa no teto falso e isso de alguma forma rasga meu peito sofrido e o coração inchado porque penso na alegria de minha mãe, felicidade viva com uma lembrança de criança.

Depois espiar a rua Uruguaiana com os carros e seus motoristas nervosos, tentando voar onde se deveria andar até o encontro com a Presidente Vargas e suas grades nas calçadas, uma vez que o governo entende o adestramento como única saída para lidar com seus passageiros rebeldes. Duas garotas bonitas na porta do McDonald's, não mais do que um belo recado no correio do telefone.

A cidade e a beleza de seu caos ornamentado por cones de cor laranja. Logo depois, jovens executivos animadíssimos com a escada vermelha e os balões da porta do puteiro - e o sexo que preencha o rancor, o tesão que tape o sol da solidão com uma peneira - da vida não se leva nada.

NELSON está sentado à mesa e chego quase ao mesmo tempo que Tiba. Chopes dourados e ainda não tenho felicidade. Rimos assim mesmo. E falamos mal de todo mando: dos amigos, inimigos, mulheres desclassificadas, o Estado que não regenera, do futebol, da direita e de nós mesmos, ingênuos em sonhar por um mundo melhor.

Desde a entrada, percebo um jovem casal no canto do bar, direção noroeste da nossa mesa. Um clima de romance proibido: a mulher, casada e com aliança à vista; o rapaz, não. Ela, tímida, nem bonita mas interessante com seu jeito de repelir o pretendente: ora sorria, ora mexia nos cabelos bem-tratados, ora deixava o conquistador tocar-lhe a mão direita. Não pude deixar de sacanear Tiba, por conta de ter condenado certo romance meu de muito tempo justamente naquelas bases. Catalano, já à mesa, entre reflexões, obsessões e boas fotos.

Enquanto nos empanturrávamos com omeletes, sanduíches e chope, Trino chegou e aumentou o número de gargalhadas por segundo. Agora somos tão velhos e jovens. A mesa nos reconduz ao fantástico mundo dos tempos de faculdade que nunca voltará, até por jamais ter ido realmente embora de fato. Mulheres, ex-mulheres, amigos chatos, amigos mergulhados no porão das religiões, eu e Bola contando com a força de nosso pai Inri Cristo. Trabalho, dinheiro, falta de dinheiro e um mundo repleto de editores da história, da verdade absoluta e de outras bobagens descartáveis.

Sinal de alerta a noroeste: num súbito, o conquistador puxou a companheira e conseguiu o beijo que, se nasceu tímido, logo perdeu qualquer pudor e sugeria que ali tinha nascido um vigoroso romance proibido. Sabe-se lá porque, torci por aquilo: ainda somos todos bobos românticos esperando um beijo de amor - o amor só existe porque desacontece - o amor precisa da contradição e do desencontro. E não é que paramos nosso mar de risos pra falarmos coisas sérias de amor e desamor? Talvez em 2014 um beijo apaixonado e proibido ainda seja mais poderoso do que uma vida sem sentido em filas, engarrafamentos, vagões abarrotados e limite de cheque especial.

Apressado, o casal logo fechou sua conta. Saíram discretos do Paladino. Talvez tenham ido confirmar o amor, o tesão, a vontade, os desejos reprimidos com os quais nem todos sabem lidar. Ainda demos mais gargalhadas, até mesmo quando veio a caríssima conta. Os dois saíram discretos mas felizes. Não cabe julgamento: ninguém sabe exatamente o que ali era o enganar alguém.

Deu tempo para um abraço da turma e a despedida do até breve. Voltei com Tiba de carona no carro de Trino. Logo chegamos à Gomes Freire, meio Souza Lima com seus travestis em riste. Dois minutos depois, cumprimentei os amigos, caminhei pela Cruz Vermelha, não vi meu irmão em nenhum dos rostos solitários da região. Cheguei ao prédio, subi, entrei em casa, banho tomado, falei com Marina e agora o teto branco e frio é meu interlocutor e eu, o viajante solitário. Que fim levou aquele casal? A única coisa importante no homem é a contradição, conforme Enrico Bianco. Qusndo o amor não vence, seja ele qual for, o vazio da alma é o cúmulo da certeza.

A vida sem romance é um equívoco. O belo romance que não foi sorvido, uma guerra nuclear. Queremos mais. Fogos de artifício explodindo e colorindo a beleza à beira do cais. 

@pauloandel

Monday, April 07, 2014

naja

aquele olhar de naja
verde viva cativante
- agora somos brisa
e réstia cintilante à sina
- mal se crê o disfarce
aquele olhar de cais
e mar e tarde fustigante
enquanto cada lance
é chama
e todo lance é xeque
em riste
dá-me tua vista do céu
enquanto os anjos tristes
não encontrarem a cor de
deus

@pauloandel

Sunday, April 06, 2014

433 - Vila Isabel x Leblon

Depois de uma manhã triste, conversei durante algum tempo no Whatsapp. Antigamente usávamos o telefone ou as conversas de bar; agora são tempos modernos. De toda forma, foi divertido, pequeno bálsamo diante das mazelas da vida.

Aconteceu que resolvi almoçar fora. Pareceu mais prático do que ir ao mercado, voltar e preparar. O restaurante da rua dos Inválidos estava vazio; quem não mergulhou de cabeça nas praias ensolaradas já estava em bares ou casas no ritmo da decisão do campeonato carioca de futebol. São tempos modernos onde as arquibancadas ficam em segundo plano. O prato bom como sempre. Pensei em voltar para casa e passar o dia recolhido, mas resolvi dar uma volta.

Apesar de não ser um homem abonado e de não saber dirigir, ainda costumo atravessar as veias abertas do Rio de Janeiro, viver a cidade em seus diferentes formatos. Para viagens mais longas, táxi e metrô geralmente resolvem. O resto consigo fazer de táxi, mesmo que os maus motoristas tenham preconceitos estúpidos em termos de aparência do passageiro ou da corrida a ser feita.

Pois bem: inicialmente pensei em ir à Fnac para ver livros e discos. Quando cheguei perto da rua do Riachuelo, cogitei pegar um táxi mas, logo que atravessei a rua, veio um ônibus 433, o eterno, um percurso de dez minutos para ir até o Rio Sul - discos na Saraiva, jazz da ATCO, lembranças de Fred pedindo um Color Surprise no Bigburger. Embarquei.

Estranho o fato de uma bonita nissei passar a roleta e ficar em pé com tantos assentos disponíveis - alguns moderninhos, senhores, gente antenada. O motorista parecia um tanto impaciente com as pessoas que embarcavam. Ainda gosto de ônibus: sempre gostei de viagens coletivas, lembram-me o Maracanã dos tempos dignos. Tudo passa rápido demais.

A pequena viagem também. Praia do Flamengo, Oswaldo Cruz, Enseada de Botafogo, o Atlântico Sul em seu esplendor namorando o Pão de Açúcar.  No primeiro ponto a nissei desceu sozinha. Veio o segundo, em frente ao velho Mourisco imaginário que os jovens desconhecem.

O ônibus parou.

Abriu-se a porta traseira.

O Brasil subiu os degraus do coletivo.

Num rompante, pela porta de trás e sobe uma garotada de oito ou dez anos de idade.

Era coisa de chorar: todos visivelmente entorpecidos, garrafa de tíner à mão.

Sentaram-se em vários lugares, inclusive cercando um casal no último banco que, apavorado, saltou imediatamente. Do meu lado, ninguém: acho que minha cara, meu cabelo e meu tamanho não são atraentes para pequenas intimidações. Um dos garotos, o menor de todos, talvez uns sete anos, entrou com a mão debaixo da camiseta: era tão pequena que o dedinho não simulava nem uma pistolinha de brinquedo.

Um dos meninos gritou, com sua voz de taquarinha rachada: "Piloto, vamos que eu tenho hora pra chegar em casa". Os passageiros apavorados. Prometi a mim mesmo que só agiria em caso de necessidade extrema - e não era o caso.

O motorista não se levantou. De longe, começou a gritar para que descessem e que não prosseguiria viagem com os garotos. Então vi uma cena triste demais: eles se entreolharam cabisbaixos, mesmo muito doidos, e lentamente começaram a descer. Duas meninas junto. Tive medo de que uma delas parecesse grávida. Olhavam-se com o ar da rejeição que sofrem desde cedo. Pensei: se fossem violentos mesmo, teriam reagido imediatamente. Encolheram-se e voltaram para a casa que o Estado e a sociedade lhes oferece: a calçada.

O ônibus atravessou no túnel e parou no ponto do Rio Sul. Saltei. Pensei na minha tristeza da manhã. Num segundo, passou-me pela cabeça que eu evitei que mais um garoto fosse humilhado nas ruas por ser pobre, socialmente destroçado e fiz de tudo para que tivesse uma vida melhor. Se não consegui o que queria, esforço não faltou.

Todas as crianças eram negras. Por mais que o preconceito pudesse indicar, não eram violentas. Não entraram no ônibus para cometer delitos.

Dentro do Rio Sul, dois menininhos brincavam com o pai na porta da Taco. Riam. Quinhentos metros atrás, dez crianças saboreavam o ballet da morte. Não sei dizer quantas sobreviverão ao massacre das ruas, a uma nova Candelária a conta-gotas que acontece diariamente, a tantas desgraças.

Mesmo alijada das condições mínimas de sobrevivência e completamente drogadas, aquela garotada não questionou uma ordem firme. O que poderiam ser com carinho, estudo, comida, roupa, brinquedos?

Não consegui ver disco algum. Logo voltei para casa. Nada de táxi: um 126, as garotas voltando da praia. 

Nós tratamos muito mal o futuro. Depois é fácil demais colocar toda a culpa em um ou dois. Ou no PT.

@pauloandel

cativa

o que
você não
cativa é o que
escorre por entre
os dedos ou voa livre
pelos céus da liberdade
até pousar em mãos de afeto

@pauloandel

brotherhood

Quando Matheus acordou no domingo de manhã, sua namorada Safira tinha uma pressa enorme para chegar ao trabalho. Banho tomado, correria, beijaram-se, ela se despediu e tomou um táxi no adormecido coração da cidade para Copacabana.

Ele voltou a se deitar, cansado mas sem sono, dolorido pela noite anterior mas atento. Ligou o aparelho de música, ouviu discos de soul e jazz.

Por volta das dez da manhã, sem compras feitas, resolveu tomar café numa lanchonete da esquina. Ao descer do elevador, João, o porteiro, avisou-lhe que seu irmão, Pedro, havia passado na portaria horas antes. Perguntou por Gílson, o antigo funcionário do prédio que pediu demissão no ano anterior. E também por Matheus.

Como Pedro tinha sinais de embriaguez, João preferiu não incomodar Matheus no interfone e disse que o morador havia saído. Por conta própria, resolveu a seu modo, tentando poupar o condômino.

Não sabia da besteira que cometeu.

Há cinco anos que Matheus e Pedro não se viram e sequer trocaram uma palavra. O irmão foi embora de casa alegando ter engravidado uma namorada e que ia morar com ela, tudo subitamente, talvez uma desculpa para querer ter uma vida livre, sem satisfações nem cobranças no apartamento em que os dois residiam após a morte dos pais - Matheus sempre foi contra violência e drogas - ninguém abandona um irmão apenas porque se tornará pai. Simplesmente Pedro pegou suas coisas de um dia para o outro, não deixou telefone nem endereço, nunca mais deu notícias. Matheus respeitou sua vontade, mesmo em completa discordância. Os dois são os únicos parentes próximos vivos da família. Perderam todo o contato. Matheus, mais velho, passou noites e noite temendo pela vida do irmão, que estivesse em más companhias ou numa vida vertiginosa. Chorou e sofreu.

Cinco anos depois, alcoolizado e provavelmente vindo da Lapa, a boemia próxima à casa de Matheus, Pedro pode ter tido apenas um lapso. Uma doideira. Talvez a noite virada e o álcool lhe fornecessem a coragem para lidar com uma ferida aberta, dolorosa e desnecessária de sua vida. Talvez fosse a grande chance de Matheus rever o irmão querido. Mas não aconteceu: em nome da ordem, João fez o que lhe parecia certo. Não era.

Matheus, educadamente, pediu ao porteiro para que, numa próxima oportunidade, não deixasse de interfonar de forma alguma. Saiu do prédio, foi à lanchonete, comeu um misto quente sem o prazer devido. Resolveu voltar para casa. Pensou em Pedro e chorou. A tristeza e o temor, sem exagero, de que pudesse ter se tornado um dependente químico. A alegria de saber que, anos depois, o irmão está vivo e caminha com suas próprias pernas, mesmo trôpegas.

Matheus chorou. Não culpou João. A vida é assim: um intervalo para sonhar enquanto uma dor rói a alma. E a esperança de que o talvez não se torne o nunca. O quarto semiescuro e o teto que parece sem estrelas são seus confidentes. O ventilador ligado lhe dá ar gelado e sinistro. Há um silêncio e um vazio enormes. 

@pauloandel

Thursday, April 03, 2014

urbe coração

alguma coisa desanconteceu
num coração da urbe ao léu
e o mundo num segundo vil
se fez ausência, vazio, traço:
o amor inerte rejeita um som

anjos do asfalto atordoados
a solidão às veias esquálidas
a indiferença dos massacres
cada um por si e o deus além -
o amor fenece e desfaz o som

bom dia, boa tarde, goodnight
quero dar um tapa so big style
num embalo duma noite flácida
batalhões de estranhos íntimos:
a suruba dos sentimentos ocos

alguma coisa desaconteceu cruel
o amor que fugiu no porta malas
o e-mail que explode numa lixeira
a conversa que perdeu certo nexo:
o fim da linha num suicídio tímido

@pauloandel

(sobre "Pros que estão em casa", Hojerizah, 1984)