A esquina da rua do Senado com Mem de Sá continua com o mesmo abandono de anos à trás, ou talvez décadas. Quando havia Maracanã e, posteriormente, UERJ, todo dia era dia de passar por ali, muitas vezes num romântico 434 ou seu primo menos requintado, o 464. Mais tarde, quando meu pai era vivo e já não tinha plena motilidade, coisa do fim do século, uma cena não saiu mais de minha vista: certa moradora de rua ficava sobre seu colchão de casal, com molas, em frente às portas do finado supermercado Nova Olinda, ali vitimado por um incêndio e, noutros lugares, por alguma crise econômica ou interesse similar. Ela parecia sorridente por vários dias, embora não andasse mais e precisasse se arrastar para os movimentos corporais mais simples. Diante do sofrimento daquela mulher, em contradição ao seu sorriso, padeci muitas vezes em poucas dezenas de horas: lembrava de meu pai, era triste com sua aposentadoria compulsória, mas tinha certo alívio em saber que ele poderia contar comigo, como aconteceu pelos oitos anos a seguir. Uma dia, ela sumiu - e o colchão também. Ver a dor e a miséria do mundo me traz um doloroso sentimento de impotência; não aceitar nem compactuar com nada daquilo, mas nada poder fazer de verdade para atenuar ou melhorar a situação. Ter exata consciência do quanto somos pequenos e passageiros diante do mundo, utilizando o intervalo entre as horas de dor para beber, comemorar gols ou até mesmo sorrir. Somos pequenos e isso é um fato, mesmo que muitos insistam em não ver o óbvio. Tão contundente em ver o sofrimento dos comuns pelo mundo talvez seja, com mínima importância, rever um grande ex-amor ao vivo e atestar que o ex é realmente ex e nada mais, com total desprovimento de tudo o que um dia significou. O nada é assustador. A dor dos outros só não é assustadora para os medíocres, os individualistas, os que mergulharam na decadência do próprio umbigo sujo enquanto pensam na próxima vitrine. Alguma coisa daquela esquina me apavorou por hoje de manhã: saber que nunca mais a mendiga se recuperou, saber que meu pai é uma lembrança, tal como o velho letreiro do Nova Olinda que parece querer beijar o chão imundo. Havia também um restaurante num sobrado, a peso, com bons salgados; o dono era um velhinho simpático, hoje a porta está lacrada. Tudo parece fim. Mais à frente, muitos trabalhadores são apenas corpos cansados numa fila para comprar biscoitos Globo, como reza a tradição do verão. Não sei dizer ao certo, mas alguma coisa me traz “Ironweed”, de Babenco, à cabeça. Talvez “Blue Velvet”, de David Lynch. Talvez o fato de rever a UERJ depois de tantos anos, talvez começar de novo. A esquina continua abandonada e, agora, agravada pelo vazio. Sigo meu caminho debaixo do violento sol que nos atordoa. Faltam poucos passos para entrar em minha sala de trabalho, começar mais um dia de atendimentos, deixar as dores de lado e me vestir como um robô, alheio ao mundo que não seja estritamente profissional, científico. Ouvir The Vails lembra realmente algo de Tom Waits com Thom Yorke, também tem algo de “Ironweed” e isso me leva aos vinte anos longe daqui, aos afagos da Ana, a sessões de cinema gratuitas tendo o imortal Maracanã ao fundo. Uma esquisita e ilógica sensação de que algo bom virá, temperado pelo que já foi longe. O aniversário da Patrícia reforça as lembranças do muito ontem. Janeiro se despede em quase silêncio. Os tempos voam rasantes. Antes da esquina abandonada, noutra rua vi um senhor que tinha certo jeito de meu pai ao sentar à cadeira. Não tinham a menor semelhança física, apenas a postura era a referência. Por um detalhe, parei e quase chorei. É preciso caminhar em frente, mesmo que o nunca mais seja a maior das realidades e a vida pós-vida não me pareça nada além de uma promessa. “Ironweed” é a vida real, ou melhor como ela deveria não ser.
Paulo-Roberto Andel, 28/01/2011