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Saturday, December 30, 2023

Para os que estão no smartphone

Acabou o ano. Mais um. 

É claro que não queremos pensar, mas os versos de Gil são cruciais: "Vivo pra cachorro e sei/Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro/Em meu caminho inevitável para a morte".

Pra mim, individualmente, foi uma boa erda. Dos piores. Mesmo assim, não deixei de aprender e fazer várias coisas, mesmo com um revólver apontado para a própria cabeça por essa vida injusta. Também foi pra muita gente, mas por aqui fingem contar vitória e vantagens. 

Vi shows bons, jogos bons, amei de longe, meu time foi campeão. Filmes bons. Fiz boas conversas com meus colegas do Fluminense, com intelectuais e artistas. 

Também passei muitos dias de humilhação e tristeza em silêncio e jamais, jamais, perdoarei a quem poderia atenuar essa dor mas preferiu a omissão. Não desejo qualquer mal, nem bem. Do resto a vida se encarrega. Nem quero pensar nisso, porque já vi pessoas que me fizeram muito mal sofrendo muito a seguir, inclusive até a morte, e eu não quero que ninguém sofra. Esse, por sinal, é um dos motivos da minha distância das religiões: o que sinto e vejo. Muitas vezes percebi uma pessoa ruim só pelo seu cumprimento de bom dia.

Fiz três grandes livros, sem uma gota de falsa modéstia. Dois deles são bibliografia obrigatória do Fluminense, ambos com diversos colaboradores vivos e mortos. O outro, Alma, já tem uma galera prestigiando e elogiando. Pouco importam sabotadores de quinta categoria: os livros chegam a milhares de pessoas, direta ou indiretamente. Aliás, um tema recorrente: "O Fluminense não te reconhece". Escrevo para a torcida, para o torcedor feito eu, não para Chiquinhos Zanzibares. E não preciso do reconhecimento de quem não tem estofo intelectual para avaliar a dimensão da minha obra com mais de 20 livros - no clube, hoje, ninguém é capaz disso.  Simples. 

Tive certeza de que 90% dos bozos são muito piores do que pareciam, mas também que muita gente usa a fachada de esquerda mas, fora das redes sociais, é tão podre quanto os que criticam. O ser humano é inviável, com exceção das crianças. E dobre a língua quem vier com lição de moral sobre esquerda, estou há meio século nisso. 

Muito pouca gente vale a pena. As pessoas enchem a boca para falar de amigos, amigos, tudo em vão. Amizade é outra coisa. Amigo não abandona amigo. Amigo não faz cara de paisagem com sofrimento de amigo. Amigo não passa amigo pra trás. Amigo não se resume a mesa de botequim, tapinha nas costas e mensagem de whats. Amigo é quem vai te ajudar quando o caldo entornar. O resto é número. E amor? Já repararam como tantos amores se dissolvem que nem o Eno de laranja no copo de água gelada? Ah, o amor... Quem não serve para ficar ao teu lado nas horas difíceis, não serve para qualquer outra hora. 

O cotidiano, a cidade e o mundo não mudam com conversa fiada e burrocracia barata. O que transforma é a união, é a verdadeira soma de esforços, a fraternidade tão rara. Sem isso, esquece. Quem muda as coisas é o ser humano, e tá na cara que a maioria quer que fique como está. É a hipocrisia a céu aberto no Rio de mar e luz.  

Nós, brasileiros, geralmente somos de uma escrotidã0 atroz. Desprezamos a matemática o ano inteiro, mas a valorizamos para contar temporadas. Feliz Natal, Boas Festas. Para quem? Enquanto enchemos a cara de álcool e de outras drogas na festa do Réveillon, com trilha sonora praticamente insuportável, tem gente chorando de fome na marquise do nosso prédio. Gente pacarai morrendo de fome, morando na rua, sem poder tomar um banho que seja, mas aí gritamos uhuuuuu e tudo passa. Milhões de pessoas humilhadas por quadrilhas armadas que achacam, agridem, estupram e barbarizam. Boas Festas? Tá faltando Dercy Gonçalves pra dar a resposta final...

Precisa falar das guerras? Muita gente escrevendo besteiras e se vangloriando do lado "bonzinho". Se o Hamas é odiável - e é! -, que mal tem matar vinte mil palestinos? E daí, né? Mesmo raciocínio estúpido da gripezinha, que destruiu milhões de vidas, projetos e famílias. Genocidas do bem...

Enquanto o mundo gira em torno do Sol, vou tentando um plano de fuga. Sem dinheiro, sem parentes importantes ou anônimos, sem amigos, tudo é muito mais difícil, mas eu tento. Enquanto isso, espero que as pessoas sejam menos ruins e que as poucas amizades se fortaleçam. Que a arte vença a grosseria. Que a elegância supere a estupidez. Que a hipocrisia seja desmascarada diariamente. 

Informação relevante: não respondo mais inbox há anos. 

Muito obrigado a quem me prestigiou de verdade, com minúsculos e grandes gestos: são muitos nomes, homens e mulheres da pesada, como diria meu biografado Serguei. 

Falei demais. Quem vier comigo no caminho, valeu. Quem não vier, fique em paz. Vale o verso de um ex-grande ídolo e também ex-desafeto: "é melhor viver dez anos a mil do que mil anos a dez".

A minha arte não é de like. 

Friday, December 29, 2023

Pelé em berço esplêndido

Lá pelo meio de 2022, todos os que gostam do melhor futebol do mundo ficaram apreensivos. Depois de idas e vindas hospitalares, já se sabia que o tempo de Pelé na Terra estava no fim. Silêncios constrangedores, informações limitadas, estava desenhado o que viria aos pés do fim do ano. 

E então Pelé se foi. 

Como quase sempre acontece nessas situações,  o resto do mundo ensina a parte do Brasil o tamanho de um de seus maiores ídolos, senão o maior, mas certamente o mais conhecido de todos no planeta. 

O mundo se deu às mãos e chorou por Pelé. Parte do Brasil, mais acostumada a apedrejar do que exaltar, fez beicinho mas em vão. As homenagens se estenderam por todo 2024, e é lamentável que o grande Santos tenha sucumbido no Brasileirão justamente nesta temporada. 

Pelé foi o atleta do século XX e o maior jogador de futebol de todos os tempos. Para os incrédulos, uma simples pesquisa no Google dará as respostas. Parte considerável das façanhas do Rei do Futebol é vista com facilidade no YouTube. É difícil brigar com as imagens e fatos, ou com depoimentos de craques como Rivellino, Gerson e grande elenco. 

Mas, pensando bem, Pelé não se foi. Ele tem a vocação da eternidade. Seus gols, suas façanhas esportivas, sua arte - sim! -, sua história está espalhada pelo mundo. São livros, vídeos, filmes, fotos, áudios. Pelé é uma presença permanente. 

Um ano depois de sua morte, o Rei está no trono de sempre. No topo. 

Muitas vezes, Pelé foi condenado não pelo seu talento de maior jogador de futebol da história, mas sim porque alguns não o consideravam o maior ser humano da história da humanidade, o maior intelectual do planeta, o maior criador da Terra. Talentos que quase nunca se cobrou de ninguém. Enquanto isso, neste exato momento, em algum lugar do mundo um brasileiro está pedindo uma informação e, ao falar de sua origem, ouve "Brasil, Pelé!". 

Nesta sexta, o Rei completa um ano de sua morte. É um excelente momento para reflexões e aprendizados. Quem sabe os desentendidos consigam finalmente entender o tamanho de Pelé no mundo? 

Para fechar estas linhas, uma breve lembrança esportiva que ajuda a posicionar o Rei diante de pretendentes ao trono maior do futebol. 

Vamos falar do Santos, uma das maiores equipes do planeta e que provavelmente teve o maior time de todos os tempos. 

Olhando a lista dos dez maiores artilheiros da história do Peixe, além do próprio Pelé, temos os seguintes nomes: Tite, Pagão, Araken Patusca, Edu, Dorval, Feitiço, Toninho Guerreiro, Coutinho e Pepe. Somados, estes jogadores chegaram a cerca de 2.100 gols com a camisa santista. Destes, apenas Feitiço e Araken não receberam lançamentos e passes de Pelé. Não é nenhum absurdo que o camisa 10, além de ter feito mais de 1.000 gols, tenha dado os passes para outros 1.000 gols do Santos. 

Pesquise qualquer outro artilheiro da história do futebol. Nenhum deles terá uma estatística parecida com essa. 

@p. r. andel

Billboard

Na última sexta-feira do ano, todo mundo fica naquele clima do Natal que já passou, do Réveillon que se aproxima e da espera pelo novo tempo. Eu estava bem: fiz um bom primeiro ano no colégio, o Fluminense foi campeão e tivemos grandes acampamentos escoteiros - em novembro mesmo tivemos uma ótima ida ao Forte Imbuhy. 

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Passeava pela noite de Copacabana e resolvi comer um hambúrguer com suco na lanchonete da Siqueira Campos com Barata Ribeiro. Lanchei rápido e antes de ir para casa resolvi esticar mais duas quadras, só pra ver a vitrine da Billboard. Era a referência de lojas de discos de Copacabana. Ficava ao lado da também consagrada Modern Sound.

Na vitrine, LPs dos Rolling Stones, Yes, The Police, Tom Waits, Van Halen e Kiss. Os Stones tinham lançado "Undercover of the night", cujo videoclip havia sido censurado no Reino Unido, se não me engano por conter a cena de assassinato de um policial da Scotland Yard. Já o Yes vinha com uma verdadeira novidade: um álbum pop, redefinindo o papel do grupo no cenário musical. Ficava para trás a raiz do velho rock progressivo, entrava em campo um pop rock feito com extrema qualidade. E o Kiss tinha vindo ao Brasil meses antes, lotando o Maracanã e causando furor na cidade. 

Eu olhava os discos que não tinha a menor condição de comprar. Da nossa turma, o único colecionador era o Fred, então era torcer para que o amigo pescasse algum daqueles. O Marco morava em frente à Modern Sound, no prédio do Costinha, mas também não comprava. Fred era nosso guia e DJ: valia o que ele botasse para tocar na vitrola Technics. 

Era o final de 1983. Como seria o ano seguinte? Mais rock, mais Flu e uma temporada muito rica. Quarenta anos depois, ainda se sente no ar um aroma de mistério e conquista. É o charme do mundo. O charme. 

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Nos anos 1980 a Modern Sound já tinha a fina flor dos discos importados e bootlegs. Vendedores como Luizão "Call me" e Amândio da Hora - também DJ ícone do Rio - eram verdadeiras enciclopédias de música. Tempos depois, a loja viveu uma expansão tão grande que simplesmente ocupou o vizinho Bruni Copacabana e se transformou num império da música. Shows com grandes artistas rolavam soltos na casa e, por muitos anos, ela foi a referência musical carioca, numa linhagem secular da cidade. 

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A vitrine da Billboard era menor, porém mais visceral e rocker. Porta e vitrine de vidro abarrotadas de LPs. Mexiam quase todos os dias. Você sempre via um artista diferente. 

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Uma banda brasileira, subestimada até hoje, saiu atropelando o mercado mas pouca gente se lembra. Os Fevers, egressos dos anos 1960 na Jovem Guarda e famosos por sua longa estrada nos bailes cariocas, gravaram uma série de discos nos anos 1970 e, nos 1980, experimentaram uma apoteose nacional com as trilhas sonoras das novelas Elas por Elas e Guerra dos Sexos, além da tradicional gravação de versões de sucessos estrangeiros, como "De, do, do, do, de, da, da, da" do The Police e "Rock and roll e mais", a clássica "Rock and roll all nite" do Kiss. 

Os Fevers tiverem cantores de alto nível como Almir Bezerra, Augusto César e Michael Sullivan, e hoje contam com Luís Cláudio na voz. Lotaram ginásios e fizeram história na música brasileira. Merecem - e muito - livros, documentários e outros registros. 

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E pensar que pouco tempo depois viria a explosão do Rock Brasil, o Rock in Rio, a cidade como ponto certo de artistas como Siouxsie and The Banshees, The Cure, James Taylor, Tears for Fears, Bob Dylan, Terence Trent D'arby, Nirvana, Red Hot Chilli Peppers e tantos outros. 

Não dava pra saber pela vitrine da Billboard. Mas que prometia e fazia sonhar, fazia. 

@p. r. andel

Wednesday, December 27, 2023

JUSTIÇA DO FACEBOOK: O TRIBUNAL DA MORAL

Este é o grande tribunal. 

Com o dedo em riste, decidimos quem é bom e quem é mau. 

Quem deve viver e quem deve morrer. 

A vingança deve estar acima da justiça. 

Viva a moral e a ética, o caráter e o respeito! Viva a conduta ilibada dessa gente de bem! 

Primeiro se acusa, depois se apedreja. Se a acusação for infundada ou o acusado for inocente, paciência: fazer o quê? No máximo, cara de paisagem e fingir que nada aconteceu. 

É só mais uma reputação destruída. Um corpo destroçado. Uma missão suicida. Pouco importa. O que está em jogo não é a justiça, mas o justiçamento. O grande tribunal precisa causar, o espetáculo não pode parar.

Qualquer coisa, é só dizer "ah, mas ele mereceu". 

As máquinas de moer carne no Facebook são as mesmas que alimentam as calçadas cheias, à própria sorte. 

Dane-se o outro. 

Todos sabem tudo. Todos têm opinião certeira sobre tudo. E ai de quem ousar desafiar o senso comum. 

Raramente os comentários são construtivos, pelo contrário. Em nome da liberdade democrática, eis a liberdade de destruição do outro. 

A opinião virou um míssil para destruir a dialética. 

Parabéns aos senhores juízes do Facebook: vocês venceram! 

Ergam seus grandes troféus de senhores da verdade! 

Sintam-se infalíveis e satisfeitos, até o próximo cadáver ser removido pelo rabecão. 

@p.r.andel

Tuesday, December 26, 2023

25/06

Data que com o tempo se tornou importante pacas pra mim. Aniversário de Carlos Alberto Pintinho, um dos maiores jogadores de futebol que vi em campo, ídolo da infância. Anos depois, decorei o dia por causa de Luciene, que era nossa ídola suprema nos tempos de faculdade - creio que falo em nome de várias pessoas. E finalmente em 1995, quando tive a sorte de estar na maior partida da história do Maracanã, conhecida pela expressão "gol de barriga". 

Ironicamente, a última vez que vi Luciene foi justamente no dia seguinte ao título. Comemoramos a vitória do Fluzão fervorosamente no hall da faculdade. Meses depois, eu iria embora para sempre e ela largou o curso, indo para Letras, acho. Dia seguinte, 26/06, dia do aniversário de Gilberto Gil, gênio dos gênios. 

Catorze anos depois, 25/06 ganhou sua marca definitiva para mim. Em 2009 eu e Bola ainda éramos próximos. Imaginem, eu nem estava no Facebook, não existia smartphone no Brasil, mas lan houses bombavam. Claro que não tinha WhatsApp. Bom, resolvemos marcar o mesmo cardiologista juntos e fomos fazer exame. Na Dias da Cruz. O médico não era lá dos mais bem humorados, mas por incrível que pareça nos aprovou com louvor. O que restava fazer? Comemorar nossa ótima fase cardiológica no rodízio de pizzas da Parmê, que ficava umas três ou quatro quadras acima. 

Antes, passamos pelas Lojas Americanas para caçar alguma promoção em CD. Não encontramos nada, mas perto da saída do setor de música - sim, isso existia! - o Bola esbarrou numa pilha de DVDs e um deles veio direto aos meus pés. Era uns coletânea de clipes de Michael Jackson. Imediatamente brinquei e imitei o "uhhh" característico do cantor. Rimos e saímos da loja, fomos para a Parmê e comemos todas as fatias disponíveis na América Latina. 

Meia hora depois, lotados, fechamos a conta e fomos para a condução - ah, também não tinha Uber naquele tempo - na Dias da Cruz. Eu peguei o 247 vazio no sentido Centro e o Bola pegou outro ônibus, que não lembro qual. Em questão de dois minutos, meu celular toca e está o próprio Bola na linha a me chamar. Seria alguma emergência?

"Que houve, cara? Algum problema?"

"Cara, você não vai acreditar: Michael Jackson acabou de falecer."

Pensei no DVD caindo no meu pé uma hora antes. 

@p.r.andel

Sunday, December 24, 2023

Noites no campo

Quando a noite cai na véspera de Natal, o silêncio das ruas ecoa. As pessoas ficam em casa ou na de terceiros, a turma sem casa é apagada do mapa e tudo fica diferente porque nós, cariocas, sabemos estar numa cidade pra lá de ruidosa. Agora, nas ruas, tudo é silêncio. 

Gosto. Gosto sim. Gosto do silêncio. Sempre gostei. Adoro música, sons, conversas, mas sou cada vez mais do silêncio. E uso o WhatsApp para conversar com poucos colegas. 

Meu referencial de silêncio sempre foi vinculado ao escotismo. Foi um tempo tão marcante para mim que me acompanha até hoje, embora seja muito difícil para um legítimo escoteiro viver nessa terra de ódios, egoísmos e muita ingratidão. Mas o que importa é falar do silêncio.

Mesmo quando acampávamos em propriedades fechadas, a ronda noturna era uma atividade obrigatória que os escoteiros se revezavam durante a madrugada. Em muitas ocasiões, facilitei a vida dos colegas e fiz a ronda além do meu horário, ou dobrada e até triplicada para mim. Eu me sentia bem ao ficar alerta contra qualquer problema, me sentia útil e, além do mais, ficava preocupado também por ser um dos mais velhos - dezesseis anos, ahaha. 

Em certo momento todos do acampamento dormiam, exceto o pessoal da ronda, e então o silêncio dominava todo o cenário do campo. É preciso estar atento até porque podem surgir pequenos animais no caminho. No silêncio você escuta as folhas das árvores balançando, o vento cortando a relva fina, passos ao longe. É um outro mundo sensorial. 

Numa vez foi engraçado: acampávamos em Vale do Sol, imediações de Papucaia, com bastante espaço mas vizinho de gado. Incrível que, num acampamento de três noites, em todas uma vaca teve insônia e se aproximou da ronda. Estávamos sentados, ouvindo música baixinha no rádio que eu sempre levava e bebendo vinho - ok, menores infratores. A vaca vinha, ficava na dela paradona, meio que nos observando, até que soltava um mu, dava mais um tempo e ia embora. Ela vinha devagar, parava, se manifestava e saía. Nós achávamos graça. Tudo era paz.

Numa das últimas noites que acampei por lá, eu estava sozinho e o parceiro da ronda ainda ia se levantar. Todos roncavam tranquilos depois de um dia intenso de atividades. Os chefes foram para um bar fora das chácaras. Eu olhava o silêncio, a imensa escuridão, ouvia todos os sons discretos. Desta vez, sem a querida vaca. Havia um pouco de vento frio. O rádio sempre baixinho, acho que tocando Stevie Wonder, tenho quase certeza. 

Subitamente, com seus passos delicados de bailarina, uma das nossas colegas se aproximou e perguntou se poderia ficar ali pois tinha perdido o sono. Claro que podia. Ela se sentou ao meu lado, sorriu e embarcou no silêncio. Falamos poucas coisas e continuamos a espiar a imensidão da natureza em frente ao acampamento, que é uma das lindas imagens que carrego comigo em fotografias da memória - o som e o rosto das noites no campo. Com mais frio do que eu, ela puxou a minha mão para esquentar a sua, realmente bem gelada. E ali ficamos por muitos minutos os dois, olhando para o infinito como se fosse o futuro a nos esperar ou o início de uma longa, longa trilha. Um garoto e uma garota no esplendor da juventude, mergulhando em sonhos indescritíveis enquanto se protegiam com as mãos dadas. 

Essa noite tem quase quarenta anos. Aquele mundo não existe mais, mas as conexões que existem por aí me permitiram voltar a um grande tempo de boas lembranças e pequenas cenas inesquecíveis para quem as viveu e sentiu. 

@p.r.andel

Saturday, December 23, 2023

"Feliz Natal"

São dez da noite de sábado, antevéspera do Natal e sinal de fim do ano, tal como medimos pelo calendário. 

Em nome da família e de Deus, fazem uma covardia sem dó no mundo, no país e no que sobrou dentre os escombros do Rio. 

Shopping centers lotados porque é preciso comprar produtos, presentes, roupas novas, iPhones, calçados e, do lado de fora, garotos - quase todos pretos - oferecem balas para terem o que comer. 

Numa cidade com milhares de unidades habitacionais fechadas, as pessoas sofrem com o despejo, a situação de rua e todas as suas decorrências. 

Depois do ódio de janeiro a dezembro praticado nas redes sociais, nos ambientes acadêmicos, corporativos e diversos, então falamos de paz, de um mundo melhor, mas a verdade é que pouquíssima gente está realmente imbuída desse desejo e disposta a agir - de palavras ao vento, bastam as minhas. 

Desde que eu era um garoto e ia ao açougue comprar carne moída para minha mãe fazer bolinhos com pão, salvo raros momentos, senti que houve alguma melhora. Falo de 1980, são mais de 40 anos. Coisas boas no governo do Brizola - que o povo ingrato fez questão de c$#g@r com o golpista Moreira Franco. E o segundo mandato do Lula, onde realmente os pobres, pobres mesmo, iam ao mercado comprar carne. E só. Aumentou o número de armas, de mortes violentas, do consumo de drogas pesadas (cocaína pra cima), tudo de ruim. 

Em boa parte da cidade, a lei é da milícia e pronto. Sucessora de velhas atrocidades como Homens de Ouro, Scuderie Le Coq etc. Matam, estupram, humilham, agridem e o Estado nada faz, porque a milícia Ė o Estado. De tempos em tempos, a violência das zonas norte e oeste bate na sul, mas logo vem uma limpeza tapa-buraco. 

Ok, depois das desgraças dos últimos anos, o emprego aumentou no Rio. Mas é precarizado? Os salários são achatados? Sem poder de compra o consumo é restrito e comprometedor do sistema. A maioria mal sobrevive, mas como parte da turma está no shopping numa boa, dane-se o resto. 

Não precisa falar de racismo, etarismo, homofobia e gordofobia, né? Estão por toda parte, né? E também tem a turma que, sob a alegação destes males, procura criar outros. Oportunismo e cinismo definem. 

Fique bem. Se cuida. É a maneira educada de dizer "te vira". Não é? 

Vamos comprar os tubos de comida, encher a cara até cair, ficar muito loucos e depois poderemos xingar o mendigo que faz xixi no muro porque é "porco", não é verdade? Temos milhares de banheiros públicos, não é verdade? 

A gente deixa a criança sofrer na rua, perder os pais, passar todas as humilhações e depois, quando ela vira adolescente e com violência, queremos que morra na cadeia. Não temos compromisso com justiça, apenas com vingança. Na véspera de Natal a gente dá uma boneca vagabunda, um bife com arroz e se orgulha do nosso grande feito social, esquecendo que as pessoas precisam comer diariamente. 

Paz? Como se pode ter ter paz? É sério? 

Lembram daquela conversa patife? "Depois da pandemia, voltaremos melhores, mais solidários". Permitam uma sonora gargalhada. 

Para quem puder ter um Feliz Natal, meus parabéns e considerações. Não estou aqui para atrapalhar a festa de ninguém, apenas tentando mostrar por que eu não fico feliz neste momento. Eu tenho minúsculos momentos felizes quase todo dia, mas o que prevalece é a minha tristeza, porque lutei tanto, fiz tanto e não consegui ajudar a mudar a vida de tantos e tantos sofredores, inclusive eu mesmo, mas fracassei. Cansei. 

Que as crianças bem criadas tenham um bom Natal e cresçam com valores de companheirismo e solidariedade, nem que parta das próprias. Infelizmente a maioria só apanha da vida. Sofre, sofre, sofre. 

Sem espírito de equipe e coletividade, o mundo nunca deixará a escrotidão.

@p.r.andel

pedra

já quis ser uma pedra bem grande. 

daquelas do Parque da Cidade, que eu escalava quando era criança.

uma pedra tranquila, à sombra, sem medo de virar brita.



não durmo direito

não durmo direito. eu não durmo direito há muito tempo. nem sei dizer quando foi a última vez. há muitos motivos para isso, mas não vou falar deles agora. a única coisa certa é que passo os dias com dor e cansado há anos. não tenho uma noite de sono tranquilo em paz e não há a menor expectativa de que isso se estabilize em breve. é uma derrota. 

ao contrário do que pensam, o Fluminense não me tira o sono. mal ele acabou de ganhar ou perder, eu não gasto tempo me vangloriando nem me martirizando. penso sempre no próximo jogo e, apesar de estar muito cansado, agora só tem futebol pra lá de janeiro, então os dias são mais difíceis.

acaba o ano, não tenho hoje a menor saída para uma série de problemas e talvez o pior de tudo: se alguma coisa ruim me acontecesse agora, quem me acudiria? provavelmente ninguém. passei a vida inteira ajudando as outras pessoas mas raramente fui ajudado, muito raramente. parece a sensação de estar numa estrada dirigindo com os quatro pneus gastos e sem estepe. bem difícil. 

não é pra me vangloriar, até porque isso é inútil, mas não são nem seis da manhã e estou pensando: ouvi muito mais do que fui ouvido, ajudei muito mais do que fui ajudado, passei a bola muito mais do que recebi. dá uma sensação de tempo perdido, ainda mais quando chega essa época de hipocrisia da paz, da família, do final de ano. todo mundo sabe que a solidão e o sofrimento estão por tira parte. falam de paz e bombardeiam crianças em hospitais, enquanto aqui perto milhões de crianças pedem esmolas e passam fome.

quem me acudiria? ninguém. mesmo quem pudesse. a verdade é que muitos seres humanos não estão nem aí para ninguém e, por isso, estamos desse jeito aí. 

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pra mim, Paola Oliveira sempre foi uma das mulheres mais bonitas do Brasil, além de ótima atriz.  

vê-la sendo xingada e atacada na internet é a demonstração da selvageria e da idade da pedra que hoje vivemos. 

idade média com smartphone e tribunais de justiceiros por toda parte. 

Tuesday, December 19, 2023

Sanduíche

Eu gosto muito de sanduíche. Qualquer sanduíche, dos mais abonados aos mais simples. Sou capaz de lembrar de grandes momentos enquanto comia um sanduíche. Certa vez passei o Ano Novo lanchando no Gordon, eu, Fredão e as garotas. Nunca me esqueço de um funcionário extremamente atencioso que se chamava Misaque, e o Flu tinha acabado de ser campeão. 

Engraçado que nos acampamentos escoteiros nunca tinha sanduíche, no máximo pão com manteiga de manhã, isso quando não o fazíamos. Acho que na volta sempre me dava vontade de comer um sanduíche. 

Basta um bom pão ou uma fatia de qualquer coisa e o sanduíche fica ótimo. Pode ser com pasta ou patê. Agora lembro de um que minha mãe fazia pra mim numa época em que estávamos muito pobres, muito pobres mesmo. Tadinha, ela comprava uma lata de sardinha, um tomate e uma cebola, picava tudo e fazia os recheios. Ela sofria muito, mas o sanduíche era tão gostoso que eu o como até hoje, mesmo lembrando daqueles tempos de enorme dificuldade.

Quando comecei a ir ao Maracanã, eu era pequenininho e não entendia o futebol, mas já era Fluminense e ficava muito contente quando meu pai comprava um cachorro quente pra mim. Minhas primeiras memórias tricolores são gente comemorando gol, a linda camisa tricolor e meu impecável cachorro quente Geneal. 

Quinze anos depois, eu contava as moedas para sobreviver na faculdade. Nem sempre dava pra almoçar, aliás quase nunca dava. A saída então era um lanche barato: íamos para o terceiro andar, na cantina da faculdade de Física. O prato principal era pão com ovo e salada mais limonada. Era baratinho e delicioso. Eu gostava tanto que pensava o seguinte: se um dia ficasse rico, ia contratar a lanchonete só pra mim, numa casa para que eu pudesse lanchar enquanto descansasse. 

Copacabana tinha a maravilhosa Sorveteria Bolonha, que tinha um cheeseburger sensacional e um mate delicioso, que rivalizava com o tanquinho da praia. Era uma lanchonete simples, barata e com ótimo atendimento. Aguentou ditadura, inflação, Nova República, novo golpe e o escambau, mas não resistiu à pandemia. Esquina de Constante Ramos com Barata Ribeiro. 

Anos atrás, faleceu um botequim na galeria do saudoso Cine Veneza. O bar vendia sanduíche de frango assado. Havia uma pequena frangueira, picavam o frango para o recheio e também serviam em porções. Era enlouquecedor. 

Em momentos de grandeza e miséria, na alegria e na depressão, em dias desesperadores e cheios de esperança, tanto faz, uma coisa é certa: um sanduíche sempre esteve perto de mim como se fosse o melhor amigo, matando minha fome, me dando satisfação. Hoje mesmo acho que vou fazer um. 

É bom demais.

Sunday, December 17, 2023

Tchau 2023 antecipado

Está acabando o ano. Descem os últimos grãos da ampulheta. 

Incensados pelo mundo que nos determina datas, términos e começos, recomeços também.

A gente olha pra trás e, se pensa minimamente no próximo, sente o peso da tragédia. Ódio por todo lado, miséria sem fim, violência, guerras urbanas e nacionais (com os ingênuos acreditando em Bombom x Maumau). Gente a sofrer e a se desencontrar por todo lado. Os desamores, a aspereza do cotidiano. 

Outra coisa chata: se decepcionar não com os comuns, mas em quem você acredita. Infelizmente a vaidade, a empáfia, o egoísmo e a hipocrisia são roupas que muita gente veste com facilidade, pouco importando se o discurso era outro. O ditado é popular mas sincero: falar, até papagaio fala. Agora, fazer... É como a distinção entre ser bom e realmente fazer o bem. Uma diferença significativa. Tem muita gente boa mas pouca gente fazendo o bem, o que é um problema. 

Pelo menos há pequenas compensações. A gente se revigora com filmes, discos, shows, jogos. Isso ajuda a aliviar a alma, tentar dormir e buscar a sobrevivência no dia seguinte. Os poucos amigos sinceros, as boas conversas, os breves amores e admirações. É isso que nos sustenta, ao menos enquanto respiramos nestes ares. Precisamos de educação e cultura, precisamos de arte mas também de entretenimento e lazer. Muito. Ah, menos mal que, com todos os problemas pela frente, o Brasil se livrou da ascensão n@z1. Contudo, há muito a ser feito. 

Football: ao contrário do que boa parte da mídia esportiva queria, amanhã o Flu se arrisca a chegar à final do Mundial. Vai rolar. Há muita coisa a ser dita por isso, mas agora não é momento. Fica para depois. Vai, Fluzão.

Tive um ano horrível, mas ainda assim consegui publicar três livros que estão agradando muita gente. Sem falsa modéstia, gostei do resultado dos três. Fiz dois sozinho e um com a colaboração de colegas, fizemos um lançamento bonito. Se tiverem sido os últimos, fiz bem pacas. Se não tiverem, melhor ainda. Roll the bones. 

De 2024, eu só queria sobreviver em paz, mas este é um dos bens mais preciosos e raros do mundo. Quem está em paz permanente? É muito difícil. Mesmo. Mas, ainda assim, se a cada dia o mundo for menos ruim para a maioria das pessoas, já está bom. É um consolo.

O resto? Menos é mais, como dizia Miles Davis. Mais ouvidos e menos fala, mais sinceridade e menos gente, antes só do que mal acompanhado. Quem não te abraçou nas piores horas não precisa de perdão, nem de proximidade. Quem te deixou na pista, que seja feliz mas longe. O que passou, passou. Na longa caminhada, o que importa é encontrar a nova fonte de água limpa e, de preferência, à sombrinha.

Por aqui, há centenas de pessoas boas, com as quais interagi e muitas vezes percebi seus problemas. De simples palavras de força até assuntos mais complexos no privado, tentei fazer o que pude e sei que é muito pouco, mas era o que eu tinha a oferecer. Desejo que todas tenham vidas e vivências melhores em 2024, de coração. 

Que a vida seja menos difícil para a parte sofrida da raça humana. Que os animais sejam mais respeitados. Fim.

@p.r.andel

Sunday, December 10, 2023

Lançamento do livro "Pasión Libertadores"










historietas de vida ou morte

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Não tenha dúvidas: os mesmos filhosdasputas que te negam a mão, o abraço ou a ajuda, serão os mesmos que irão chorar em público caso você morra, especialmente se for de modo súbito, inesperado, ou por suicídio. Vão chorar, lamentar, dizer que você era muito bom, que será insubstituível, vão dizer que é muito injusto. Na verdade eles não vão chorar por você, mas sim por se lembrarem da própria escrotidão. Eles não estão nem aí que você morra ou não. Nem aí. 

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É assustador quando você se dá conta de que, embora não seja tão velho mas já tenha uma certa estrada, praticamente todos os seus grandes amigos, verdadeiros amigos - não colegas, amigos mesmo com os quais pode contar em qualquer situação - estão mortos. Definitivamente mortos. Você se lembra das conversas, das brincadeiras, das barras pesadas, de tantas histórias e num segundo um dedão cutuca seu ombro ao mesmo tempo em que surge uma voz imaginária: "Ei, são só lembranças. Divirta-se, mas não se esqueça: eles estão mortos". E essa talvez seja a mais dolorosa e desesperadora das verdades do mundo. 

Existe muita ignorância a respeito do suicídio e dos potenciais suicidas. Nos tempos modernos, o que importa é o lugar de fala, não é? Ok, eu o tenho. Em 1984, aos 15 anos, eu abri o gás do apartamento onde morava e, por algum impulso inexplicável, já um pouco tonto com o cheiro forte, desliguei. Desisti sem pensar. Eu tinha motivos para prosseguir e para parar, e não dá nem para dizer que foi o medo, no máximo o instinto. Meus pais morreram sem saber disso, meus amigos de verdade - aqueles mortos - também não souberam. Não ter morrido significou salvar minha família entre 1995 e 2008, época em que meus pais adoeceram progressivamente até a morte. Eu segurei a barra. Agora, ninguém vai fazer isso por mim e, vivendo agora os piores anos da minha vida - o que chega a ser incrível, pensando em tantas outras épocas ruins - tenho pensado em suicídio diariamente há mais um ano. Isso não me impediu de fazer coisas boas, trabalhar, produzir, ajudar muita gente (sem contrapartida), amar, rir, talvez ser amado. É um velho desafio que tem quase quarenta anos: eu e o suicídio, um de frente para o outro, um vai derrotar o outro, ninguém sabe ao certo o dia ou o resultado. 

Quase todos os reacionários que conheci eram - e/ou são - incapazes em enxergar o mundo à sua volta. Geralmente partiam da premissa de suas experiências pessoais, sem perceber o quanto foram privilegiados num mundo onde mais de um bilhão de pessoas não tem sequer água. E justamente por causa das premissas pessoais, invariavelmente eles ofereciam uma, digamos,  supervalorização de seus feitos pessoais, mesmo que fossem coisas sem a menor importância. 

A maioria era de homens e mulheres bons, só que incapazes de perceber que a sociedade vai muito além da própria família, do condomínio e da rua, e que isso não se resolve só com o mercado e investimentos. Em condições normais, indignar-se com a fome, a miséria e a violência deveria ser uma obrigação coletiva, mas aí está o problema: pelo menos no Brasil, a coletividade é quase sempre desprezada.

Todas as vezes em que, com alguns deles, debati estas questões, a resposta foi o silêncio. Nenhum deles parou para pensar que o desprezo aos excluídos levava a muitas e muitas mortes, vide a questão da COVID 19 por exemplo. Continuo achando que não era má fé, mas simplesmente uma incapacidade de refletir a respeito.

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Ao mesmo tempo em que acho que há muito a ser feito, também penso que o melhor já passou, que a situação é grave demais e, se nada mudar para melhor nos próximos dias, a única saída é ir embora.

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Não existe democracia de verdade com crianças fuzilada na rua, calçadas cheias de gente morrendo a céu aberto e o ódio plantado em cada esquina. 

Não adianta que os mais abastados simplesmente fiquem em ilhas isoladas, desprezando o resto.

Um dia a conta chega. Aliás, já chegou. Não adianta fingir nem fazer cara de paisagem.


Figuras deploráveis

Ela é bonita? Ótimo. 

Não é muito? Ótimo também. 

É gorda? Gordinha? Baixinha? E daí? 

Ela, ele, tanto faz. Magrelo. Careca.

Cada um tem seu jeito, sua forma e seu estilo. Pronto. 

O preconceito estúpido é que destrói convívios, impede relações, trava amizades. Somos uma das sociedades mais hipócritas, mesquinhas e preconceituosas do mundo. 

Como bem versou Cazuza, temos uma horda de caboclos que querem - ou queriam - ser ingleses, zombando dos mais humildes, dos mais pobres. 

Na maior parte das vezes, esses inúteis sequer construíram alguma coisa para se gabar: vivem do dinheiro alheio, de heranças, de mesadas e se dependessem da meritocracia que tanto defendem, estariam na rua pedindo esmolas igualzinho aos mais pobres, que eles tanto detestam.

Odeiam o preto, o pobre, o gordo, o nordestino, o supostamente feio. 

Um idiota preconceituoso precisa atirar para todos os lados. Seu oxigênio é o fel que descarrega. 

Natal da hipocrisia

Como sempre, está chegando. Enquanto o Brasil é uma grande pátria desimportante cheia de crianças tomando tiros da polícia no peito, cheia de gente chorando de fome nas ruas, cheia de potenciais suicidas em desesperança, um bando de nazistas vem falar de Papai Noel, de amor e família, de Deus, de maneira totalmente alheia à desgraça do país. Pessoas sem uma gota de empatia, sem o menor sentimento bom em relação ao próximo. Têm nojo de pobres e, para se distinguir na ocasião, gostam de ostentar breguices que imaginam ser sofisticadas. Festinhas ocas para entorpecer corações medíocres. Medíocres pra caraio! 

Nunca se esqueça: todo mundo pode fazer o bem de verdade e transformar a vida de alguém ou de muita gente. Basta ter vontade e caráter. 


Saturday, December 09, 2023

Um pouquinho de arte

Em plena madrugada escuto músicas com as participações de Maurice White, Nicolette Larson e Scott Weiland. Cada um de um tempo, uma década.

Maurice White foi o rei negro do funk. Sua banda e criação, o EW&F, ainda toca pelo mundo afora. Seus arranjos de metais estão entre os mais intrincados de toda a black music.

Dependendo da foto, Nicolette Larson podia ser bonita ou linda demais. Sua voz está em tantos e tantos registros belos. Um deles é com Christopher Cross, em "Say you'll be mine".

Scott Weiland era A voz. Quando disparou seu raio de trovão em "Plush", o mundo inteiro parou para ouvir. Eu fiquei eletrizado. Ao mesmo tempo em que coisas ruins aconteciam comigo naquela época - e não foram poucas -, havia outras boas. A música era uma efervescência. Os Stone Temple Pilots fizeram dois excelentes álbuns e seguem tocando a vida, mas assim como a bela Nicolette, Scott se mandou cedo demais. Aprontou muito, um dia a conta veio. 

A arte registrada precisa ser séria, comprometida, vibrante. Livros, discos, telas, instalações. É o caso dos três acima: são artistas mortos mas suas artes permanecem com muita força. Maurice e Nicolette tiveram grande força nos anos 1970, Scott nos 1990, e todos podem ser bem ouvidos no YouTube e outras plataformas com enorme qualidade. 

Sinceramente, eu não sei quanto tempo vou aguentar dormindo duas horas por noite, mas pelo menos a música acalma, traz lembranças boas, ajuda a esquecer que a vida humana está marcada pela hipocrisia e o descaso. A arte eleva os corações, não resta dúvida. 

Cinco da manhã, já está clarinho, o ano está acabando e parece que o mundo também. Hoje é sábado, não tem jogo, fica um certo vazio e vou tentar cochilar um pouquinho daqui a pouco. 

II

Dez horas depois, resolvi fazer o que não fazia há anos: ouvir música no rádio. 

Melhor dizendo, na TV. Há vários canais, cada um com um estilo diferente. 

Comecei pelo jazz, mas achei que havia standarts e obviedades demais. Não que não fosse bom, mas é que já ouvi demais.  Escutei uns seis temas e resolvi mudar. 

Rock clássico. É, eu era tão garoto outro dia e agora ouço rock clássico, de 30, 40 ou 50 anos. Não me deixo abater por qualquer etarismo: foi e é bom demais. 

Em pouco tempo, batem à porta sonora "This is not America" com David Bowie, "Afterglow" do Genesis, "Passion" com Rod Stewart e "Fake plastic trees" do Radiohead. Fui e voltei nos tempos. O de escoteiro, o do começo da faculdade, a adolescência. O tempo dos LPs na casa do saudoso Fredão com o também inesquecível Luiz Magno. As garotas no sofá da sala escutando música encostadas nos nossos ombros. 

Então vem o Soul Asylum com "Runaway Train" e só de pensar nos anos 1990 me vem uma pequenina lágrima de alegria. Tudo aquilo está distante para sempre, mas basta tocar uma canção e logo você se lembra de toda uma época. 

@p.r.andel

Wednesday, December 06, 2023

A procissão da bola

Numa quarta-feira à tarde qualquer de 1980 ou 1981, 1982 também, a gente jogava bola na Lagoa. Éramos poucos, uns cinco, número insuficiente para o campão de terra, então improvisávamos na quadra de futebol de salão. Gol dentro da área e tal.

Vínhamos de Copacabana caminhando. Siqueira Campos, Tonelero, túnel, Pompeu Loureiro, Corte do Cantagalo. Não tínhamos exatamente a bola de futebol de salão, porque era mais cara e não podia ser usada em outras possibilidades, como a pelada na Vila - rua Tenreiro Aranha, hoje ocupada pelo metrô - e, claro, futebol de praia. Também tinha a saudosa quadra do Corpo de Bombeiros na rua Xavier da Silveira, que geralmente alugávamos para jogar no domingo de manhã com a turma dos escoteiros.

Às vezes o jogo era completado por algum garoto por perto. Não gostávamos dos mais velhos, quase sempre eram arrogantes e grosseiros, mas eram a única saída. Tudo pertinho do Parque da Catacumba. Tínhamos nossos ídolos e tentávamos imitá-los na quadra. Eu imitava o Edinho, aliás imito até hoje quando o assunto é seriedade e compromisso, itens nos quais ele era especialista em campo. Muitos queriam ser Zico ou Júnior, outros Roberto. Ou Mendonça, ou Leandro. 

Normalmente a pelada começava umas duas da tarde e ia até às cinco. Com o sol caindo, então iniciávamos nossa procissão da bola até a Siqueira Campos, em Copacabana. Tínhamos um ponto regular de parada, um posto de gasolina que ficava aos pés do Corte do Cantagalo, hoje ocupado por um grande prédio. Bem, comprávamos um litro de refrigerante, distribuíamos os copinhos de plástico e nos refrescávamos. Às vezes parávamos num botequim ou padaria mais à frente, já em Copacabana, mas a regra era o posto de gasolina. 

Jogamos muitas vezes na Lagoa e foi muito bom. Não me lembro da primeira, mas tenho certeza da última. Foi em 05 de julho de 1982, logo após a vitória da Itália sobre o Brasil na Copa do Mundo. Era feriado, tudo estava fechado, e nós fomos o que deveríamos ser ali: garotos bondosos, apaixonados por futebol, tentando esquecer a tristeza daquele jogo. Todo mundo chorando, as ruas desertas, juntamos meia dúzia e fomos para a Lagoa. Não havia carros, nem ônibus, nem pedestres. Você não via sequer os porteiros dos prédios. Era um ensurdecedor silêncio de morte. Chegamos à Lagoa deserta, começamos nossa pelada que durou uns vinte minutos, até que o Marco deu um chutão para longe e a bola se afogou n'água para sempre. Perdemos a pelota, droga. 

Voltamos a pé, não havia o que fazer. Quando fomos comprar o refrigerante no posto, o bar estava fechado. Subimos e descemos o Corte do Cantagalo, éramos nós e o silêncio da rua. A padaria da Bolívar também estava fechada, então entendemos que não era dia e voltamos pra casa com sede. Só depois fomos entender exatamente o que era aquele dia para o sentimento popular. 

Por alguns anos, o futebol na praia e no Corpo de Bombeiros comeu solto, mas na Lagoa nunca mais voltamos. Não foi planejado nem combinado, simplesmente deixamos de ir. Claro, ficou na nossa memória o trauma daquela derrota quase inimaginável, mas nunca falamos disso. Simplesmente aconteceu.

Entretanto, se a dor do Sarriá ficou para sempre, a alegria pelo futebol permanece: não há cartola, tramoia ou intriga que interrompa a velha e irresistível mania do maravilhoso jogo de bola.

Tuesday, December 05, 2023

Para Dona Célia

Essa é uma história de muito tempo atrás, quase meio século. 

Eu me mudei para o prédio e fiquei amigo do Adão. Mais tarde, estudaríamos juntos. O nosso convívio mesmo foi aquela coisa de 1978 até 1981 mais ou menos. 

E tinha a Dona Célia, Tia Célia, mãe do Adão. Ela adorava minha mãe. 

É um tempo ao mesmo tempo difícil mas de boas lembranças para mim. Ao mesmo tempo em que tínhamos enorme dificuldade financeira em casa e meu pai apresentava problemas de alcoolismo, eu tentava me divertir como qualquer garoto: ia à praia, jogava bola, botão, brincava no shopping center - isso mesmo, tempo também morava lá. E naquele momento, o Fluminense passava a ser uma obsessão para mim. Poder comprar um botão, um escudo bordado, ler as notícias nos jornais, ouvir as resenhas esportivas, ir ao Maracanã. Tudo junto. 

Várias vezes Dona Célia levava a gente para lanchar cachorro quente no Aterro do Flamengo. Ficávamos fascinados, era uma verdadeira viagem. Ela tinha um Fusca e dirigia, nós achávamos um barato. Era um passeio simples, mas o tempo me fez dar ainda mais valor em poder comer um cachorro quente em pleno Aterro às dez da noite de uma segunda feira. A cidade já não era um poço de tranquilidade, mas era algo que uma mulher podia fazer com seu filho pequeno e o amigo dele. 

Noutras vezes, a gente ia pra praia no Leme. A água era tranquilinha, gelada, a gente lanchava biscoito Globo e bebia mate gelado do tanquinho, misturado com limonada. Eu ainda me lembro de olhar a beleza da praia de Copacabana vista do Leme. O Fusca era nossa espaçonave. Falando de 1979, lá estava o Fluzão de Wendell e Renato, de Edinho e Miranda, de Rubens Galaxy, Carlos Roberto e Toinzinho. E de Nunes. 

Nesta terça é o aniversário de 79 anos de Renato. Falei bastante dele na live do PANORAMA. E também é o aniversário de 13 anos do título brasileiro de 2010. Por sinal, neste mesmo dia escrevi as últimas páginas de meu primeiro livro, escrito sobre o Fluminense.

No mesmo dia, Dona Célia saiu de cena. Teve uma vida longa e um ótimo filho a seu lado. Ao saber de sua passagem,  fiquei imediatamente triste. A seguir,  pensando nas coisas que aconteceram hoje, mais as lembranças, percebi que muito do que falei hoje tinha a ver justamente com aqueles tempos do maravilhoso cachorro quente no Aterro. 

Tempos de meu querido amigo Adão Lamenza Salama, da Dona Célia e do início daquela obsessão que até hoje tenho pelo Fluminense. Tempos de um Aterro quase tranquilo, onde minha preocupação maior era economizar a mesada para comprar um botão, um becão ou goleiro. Tudo isso ficou comigo para sempre. 

Eu nunca vou me esquecer do Fusca fazendo a curva na Enseada de Botafogo. 

Monday, December 04, 2023

Para Lou Reed

Oh, são quatro horas da manhã e quase ninguém se importa. Quem pode, dorme. Quem não pode, sofre ou reflete.

Daqui do alto são quilômetros e quilômetros de silêncio, longe de significarem paz - há muitos perigos de morte, mas mesmo assim parece que, de longe, tudo está sereno. 

Já é tarde e as travestis da Augusto Severo bateram em retirada, exceto uma ou outra conjugando a sede do sexo e a fome do estômago.

Metros dali, a cidade ainda tem seu rastilho de sangue e morte. Na Beira-Mar, bandidos espancaram um garoto que morreu ontem. Foi difícil ver o sofrimento de sua mãe e a jovem irmã na TV. Mataram o garoto por causa de um celular, geralmente revendido por cem reais. 

Em vários pontos no coração da cidade a miséria prevalece. São muitas e muitas marquises cheias de gente sofrendo. Tirando abnegados admiráveis, a maioria nem liga. Esta não é uma cidade de solidariedade, pois. 

Onde estará dormindo minha garota preferida? 

Que fim levaram meus ex-amigos, depois que descobri que não passavam de colegas? Existe confusão.

Calmo, eu nem pareço alguém que tem um míssil apontado para a própria cabeça, prestes à explosão. Sem nenhuma ambição além de sobreviver mais algum tempo, só queria uma casinha, uma TV, geladeira, ventilador e celular. Uma cama e um pouco de paz.

Um calor dos infernos. Senhor! 

Ventilador. daqui, maravilhoso, me alivia e lembra uma turbina de avião. Bons tempos. 

O efeito do calmante e do Renitec começa a dar onda. Vamos derrotar a insônia. Vamo lá. Vàmonos.

Rio Selvageria

O ódio está por toda parte no Rio de Janeiro. Toda parte. 

Há tempos o objetivo do crime deixou de ser "apenas" roubar, furtar, assaltar. É preciso agredir, humilhar e matar rindo. 

Dia desses é que me dei conta de quantos livros e crônicas já dediquei ao Rio. Talvez no futuro me chamem de cronista carioca por isso. Nada foi planejado, apenas amo a cidade e já a vivi intensamente. Mas o que sinto agora é uma tristeza lancinante. 

Hoje está cada vez mais difícil. Às sete da noite não tenho ânimo para ir à padaria. Em qualquer lugar podem acontecer as facadas, tiros e porradas covardes. 

Há muito tempo é muito difícil aguentar a violência nas comunidades do Rio. Em vez de resolver este problema, o Estado preferiu democratizar o ódio. Só nos últimos dias, aí estendendo à Região Metropolitana, uma garota fuzilada covardemente em Belford Roxo. No Centro do Rio, um rapaz apanha absurdamente, para no hospital e... morre. Em Copacabana, mortes a faca, idosos apanhando até cair. Não é mais violência, mas selvageria. 

Volta e meia alguma autoridade debochadamente diz que não é possível colocar um policial em cada esquina. Um deboche idiota. Qualquer motorista que cruze a cidade sabe que, a partir do começo da noite, você pode passar por bairros inteiros e não verá segurança alguma. 

O Rio foi o Estado mais desgraçado do país desde o golpe contra Dilma. Enquanto o país timidamente apresenta sinais de melhora no emprego, o Rio tem um mar de gente passando fome, um mar de gente louca por crack e k2, um mar de gente que vai para o crime por inúmeros motivos, mas o principal é claro sem precisar passar a mão na cabeça de criminosos: o descaso. Esta é a cidade do descaso, descaso das pessoas, das instituições, de tudo. 

Falo brevemente do Centro porque sou morador há 30 anos, embora meu coração seja Copacabana. Há 20 anos eu conseguia cruzar a avenida Chile com meu amigo Maurício. Há 15 anos, eu vinha de chopes no Paladino a pé para a Cruz Vermelha. Há dez anos, eu sempre estava nos bares da própria Cruz, vários bons. Hoje tenho medo de sair depois das sete da noite, mesmo sendo grande, gordo e já tendo me defendido por aí. 

Não é mais violência. É selvageria. Tudo que há muito já aterrorizava parte da população oprimida na cidade partida agora é plural: você pode ser esfaqueado e trucidado até morrer em qualquer lugar. 

Parte da polícia é boa, honesta mas é sabotada e não consegue dar segurança ao povo. A outra parte contabiliza os lucros. 

@p.r.andel

Saturday, December 02, 2023

Coitado

Outra daquelas que a gente lê por aqui mas não conhece nenhum dos atores. Li ontem, sem saber como fui parar nos perfis. 

Morreu alguém. Na verdade um rapaz. Talvez um senhor. Tinha mais idade do que eu, mas não muita. Pelo visto, infelizmente houve suicídio.

Em sua última postagem, cheia de vida, os comentários pululavam. Choro, lamento, saudade, tristeza, mais lamento. Marcações. Inconformismo.

Gente em lamúrias, frases bonitas, muitas outras. 

Alguém dizendo que se afastou do falecido à toa e se arrependia. Várias adesões. 

Afinal, com tanta gente ali, será que algo poderia ter sido diferente?

Quem sabe um pouco mais de proximidade sincera, longe da robotização das redes sociais? 

Ou será que era apenas eu caindo na velha esparrela do tribunal do Facebook, julgando situações e pessoas que desconheço? 

Será que a vítima teve apoio e simplesmente saiu de cena porque, em muitas situações, o desfecho pior é inevitável? 

Ou será que tudo foi um grande descaso, feito esses que a gente vê no Brasil inteiro, no Rio inteiro, em Maceió, em qualquer bairro? 

Eu não quero julgar ninguém. Não quero formar nenhuma opinião. Não quero ser seguido, pelo contrário: estou precisando fugir e me esconder. 

Só acho que essas histórias têm se repetido demais por toda parte. Muita gente ceifando a própria vida de tão sufocada, oprimida e humilhada. E parece, só parece, que ao se deparar com uma tragédia sobre alguém próximo, a ficha cai e algumas pessoas se tocam do descaso ocorrido, mas aí já é tarde, tarde demais. 

O que provoca os afastamentos? Medo de pedidos? Dinheiro inclusive, dinheiro principalmente, mas não somente. Às vezes a simples companhia, ou ouvidos atentos, ou palavras, outras palavras. Pouca coisa. 

Sei lá, ando meio desconfiado de que temos meios de comunicação demais, mas comunicação de menos. É só um palpite. Muito passatempo e pouco entrosamento. Até o dia em que vimos aquele nome amigo ser muito procurado, várias marcações e, de repente, uma tristeza gigantesca. 

Abraços e beijinhos e carinhos póstumos sem ter fim. Tudo em vão, porque a vida é agora e não espera feito a solidariedade verdadeira.

@p.r.andel

Friday, December 01, 2023

morno sol

enquanto isso
o tempo rói 
as certezas
perto da tarde
entre silêncios 
indevassáveis
debaixo do 
morno sol

Short Cuts 3011

Passei pela Gomes Freire e espiei um botequim quase em frente à delegacia. 

À mesinha do lado de fora, um único senhor  com sua pacífica e solitária garrafa de cerveja.

Um senhor, bem mais senhor do que eu. Estou chegando aos sessenta (a conferir), ele tem perto de setenta. Sempre será um senhor, feito todos aqueles que vi em minha vida nos bares, feito aqueles admiráveis personagens que conheci no Sniff's e que agora estão quase todos mortos. 

Ele tem um silêncio e uma serenidade com seu olhar perdido na rua. O quanto tem vivido e sofrido? Será feliz? Eu também queria estar num bar olhando para o horizonte com serenidade, e é uma pena que minha vida esteja tão longe disso.

Eu pensava que um dia seria igual àqueles senhores que vi e conheci nos botequins. Uma coisa de bom humor e serenidade. São bens tão raros que consegui-los é benção. Um salariozinho para sobreviver, ter algum conforto, não precisar ter medo de morar na rua, poder comer um sanduíche de pernil numa boa. 

Um senhor sereno. Eu queria que fosse meu pai. Ser órfão é phoda, não importa a idade. 

Do outro lado da rua, na delegacia de polícia, tem um cartaz na parede denunciando uma milícia da região. Ninguém liga. 

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Diariamente.

Pessoas jovens e adultas andando com suas caixas de Mentos tentando vender, sem qualquer sucessos.

Olhares cansados e tristes.

Rostos chorosos nas calçadas.

Placas de vende-se e aluga-se em todas as quadras.

Pessoas cabisbaixas.

Promessas que não serão cumpridas.

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Numa sexta-feira meio nublada mas quente, penso em meus grandes companheiros mortos. 

Por não ter conhecido meus avós e tios, salvo uma vizinha e o avô de um amigo, só tive gente morta por perto depois dos 25 anos. 

Primeiro foi meu grande amigo Luiz Magno, o Loulou Lion, super baixista e piloto de helicóptero. Sou capaz de lembrar com exatidão a última noite que nos vimos. Eu voltava da faculdade quando o encontrei perto do Sniff's. Ele estava desesperado com a passagem recente de seu pai. Fomos para o corredor do seu prédio para conversar - ele tinha uma relação muito difícil com a mãe. Falamos de várias coisas, muitas coisas, éramos jovens adultos ainda tentando entender a desilusão do mundo. Lulu morreu um ano e meio depois. Soube chegando em casa, já exilado no Centro: minha mãe tinha ido a Copacabana, soube, voltou e chorava sem parar na sala. 

Lulu a chamava de mãe, assim como meu grande amigo Xuru, também falecido há 18 anos inacreditavelmente, também fazia. Minha mãe também se foi.

Já perto dos 30 e poucos anos, uma avalanche de gente morreu. Perdi tudo. Nunca mais me recuperei das perdas, tantas que foram. Então deixei de ser um escritor invisível e passei a publicar livros, dezenas deles. Alguns foram lidos por milhares de pessoas, outros por meia dúzia - provavelmente os melhores. Entendi que escrever já não era mais um hobby nem uma profissão pessimamente remunerada, mas talvez a única missão que posso cumprir com dignidade, enquanto ainda estou por aqui, nessa terra estranha e cheia de ingratidão. Agora mesmo, completamente dominado pela depressão, estou finalizando dois livros. É praticamente uma garantia de antídoto contra a morte. 

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Sinto falta de caminhar em Copacabana e no Centro. 

Falta de andar pelas ruas.

As da Grande Tijuca, quando eu era estudante. 

Ruas do Méier, procurando minhas musas da faculdade.

Ruas da Urca, charmosa e discreta. 

Há trinta anos já havia bastante violência, mas não se tinha medo de tomar facadas pelas ruas, nem de motociclistas, nem de ficar parado num ponto de ônibus. 

Havia medo, mas não o horror de agora. 

Sinto falta de caminhar e de voltar para casa com tranquilidade.

Aliás, tranquilidade é o bem mais raro. Nunca tive.