Reprise: Setembro/2020
É fato que tenho chorado muitas vezes neste século e no outro que me cabe. São os que tenho e que me restam.
Tem sido assim desde criança, quando vi minha mãe chorar ao ver uma jovem mãe chorando com sua pequena filha, bem em frente ao Cine Metro, desprezada pelo grande público que saía da sala.
Ou quando meu pai, num ataque de desespero, quebrou tudo em sua última loja numa véspera de Natal, aterrorizado pela miséria à vista.
Também porque ficava nervoso a cada prova da escola para não perder a bolsa de estudos, mesmo que ninguém me cobrasse em casa.
Ao ver a jovem mulher negra andando de quatro por suas limitações físicas, sem direito a uma cadeira de rodas no meio de Copacabana.
E o homem debaixo da marquise perto da porta do shopping, numa cadeira de rodas e usando uma sonda, enquanto seu filho dormia no chão de pedras portuguesas.
Chorei de alegria pela primeira vez na vida quando passei na segunda versão do vestibular anulado. Eu tinha passado antes, era a única chance de mudar minimamente a minha vida. Foi difícil mas deu certo.
E quando me despedi da faculdade. Revejo minhas lágrimas descendo a escada em vez das rampas, que sempre usei.
Muitas vezes no Maracanã lotado ou vazio, sem que ninguém percebesse do meu lado.
Em grandes shows de música, filmes, exposições artísticas ou numa mesa de bar.
Olhando a cidade e lembrando das grandes cenas de geografia, tanto as da praia quanto do subúrbio.
Chorei quando consegui meu primeiro emprego de salário digno. Não se repetiu quando saí, muitos anos depois.
Chorei quando me senti traído ou usado por pessoas falsas, ou por constatar que alguns amigos não eram lá tão amigos assim.
Por Tatiana, Alessandra e Juliana. Por Fred, Xuru e João. Pelo Marcão.
Desde criança chorei na cama que me abriga, a mesma onde nasci e meus pais morreram. Também pelo meu irmão.
Chorei pelas corridas que nunca mais pude fazer, pelo futebol que nunca mais pude jogar. Pelo medo de morrer sozinho e infeliz como nunca.
Pelo país, pela cidade, por meu amável bairro perdido cujos habitantes só vivem em minhas lembranças.
Pelo botequim da adolescência.
Pelos cariocas, fluminenses e brasileiros, tanta gente admirável, honesta, trabalhadora e humilhada diariamente.
Chorei por conviver com péssimos seres humanos que se autoproclamavam doutores, quando na verdade eram empresários fascistas de merda.
Posso ter chorado nas raras vezes em que reli trechos de meus próprios livros, não acreditando que o motivo da emoção fosse algo que eu mesmo escrevi.
Chorei pelas guerras inúteis, que matam e destroem por nada, pelo prazer do ódio.
Chorei por muitas injustiças que sofri, a maioria vinda de pessoas para as quais estendi a mão, o coração e os gestos. Essa vergonha não é minha.
Já chorei em grandes avenidas, hoje mortas, pensando em seus admiráveis personagens, hoje todos esquecidos.
E pelo sofrimento das pessoas humildes, muitas vezes manipuladas, incapazes de perceber que colaboram para seus algozes.
Chorei porque há muito tempo vi crianças chorando num orfanato, querendo que eu as levasse comigo, mas eu não tinha como.
Dia desses chorei porque passei pelo centro da cidade, bem nas entranhas desconhecidas, e vi que muitos populares ainda moram em cortiços.
E por ter relido o ódio da classe média pelo famoso cortiço "Cabeça de Porco", que resultou na desgraça infinita de quatro mil pessoas.
Ao ver fotos de judeus sofrendo em campos de concentração, porque eu poderia ser um deles.
Crimes horríveis, hediondos, muitas vezes cometidos por "pessoas de bem" com a benção dos hipócritas.
Por saber que muitos suicídios têm ocorrido porque as pessoas são apedrejadas por conta da cor, sexualidade ou pobreza.
Pela obesidade também. Muitos riem.
Ver o esgoto moral de alguns governantes brasileiros a céu aberto, in natura, e toda a farsa que destruiu o bem estar de muitos pobres.
Chorei por ter vergonha de feras assassinas.
Choro porque conheço a vida. A vida.
@pauloandel