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Monday, February 28, 2022

Brincadeira

Por um momento tive saudades de brincar feito criança. Isso não tem nada a ver com imaturidade - muitas vezes ligada a certa postura sisuda - nem com voltar no tempo, nem saudosismo. A vida é uma estrada que devemos atravessar. Tudo tem seu tempo. Ok, mas desconfio que as pessoas capazes de manter a chama da infância no coração têm mais lapsos de felicidade. 

Brincar, brincar, eu brinquei muitas vezes sozinho. Acho que até menos do que deveria. Não que não tivesse colegas, é algo que não sei explicar ao certo, mas brinquei pouco em grupo. Embora seja divertido demais, eu não via botão como brincadeira, era algo muito sério no começo, ficando mais divertido e galhofeiro com o tempo. E o futebol era a mais séria das brincadeiras, na praia, na quadra, no playground e na vila. 

Brinquei muito com carrinhos Matchbox sozinho. Não tive muitos, eram caros nos anos 1970, mas tive. Lembro de uns bonecos pequenos de borracha que eu adorava, o Hulk, o Capitão América, eram muito legais. E as miniaturas de plástico que meus pais compravam nas Lojas Americanas e Brasileiras. 

Uma vez fiquei louco de alegria. Morávamos no alto da rua Santa Clara, num prédio que não existe mais, quando meu pai chegou cedo da loja num sábado e me falou para que eu tomasse banho porque íamos sair. Foi um passeio dos deuses: descer a rua toda até a esquina com Avenida Copacabana, virar à direita e tum: Lojas Brasileiras. Certamente eu ia ganhar algum brinquedo e, de quebra, fazer o melhor lanche daqueles tempos: fatia de pizza de mussarela maravilhosa, que hoje só o BB Coliseu no das Massas tem. Que delícia! Isso tem 47 anos e eu nunca esqueci o gosto. Ainda ganhei um bonequinho do Zorro, pequenininho, devia ter menos de dez centímetros de altura mas era o poderoso Zorro, todo de preto. Uma grande tarde. 

Brincar é criatividade. Noutra ocasião, meu pai chegou em casa e trouxe um pneuzinho para mim. Uma rodinha de borracha que bem lembrava um pneu e só. Como brinquei com aquilo. Girava, dava voltas, inclinava. Talvez me lembrasse uma bola de futebol, minha paixão. Talvez fosse algo diferente, mas eu gostava muito. 

Anos mais tarde, quando já era adolescente, lembro também que já sentia falta de brincar nos tempos em que era escoteiro. Muitas vezes, a ronda noturna ficou comigo. Em meio ao silêncio profundo das noites no campo, às vezes cortado pelos bichos da região ou o vento, tudo sugeria seriedade e uma certa solidão, mesmo com 50 ou 60 jovens dormindo nas barracas ali ao lado. E em todas aquelas noites quase solitárias eu sempre senti falta de ser criança, de estar brincando mesmo sendo ainda muito jovem. É um outro tempo que merece muito carinho. 

Assim sendo, em meio ao Carnaval só para alguns, eu viajo meio século no tempo, recordo aquela rodinha - tanto faz se o brinquedo é cariou baratísssimo -, os velhos botões, aquele cheiro da pizza e minha pequena emoção é mais pela felicidade dos pequenos momentos. Sem pai nem mãe, com a corda no pescoço e num país de mil guerras, meu brinquedo agora é o debate sobre futebol na TV. Há várias guerras, por toda parte, mas o pessoal só se comove com o discurso da metrópole. Deixa estar. 

Vejo os bonequinhos como se estivessem todos ao meu lado. Doce ilusão. 

Lojas Brasileiras? Nunca mais. 

Ah, a rodinha! 


@pauloandel 

Sunday, February 27, 2022

estranho carnaval

UM

Há tempos, as coisas andam fora da ordem. Não que o mundo fosse grande coisa antes da pandemia, mas o ruim piorou bastante. E se o caso é Pindorama, multiplique por quatro ou seis.

De berda em berda, de galho em galho, chegamos a 2022. Há guerra no mundo, nenhuma novidade e nenhuma exclusividade do confronto Rússia versus Ucrânia - nesta semana vários países foram bombardeados mas no Brasil ninguém sabe, a não ser o mais badalado. O resto a gente varre para debaixo do tapete. 

O espetáculo da morte estrangeira na TV é tão grande que os mais distraídos se esquecem das nossas desgraças cotidianas. Afinal, continuam caindo três aviões lotados de covid-19 por dia no Brasil. E a nossa guerra urbana de décadas envolvendo o tráfico, a milícia e a polícia? Tem bomba, fuzil, escopeta e carnificina, mas uma parte da turma finge que nem tá aí. Fazemos cara de paisagem, choramos (justamente) pelos mortos do outro lado do mundo e desprezamos a nossa pilha de cadáveres no morro ao lado. 

Por incrível que pareça é Carnaval. Ou quase, adiado que foi. Foi proibido no Sambódromo, furaram a fila na Zona Sul e a folia comeu solta. Parece que no Porto Maravilha também. Adiamento? Pra norueguês ver. As fotos do Facebook e do Instagram e do Facebook não deixam dúvidas. Infelizmente é a sina: como sociedade, somos bagunçados e indiferentes a tudo. A velha história do homem cordial do pro espaço. 

Nao que eu seja um folião, longe disso, mas é legal ver os desfiles na TV. E para quem mora perto do Sambódromo, faz falta ouvir o foguetório de hora em hora anunciando as novas escolas na avenida. E os bailes de antigamente transmitidos ao vivo? Tudo acabou. 

Por um instante tudo fica para trás no fim da noite de domingo. Na TV Senado toca o excepcional pianista Gilson Peranzetta, acompanhando ninguém menos do que a mitológica cantora Leny Andrade. Dois monstros da música brasileira soando como o bom e velho jazz, capaz de unir a todos. Ok, carnajazz que a gente merece. Quando cantam "Saigon", vira Seleção Brasileira: Paulo Cesar Feital na letra, a lembrança inevitável de Emílio Santiago na voz. Leny Andrade é a maior cantora de jazz do Brasil, Gilson Peranzetta é um dos maiores arranjadores da Terra. 

Num instante a terça-feira desaparece, a quarta-feira de Cinzas não tem cinzas. A vida volta ao novo normal, com toneladas de miséria em cada esquina. Não há empregos nem dinheiro, mas navegar é preciso. Não tem desfile das campeãs, ficou tudo para abril. O que está à frente são as águas de março, românticas e perigosíssimas - mal saímos da tragédia de Petrópolis. O problema é que não memorizamos nada direito, tudo passa rápido demais e vamos esquecendo a cada 15 dias os 15 dias anteriores. 

Sigamos em busca da sobrevivência, torcendo ardorosamente para todo mundo aguentar o rojão até outubro. Entendedores entenderão. 

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DOIS

São seis horas da manhã e nada tenho a ver com a velha e boa canção da Gang 90. Seu criador, o poeta Júlio Barroso, morreu há quase trinta anos. Ele faz falta. 

Não acordei. Na verdade não dormi. Cochilei. Despertei às três e meia, revi a reprise de Leny Andrade, revi Afogados x Náutico e, quando me dei conta, o céu já era alaranjado, prestes a explodir o sol nas vistas sensíveis e tirando de vez a chance de descanso para pessoas feito eu. 

Por vários motivos sou uma das pessoas mais tristes do mundo e pode ser que isso me leve à morte, mas não agora. Meu país me dá muita tristeza, as pessoas boas, as muitas ruins, as falsas, a minha família extinta. Eu sou o último grão de areia de nomes que desapareceram, absolutamente desimportante para mudar as coisas na Terra e lutando por uma sobrevivência que parece inútil. Isso não me impede de trabalhar nem de produzir coisas legais, mas me instiga a uma pergunta permanente: o que é que eu ainda estou fazendo nesse lugar cheio de escrotidão? Não sei. Sinceramente não sei. 

Queria ouvir um disco, mas estou sem aparelho. Ler um livro, mas está me faltando paciência. Queria comer menos, dormir mais, ter alguma diversão. O mais incrível nesse lugar é que sou um privilegiado, mesmo sem dinheiro, casa própria, carro, plano de saúde e direitos trabalhistas, logo eu que, por mais de 20 anos, trabalhei para que muitos profissionais tivessem seus salários devidamente corrigidos. 

Por incrível que pareça, hoje é segunda-feira de um Carnaval pela metade. Era para as pessoas não aglomerarem, mas se elas não ligam para si próprias, o que fariam pelos outros numa hora dessas? 

Na TV está passando um gol da Portuguesa. Eu escrevi o livro do time. Um idiota disse que o livro foi um fracasso, eu entendo que idiotas devem ser desprezados. 

Meu joelho direito está doendo. Estou muito pesado. É um problema de saúde, mas sempre tem uma besta para me chamar de preguiçoso sem saber o que acontece. São esses que votam em milicianos. 

O BRT voltou. O Circo Voador foi interditado. Para quem conseguir, feliz ano novo.







Thursday, February 24, 2022

a tempestade

São quase seis da manhã e a cidade acorda lentamente, com bem menos gente do que de costume - estão quase todos desempregados, muitos não saem do que sobrou de suas casas, há um clima permanente de que está faltando alguma coisa.

Perto de dois anos de pandemia, morrem quase mil pessoas por dia mas a maioria não está nem aí. Naturalizaram o processo de carnificina, o que não é de hoje. Se não ligávamos para os esfomeados, os sem teto e os junkies, por que nos comoveríamos com COVID-19? No fim, o que ficou valendo foi o discurso da besta-fera: "todo mundo vai morrer". Na terra da indiferença, o outro que se dane. É o jeitinho. 

A guerra prevalece do outro lado da Terra, mas quem disse que não a temos bem diante de nossos belos narizes? Ela está por toda parte, e não adianta fingir que não se trata da ganância capitalista. Lembra uma doce canção pop dos anos 1980: "proliferando ódio e destruição". 

Somos cruéis, muito cruéis. Capazes de matarmos uns aos outros por causa do futebol. Na primeira estupidez dita numa live qualquer, despejamos rancores na cara de todos. Em nome da justiça e da moral, humilhamos, ofendemos, agredimos verbalmente e aproveitamos para vomitar nossos recalques nem sempre enrustidos. Nós somos os cavaleiros da verdade haja o que houver, mesmo que esteja em campo a hipocrisia - condenar nos outros a escrotidão que desfraldamos com nossas bandeirinhas de mão. 

Muitos de nós ainda acreditam em verdadeiros estelionatos. Qualquer arminha basta para que a negligência desfile em seu carnaval particular. Quem nunca teve um dito amigo a dizer "A culpa não é minha, eu não vou mudar o mundo, ele já era assim quando nasci"? Não é de hoje. "Biado tem que morrer!", "Tem que tacar uma bomba na cavela e matar tudo". A solução simplista está nos discursos por toda parte: o outro que se phoda e pronto. 

Coitado de Deus. Em nome dele, homens podres e hipócritas promovem os discursos mais bárbaros e cínicos, debochados. Gente enganando gente com discursos baratos que não se sustentam. 

E ficamos a esperar o novo problema na linha do trem, o reconhecimento das vítimas apenas no IML na hora da desgraça, a corrupção gigantesca com a desculpa do combate à corrupção. A nova tempestade com suas vítimas fatais. A nova guerra mundial que vai gerar lucro para poucos e tragédia para muitos.

"A próxima versão vai solucionar todos os problemas anteriores". É muita vontade de acreditar. 

Quinta-feira, um lindo dia de sol mas pode chover a qualquer momento. Tanta gente desmaiada debaixo das marquises porque simplesmente não consegue dormir por medo de assassinato e/ou estupro, mas é muito mais fácil chamar todo mundo de vagabundo, especialmente se você tem papai e mamãe bancando suas contas.

Nunca se leu tanto no Brasil. Nunca foram produzidos tantos livros. Nunca se publicou tanta berdha. 

Calhordas ditos liberais comemoram o empreendedorismo das grandes caixas de isopor nas costas, da bicicleta alugada e das 14 horas diárias em subempregos, até que o nobre trabalhador atravesse 50 quilômetros da cidade e descanse na paz de seu barraco - na verdade desmaie e desperte com o relógio tremulando. 

O que importa é lacrar. Aparecer. Por likes, tem quem alugue a mãe morta, não importa. Somos os cavaleiros da verdade irrefutável. Mentimos na Justiça, na Polícia e na Receita Federal. Vamos vencer!

Uma em cada sete pessoas da Terra não tem sequer água, mas muitos de nós afirmam que o mundo é desenvolvido. Afinal, que diferença faz se dois bilhões de pessoas mal respiram? 

A culpa é sempre do outro. O pênalti roubado a nosso favor a gente esquece. O troco a mais também. 

"Bom dia. Afaste-se de toda negatividade e seja firme em seus objetivos".

Enquanto isso, os sonhos são destruídos.

Felizmente a arte resiste.

@pauloandel

Tuesday, February 15, 2022

Um dia de fevereiro

Acordei, tomei café e soube da morte de Arnaldo Jabor. Ele era muitos num só. O cineasta era sua faceta que eu mais admirava, ao contrário da de cronista, mas isso não tem nenhuma importância porque é apenas a minha opinião. Fato é que a figura de Jabor esteve sempre em minha vida desde pequeno, de modo que é lamentável sua perda. Aos poucos, aqueles adultos que eu tentava compreender quando era criança vão se despedindo, porque o tempo é implacável e vence todas as batalhas. 

Foi embora o cineasta, deixei pra lá o artículista. Acabei o café e fui para o trabalho presencial. No dia que o lucro for bom, será a melhor ocupação do mundo: ouvir música, pesquisar discos, arrumar livros. Levei John Coltrane e Ruben Gonzalez para ouvir. Estou de olho no fabuloso CD do Tenório Jr, que ninguém comprou ainda. A tarde foi rápida, vendi Iron Maiden, Bill Evans, mais alguma coisa boa.

Saí às cinco, atravessei a Praça Tiradentes e peguei o VLT só para me divertir - é bom demais. Num minuto eu já estava na Casas Pedro, onde comprei uma suculenta pasta de grão de bico e champignons para fazer um sanduíche árabe em casa. Na volta, caminhei por cinco quadras silenciosas até chegar em casa e descansar um pouco. Banho, lanche, Marina, celular carregando e a tragédia de Petrópolis. Há muito tempo o Brasil humilha pessoas, especialmente as mais pobres. Ok, choveu muito, é a natureza mas não dá para culpar exclusivamente o imponderável: todo ano vemos N tragédias acontecendo em chuvas de verão. 

Fiz uma live sobre o Fluzão, depois fui trabalhar postando CDs e LPs nas redes sociais da loja. Fizemos algumas vendas. Marina dormiu. O silêncio completo ganhou as ruas da Cruz Vermelha.

Meia noite. A terça-feira acabou. No telejornal, Jabor aparece novamente. Silvio Tendler o define com maestria: "É uma perda muito grande, porque a gente perde o contraditório". Meu amigo Bigode, outro prócer do cinema, o homenageou no Facebook. Gerald Thomas também (e ainda não acredito que ele topou colaborar com meu livro sobre Copacabana). Ricardo Soares, autoridade literária, destacou bem o papel de Jabor. 

A tragédia de Petrópolis ocupa a tela da televisão. Há muito sofrimento. Que venha a cura. 

Para tentar me distrair, recordo a conversa à tarde com uma amiga querida, tudo pelo WhatsApp e suas brevidades. Falávamos de recalques alheios e ela me contou que uma colega havia reprovado uma foto sua exclusivamente por causa do decote, que era normal, respeitável e admirável. A única coisa que me veio à cabeça foi uma certa frase, do único personagem possível para costurar todo o roteiro escrito até aqui, com perda, tragédia, o cinema de Jabor, o Fluminense e uma sugestão de belo decote: Nelson Rodrigues. 

A frase? "Toda nudez será castigada".

Monday, February 14, 2022

Copacabana no elevador

QUINTA-FEIRA, PERTO DAS 15 HORAS 

Bloco E, Shopping de Copacabana, aka Shopping dos Antiquários

Você abre a porta e dá de cara com um paletó de lantejoulas azuis, uma cabeleira black e o bigode que, juntos, formam uma das estampas mais famosas do Brasil: a de Cauby Peixoto. Então dá boa tarde, recebe a réplica em voz de trovão e finge que está tudo bem porque em Copacabana ninguém se emociona com celebridades - só louvam Clóvis Bornay e Rogéria nesta terra. Fica em silêncio, o grande cantor não diz nada também porque não puxaria conversa com um garoto de catorze anos. Dois minutos depois, o elevador está no térreo, vocês saltam, Cauby passa na porta dos famosos Supermercados Leão e ninguém fala nada também (embora, claro, todos estejam diante de uma lenda da música popular brasileiras - e com um paletó de lantejoulas azuis!


QUALQUER NOITE, DEPOIS DAS 23 HORAS

Você espera o elevador no térreo e, de repente, está a seu lado um dos grandes jogadores do futebol brasileiro: Rodrigues Neto, Flamengo, Fluminense, Botafogo, internacional, Seleção Brasileira, também no Ferrocarril Oeste da Argentina, onde ganhou o apelido de "El Negro Neto". 

Abre a porta e ele faz um cumprimento respeitoso sem dizer nada. Só que o cheiro não engana ninguém: rolou um pileque poderoso. Rodrigues Neto tem encarado dias difíceis: além de jogar, é o treinador da famosa Cooperativa do São Cristóvão. Deve ter afogado as mágoas porque não está fácil para ninguém. 


QUARTA-FEIRA, 11 DA MANHà

Desce Dona Estela. Una oitenta anos talvez, com seu marido de uns trinta e cinco, Marcos. Um amor daqueles que não tinha tanta probabilidade assim. Ela vai lentamente a caminho dos Supermercados Leão, ele fica na portaria. 

O porteiro não perdoa: "Seu Marcos, a Dona Estela já ficou viúva sete vezes. O senhor não tem medo não?"

"Não, cada um tem um destino".

[mentira, tá se cagando de medo

Marcos dá tchau, vai para a Siqueira Campos e se manda. Por via das dúvidas, pegou o contato de uma mãe de santo, para calcular os novos tempos e, no pior cenário, fica de olho nas proximidades e desdobramentos plausíveis.


O GRANDE ATOR, 23:45 HORAS DE QUALQUER NOITE

Carregando uma sacola de compras das Casas da Banha, jornais e um livro, o ator Walmor Chagas entra no elevador do Bloco E e sobe tranquilo para o 13° andar, sozinho e anônimo porque o porteiro, embora o conheça há tempos do prédio, não tem a menor ideia de quem se trata. 

Página eterna do cinema, teatro e TV, ali Walmor é apenas um condômino chegando em casa, num andar que possui 16 apartamentos. Cada um deles possui histórias, dramas, loucuras e contradições que cabem em Copacabana, porque é no bairro que tudo se mistura e contradiz o tempo inteiro. Walmor se alimenta delas para oferecer a sua grande arte aos brasileiros. 

O ator abre a porta do terceiro apartamento à esquerda do hall dos elevadores, larga as coisas em cima do sofá e vai para a janela. Vê a igreja em forma de cúpula lunar no terceiro andar do shopping, o quartel da PM e o posto de saúde. Carros passam em alta velocidade na Rua Tonelero, um ou outro 433, com certeza um 415, todos a caminho da beleza da Lagoa Rodrigo de Freitas. Há quase silêncio no bairro que nunca se cala.

palcos cariocas

ANDANDO pelo Centro e sonhando com grandes shows que sempre dominaram o pedaço. Eu trabalho na praça Tiradentes e, da janela da minha loja, vejo de frente a beleza perdida do Teatro João Caetano, quando muito funcionando à meia boca. Saindo da portaria, na primeira esquina à esquerda fica o Teatro Carlos Gomes, que desde 2020 só funcionou temporariamente como posto de vacinação na pandemia. E pensar que, em na ambos,assisti João Donato, Altamiro Carrilho, Jarda Macalé, Jorge Mautner, Quarteto do Rio e outros. 

Onde foi parar a maravilhosa Sala Sidney Miller? Lá por 2007, 2008, era parada obrigatória dos fãs da boa música, com shows de alta qualidade, conforto e preços populares. Antes da entrada você podia fazer um lanche esperto no Itahy, delicioso joelho com refresco. Na saída, os CDs dos artistas eram disputados a tapa pelos fãs e colecionadores. O Estado Maior da sofisticação musical brasileira passou pela Sidney, e até mesmo craques da música internacional como o jazzman Gabrielle Mirabassi. 


Duas quadras depois, é de doer a visão da antiga sede da Caixa Econômica fechada. Além da imponência do prédio, o século XXI foi brindado com a Caixa Cultural, que por vários anos foi uma potência de teatro, música, cinema e artes em geral. Hoje, a entrada se resume a tapumes e mais nada. 


Dezenas de metros adiante, ainda existe esperança na volta do Teatro do BNDES, com grandes shows musicais às quartas e quintas, misturando nomes consagrados e alternativos. Espero que o novo Governo reative o palco em 2023.


Isso tudo sem contar a efervescência dos shows nas ruas. Ângela Rô Rô e Totonho já tocaram em pleno Largo da Carioca. Na Praça XV, Boca Livre, Jair Rodrigues e tanta gente boa.


O Boulevard Olímpico teve grandes artistas no palco. Antes de partir, Elza Soares fez uma grande apresentação por lá, Tom Zé também.


Por enquanto o que ainda se vê é tristeza, ruas vazias e palcos fechados. É preciso derrotar o COVID e também os inimigos da arte. Há muito a ser feito.


Wednesday, February 09, 2022

o estrangeiro

Cai a noite no coração da melancólica Guanabara, que perdeu até suas papelarias tão encantadoras para o poeta Carlito Azevedo. 

A Leiteria Mineira quase sucumbiu mas resistiu, para a alegria do cineasta Luiz Carlos Lacerda. 

O Copacabana Palace abre suas portas para uma noite de latin jazz, bem perto do Beco das Garrafas, palco de histórias da arte. 

E eu escuto Albert Ayler, vejo Leandra Leal na TV em silêncio e penso nas derrotas do dia. 

Um garoto preto pobre preso com um pacote de mão e uma camisa do Flamengo. 

Um garoto triste e sofrido dormindo na estação Sete de Setembro do VLT. 

Olho para o WhatsApp e leio as falas cínicas de um homem de Deus.

Que ora, jejua, sobe montes e mente também. 

Troco Ayler por Prince e lamento sua morte tão precoce. 

Lendo Ruy Castro e Assunção, apoiando o embate. 

A linda baiana Emily há muito se foi da vizinhança. 

E Dona Marina está longe, bem longe em Paciência. 

Então revejo haicais do poeta Jocemar Barros e cartões postais de Ana Klein também. 

Onde está Keith Jarrett? Onde está Joe Jackson? Onde está Ben Harper? O mago Wayne Shorter se recolhe muito bem. 

Penso no pré-sal que roubaram do povo triste e usaram em bel prazer. 

Os hipócritas são felizes demais e não se importam com o mal que criam. 

Eu quero a baleia do Parque Peter Pan de volta ou pelo menos a minha prancha de isopor para turistas. 

Eu quero meus doze ou quinze anos de idade numa terra com bem menos ódio. 

Eu quero o fim das guerras, da escrotidão contemporânea. 

O maestro Gerald Thomas redime minhas tardes com seu contrabaixo arisco. 

E penso em gente amontoada debaixo de marquises vizinhas. 

Choro pela minha pátria mãe em prantos diante de tanta covardia. 

O poeta Allen Ginsberg ainda está vivo por sua obra tão devastadora. 

Deus não está desatento dos pastores covardes, nem pretende baixar na esquina. 

A TV num súbito encerra a série e pouco se tem a dizer de Leandra tão linda. 


@pauloandel

Saturday, February 05, 2022

Jazz

Onze e meia da noite de sábado, o mundo inteiro está atrás da Blitz no Circo Voador - igualzinho há 40 anos - e eu, um dos últimos otários que pensa no próximo e evita aglomerações mesmo com três vacinas, encerro meu expediente de trabalho, tomo banho, deito, falo com meu amor pelo WhatsApp e, para me distrair, espio a Orquestra de Duke Ellington tocando na Sala São Paulo. O show é excelente - e olhe que o meu jazz ideal é 1959-1980. Gravaram na Sala em outubro de 2019. Ellington, que antes de ganhar o mundo vendia amendoins em jogos de beisebol.

Aquele som tem um charme, uma elegância difícil de definir. Duke era realmente um gênio, um sujeito especial e não é à toa que outro gênio era completamente louco por ele: Charles Mingus. Dois craques completamente distintos: Duke, um lorde e Mingus, bem, porrada pra toda obra. Ambos já se foram há décadas mas continuam vivos demais, com suas artes demolidoras.

Para quem é do ramo, pouco importando se é especialista ou simpatizante, o fato é que o jazz instiga e apaixona: quem ouve uma vez e gosta, não larga nunca mais. Você vai procurando um músico, outro, outro e outro numa busca interminável é gente demais.

A Sala São Paulo é linda. O mar de sopros ataca para todo lado. O ventilador turbo me oferece um ventinho confortável antes do lanche. É um fim de sábado, neste domingo tem Fla x Flu. Meu amor tá longe. Sinto uma  tristeza enorme pelo garotinho do Marrocos, tão pequenininho, sofreu tanto em sua curtíssima vida, Jô, ninguém deveria passar por isso - nem ele nem a família. 

O jazz da TV é minha igreja, minha oração e pregação - é o que sobrou desde os tempos em que eu era rapazote, estudando na UERJ e ouvindo o programa do Jô Soares na Rádio JB FM num walkman vermelho - faz 30 anos. Jô sempre curtiu o jazz da velha guarda, Gene Krupa, Buddy Rich, Jack Old Teagarden, as feras de sua juventude. Aprendi muito com ele, ainda aprendo. 

@pauloandel.