Com um histórico impecável de serviços prestados à musica popular brasileira, para ela está como Pelé para o nosso futebol: um embaixador indiscutível e permanente.
Silencioso, sempre recluso, cercado por pequenos contos de realismo fantástico, João passaria absolutamente em branco na data de hoje, não fosse a resistência do jornalismo cultural brasileiro, que o louva a cada primavera.
Provavelmente não fará mais shows. No Brasil, eles sempre foram raros por natureza. Já o mundo pôde ouvi-lo e aplaudi-lo em muitas ocasiões. A sina de muitos dos maiores artistas brasileiros, muitas vezes reconhecidos em idiomas diferentes, mas pouco valorizados em língua portuguesa – aliás, ela mesmo, a língua, anda fora de moda entre seus usuários.
João começou com um discípulo de Orlando Silva, com vozeirão. Gravou e não deu certo. Depois voltou como o que ouvimos até hoje. Sua mistura inconfundível de afinação com samba quebrado - e as cordas do violão substituindo vários instrumentos de percussão - fez nascer o que chamamos de Bossa Nova. “Limpou” o samba, deixando-o minimalista. E mudou a arte do Brasil para sempre. Influenciou todos os gigantes, gravou com eles e foi gravado/reverenciado – especialmente por Caetano e Gil. Embora uma música tocada por João seja “dele”, com o seu estilo peculiar, escreveu pouquíssimos temas e sempre valorizou os compositores do passado, alguns desconhecidos e muitos que nele tiveram seus registros definitivos.
Do artista, pouco se sabe além de seu trabalho fantástico. Do homem, menos ainda. Mas saber que seu talento guiou alguns dos nossos maiores artistas é um dos nossos triunfos.
E a reclusão? Pode haver um motivo ou vários, muitos delirantes e alguns razoáveis. Mas o recolhimento de João Gilberto foi aumentando à medida que o Brasil foi ficando mais estúpido, grosseiro e individualista, até chegar ao que vemos agora. Quando vemos os retrocessos diversos nas questões da Cultura, da diversidade, das verdadeiras piadas de mau gosto representadas por nomes como os de Alexandre Frota e Lobão, é justo que o silêncio gilbertiano prevaleça – e é uma ironia que o decadente roqueiro, sempre a vociferar e desfraldar bandeiras de ódio, tenha sido gravado por João Gilberto (“Me chama”), embora tal fato tenha ocorrido quando aquele ainda era um músico.
Temos um tesouro escondido neste país há décadas. Ainda não soubemos entender sua delicadeza, sua obstinação pela perfeição, sua dignidade artística. O artista tem direito ao silêncio, mas o público deveria aplaudir de pé.
O Brasil da beleza, sofisticação e doçura é o Brasil de João Gilberto. Experimentem. Parece tarde, mas ainda há tempo.
@pauloandel