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Thursday, June 28, 2012
Qualquer agora
agora
bebo um guaraná
numa cidade
ocidental
para esculpir vida
num solitário
quarto de hotel-cinco-estrelas
e nenhum luar
tomo um guaraná
e penso numa gata loura
branca
misteriosa e provocante
mas todo o gás que tenho
está num copo de refresco -
na esquina
as doces e belas putas
esperam velhotes
endinheirados
no quarto ao lado
alguém aperta a descarga
do vaso
sanitário
e nada é propriamente pecado
- ah, meu guaraná,
adorável entorpecente de vida
nos intervalos entre sofrer
e sentir dor
e querer e não ter
mas nem por isso alimentar
rancor.
paulorobertoandel28062012
bebo um guaraná
numa cidade
ocidental
para esculpir vida
num solitário
quarto de hotel-cinco-estrelas
e nenhum luar
tomo um guaraná
e penso numa gata loura
branca
misteriosa e provocante
mas todo o gás que tenho
está num copo de refresco -
na esquina
as doces e belas putas
esperam velhotes
endinheirados
no quarto ao lado
alguém aperta a descarga
do vaso
sanitário
e nada é propriamente pecado
- ah, meu guaraná,
adorável entorpecente de vida
nos intervalos entre sofrer
e sentir dor
e querer e não ter
mas nem por isso alimentar
rancor.
paulorobertoandel28062012
Amor de longe, longe
humm, e o meu amor
agora mora tão longe, longe
que nenhum Realengo recebe
aquele abraço
e meu amor não chora
nem dança
mas sorri na mesa de outra cidade
enquanto morro mil vezes
e meu sangue jorra
na lâmina afiada de um solo
de guitarra
um dia o meu amor vai voltar
sem nunca ter ido -
neste dia, nunca terei sido
tão tolo e fútil e esparso -
na verdade, sinceramente
apaixonado:
descobri isso numa esquina da
Pampulha
onde o sol não corroborava
tudo aquilo que senti
feito um jorro d’alma.
ah, o amor,
amor que não dorme nem sonha
e nem dá as mãos num desafio
não oferece versos de uma canção -
basta-se por si mesmo,
dengoso, mas longe de ser
coitadinho.
amor num passo de dança
amor num sonho de valsa
enquanto a Savassi descansa em paz
e outro sonho me atordoa manso
PauloRobertoAndel 280612
agora mora tão longe, longe
que nenhum Realengo recebe
aquele abraço
e meu amor não chora
nem dança
mas sorri na mesa de outra cidade
enquanto morro mil vezes
e meu sangue jorra
na lâmina afiada de um solo
de guitarra
um dia o meu amor vai voltar
sem nunca ter ido -
neste dia, nunca terei sido
tão tolo e fútil e esparso -
na verdade, sinceramente
apaixonado:
descobri isso numa esquina da
Pampulha
onde o sol não corroborava
tudo aquilo que senti
feito um jorro d’alma.
ah, o amor,
amor que não dorme nem sonha
e nem dá as mãos num desafio
não oferece versos de uma canção -
basta-se por si mesmo,
dengoso, mas longe de ser
coitadinho.
amor num passo de dança
amor num sonho de valsa
enquanto a Savassi descansa em paz
e outro sonho me atordoa manso
PauloRobertoAndel 280612
Wednesday, June 27, 2012
Monday, June 25, 2012
Saturday, June 23, 2012
A crise no Paraguai e a estabilidade continental
por Mauro Santayana
Toda unanimidade é burra, dizia o filósofo nacional
Nelson Rodrigues. Toda unanimidade é suspeita, recomenda a lucidez política. A
unanimidade da Câmara dos Deputados do Paraguai, em promover o processo de
impeachment contra o presidente Lugo, seria
fenômeno político surpreendente, mas não preocupador se não estivesse
relacionado com os últimos fatos no continente.
Na Argentina, a presidente Cristina Kirchner enfrenta uma
greve de caminhoneiros, em tudo por tudo semelhante à que, em 1973, iniciou o
processo que levaria o presidente Salvador Allende à morte e ao regime
nauseabundo de Augusto Pinochet. Hoje, todos nós sabemos de onde partiu o
movimento. Não partiu das estradas chilenas, mas das maquinações do Pentágono e
da CIA. Uma greve de caminhoneiros paralisa o país, leva à escassez de
alimentos e de combustíveis, enfim, ao caos e à anarquia. A História demonstra
que as grandes tragédias políticas e militares nascem da ação de provocadores.
O Paraguai, nesse momento, faz o papel do jabuti da
fábula maranhense de Vitorino Freire. Ele é um bicho sem garras e sem
mobilidade das patas que o faça um animal arbóreo. Não dispõe de unhas
poderosas, como a preguiça, nem de habilidades acrobáticas, como os macacos.
Quando encontrarmos um quelônio na forquilha é porque alguém o colocou ali. No
caso, foram o latifúndio paraguaio – não importa quem disparou as armas – e os
interesses norte-americanos. Com o golpe, os ianques pretendem puxar o Paraguai
para a costa do Pacífico, incluí-lo no arco que se fecha, de Washington a
Santiago, sobre o Brasil. Repete-se, no
Paraguai, o que já conhecemos, com a aliança dos interesses externos com o que
de pior há no interior dos países que buscam a igualdade social. Isso ocorreu
em 1954, contra Vargas, e, dez anos depois, com o golpe militar.
Não podemos, nem devemos, nos meter nos assuntos internos
do Paraguai, mas não podemos admitir que o que ali ocorra venha a perturbar os
nossos atos soberanos, entre eles os
compromissos com o Mercosul e com a Unasul. Mais ainda: em conseqüência
de uma decisão estratégica equivocada do regime militar, estamos unidos ao
Paraguai pela Hidrelétrica de Itaipu. O lago e a usina, sendo de propriedade
binacional, se encontram sob uma soberania compartida, o que nos autoriza e nos
obriga a defender sua incolumidade e o seu funcionamento, com todos os recursos
de que dispusermos.
Esse é um aspecto do problema. O outro, tão grave quanto
esse, é o da miséria, naquele país e em outros, bem como em bolsões no próprio
território brasileiro. Lugo pode ter, e tem, todos os defeitos, mas foi eleito
pela maioria do povo paraguaio. Como costuma ocorrer na América Latina, o povo
concentrou seu interesse na eleição do presidente, enquanto as oligarquias
cuidaram de construir um parlamento reacionário. Assim, ele nunca dispôs de
maioria no Congresso, e não conseguiu realizar as reformas prometidas em
campanha.
Lugo tem procurado, sem êxito, resolver os graves
problemas da desigualdade, da qual se nutriram líderes como Morínigo e
ditadores como Stroessner. Por outro lado, o parlamento está claramente alinhado aos Estados Unidos – de
tal forma que, até agora, não admitiu a entrada da Venezuela no Tratado do
Mercosul.
O problema paraguaio é um teste político para a Unasul e
o conjunto de nações do continente. As primeiras manifestações – entre elas, a
da OEA – são as de que não devemos admitir golpes de estado em nossos países.
Estamos, a duras penas, construindo sistemas democráticos, de acordo com
constituições republicanas, e eleições livres e periódicas. Não podemos, mais
uma vez, interromper esse processo, a fim de satisfazer aos interesses
geopolíticos dos Estados Unidos, associados à ganância do sistema financeiro
internacional e das corporações multinacionais, sob a bandeira do
neoliberalismo.
Os incidentes na fronteira do Paraguai com o Brasil, no
choque entre a polícia e os camponeses que ocupavam uma fazenda de um dos
homens mais ricos do Paraguai, Blas Riquelme, são o resultado da brutal
desigualdade social naquele pa[is. Como outros privilegiados paraguaios, ele
recebeu terras quase de graça, durante o governo corrupto e ditatorial de
Stroessner e de seus sucessores. Entre os sem-terra paraguaios, que entraram na
gleba, estavam antigos moradores na área, que buscavam recuperar seus lotes.
Muitos deles pertencem a famílias que ali viviam há mais de cem anos, e foram desalojados depois da transferência
ilegítima da propriedade para o político liberal. E há, ainda, uma ardilosa
inversão da verdade. A ação policial contra os camponeses era e é, de interesse
dos oligarcas da oposição a Lugo, mas eles dela se servem para acusar o
presidente de responsável direto pelos incidentes e iniciar o processo de
impeachment. É o cinismo dos tartufos, semelhante ao dos moralistas do
Congresso Brasileiro, de que é caso exemplar um senador de Goiás.
Quando encerrávamos estas notas, a comissão de
chanceleres da Unasul, chefiada pelo brasileiro Antonio Patriota, estava
embarcando para Assunção, a fim de acompanhar os fatos. Notícias do Paraguai
davam conta de que os chanceleres não serão bem recebidos pelos que armaram o
golpe parlamentar contra Lugo, e que se apressam para tornar o fato consumado –
enquanto colunas do povo afluem do interior para Assunção, a fim de defender o
que resta do mandato de Lugo.
Tudo pode acontecer no Paraguai – e o que ali ocorrer nos
afeta; obriga-nos a tomar todas as
providências necessárias, a fim de preservar a nossa soberania, e assegurar o
respeito à democracia republicana no continente.
Friday, June 22, 2012
Thursday, June 21, 2012
Enquanto Theo nao vem/ Solstício
Enquanto Theo não vem
Moramos num fim de tarde de
sábado, com a chuva tilintando leve nas calçadas de Botafogo, perto da rua Dona
Mariana, enquanto a sala do confortável apartamento de José serve para ruminar
o tempo. No fundo do apartamento, Ana descansa e mostra uma serenidade natural
enquanto Theo não vem, o que deve acontecer daqui a pouco mais de um mês,
queria eu dia vinte e seis para ter um amigo aniversariando comigo – nasci no
mesmo dia de minha amada e inesquecível mãe. Não temos sede, mas falamos das
mesmas bobagens que caem tão bem quando se quer passar as horas, a tal conversa
fiada. E Rafael ri quando perguntam de sua súbita progressão financeira, típica
dos moradores fidalgos do Jardim Botânico, ou ri também dos eternos flashbacks que gastamos com situações
engraçadas de outrora, algumas com graça particular nossa, hermética, que pouco
interessam a transeuntes, desavisados ou estranhos, acho. Quem rirá de nós lá
fora? Num dado momento, quando recordamos de Xuru, algo poderia parecer triste
porque o velho amigo já terá em breve sete anos de falecido, mas não é o caso:
quanto mais anos se passam de sua morte, mais Xuru parece estar vivo, não como
um fantasma ou espírito, mas em presença franca mesmo – seja por piadas,
absurdos e até mesmo coisas sérias. E o velho Flamengo mostra velhos defeitos,
mas vence o Coritiba numa partida que não empolga, mesmo que não precisemos de
tal combustível. Ainda assim, é uma boa diversão. Sempre gostei de futebol e de
vários jogos, os escudos dos times, as camisas. Quando era criança, nos já
distantes anos 70, minha querida mãe não poupava economias para me dar de
presente botões, cuja coleção mantenho até hoje, meus amigos queridos sem alma,
mas cheios de vida. Enquanto Theo não vem, conversamos mais do que prestamos
atenção à partida e também aguardamos ansiosamente a chegada de duas pizzas. Moraes
chegou depois de longa travessia de carro, de Ipanema ao Catete, para deixar
Clarissa e Catarina em algum lugar antes do objetivo. Há um drama com sua
mudança de apartamento; há um drama pela dificuldade em administrar o amor de
seis balzaquianas simultaneamente, todas devendo prestar obediência, fidelidade
e disponibilidade; há um drama porque Brasília sempre será Brasília enquanto o
Rio de Janeiro pode ser vários Rios, cada um a seu compasso. Mas não são dramas
de dor, na verdade induzem a risos, não podia deixar de ser assim. Então nos
vemos ainda tão jovens uns para os outros, mesmo que os sorrisos já não sejam
juvenis, mas constatamos que tanta coisa mudou e passou. Não há mais espaço
para pensar apenas na aula do dia seguinte ou a praia ou o milk-shake: os
compromissos são outros, a rijeza da vida é uma evidência e só existe alívio
porque sabemos que, dentro em breve, Theo virá. Contudo, enquanto Theo não vem,
rimos e ficamos sérios porque isso é a essência humana mesmo, sem cortes. Alguém
lembrou de uma mulher sem predicados físicos, na verdade feiosa, agora casada. E
alguém também lembrou de uma festa em Teresópolis onde tudo foi tão punk que
vômito e tiros foram meros itens do cardápio. E alguém mais lembrou de um jogo
entre Flamengo e Ceará num Calamares vazio da Lopes Quintas em 2002, quando foi
assustador pensar que dez anos escorreram como se fossem dez dias, mas ainda
estamos muito vivos, muito humanos e, assim seja, com muitas milhas a percorrer
pelo caminho. O Calamares foi, provavelmente, o único bar de todo o Rio de
Janeiro onde faltava cerveja a poucos instantes de um Fla-Flu decisivo. Xuru
não chegou a ser tristeza, mas Alex sim: tudo podia ter sido diferente e
evitado. Era para ter sido tudo
diferente, mas isso não podemos mais modificar. Era o caminho. E Rafael falou
de Elisa, Moraes falou novamente de Catarina, as crianças vão crescendo, nossos
destinos viram outros. E então chega o rapaz da entrega com a pizza, e então eu
corto as fatias enquanto Moraes resolve amolar Ana ligeiramente com perguntas
sobre outra balzaquiana, pelo calor do sábado à noite. Ursula me liga, adio
para responder mais tarde, não tem como ela entender, não consigo evitar pensar
em Juliana por uma ou mais razões, todas proibitivas. São coisas de ontem, ja que agora é tudo inverno. Ana dá outro sorriso e
deita em berço esplêndido no sofá da sala, porque é preciso descansar e contar
as horas e os dias, tudo isso enquanto Theo não vem e, com sua graça admirável,
nos empresta um pouco de paz aos corações, tão ansiosos por sua chegada,
mas também tão preocupados com o ir e vir das coisas e das gentes, das horas e
dos momentos, desse estranho - mas empolgante - rumo que denominamos vida.
Solstício
E os mortos
Nem estão mortos
Como se pensa –
É reparar uma velha vitrola
Os vinis que amadurecem
Fotos e letras e fitas
Fazem pensar
Que eles ainda parecem
Por aqui
E isso faz bem:
Você tem medo de John Coltrane
E Jim Morrison e Renato Russo?
Você tem medo de Elis Regina
E Leonel Brizola e Sérgio Macaco?
Quem se arrepende de pensar
No Ivan Lessa?
No Martin Luther King?
Mortos, mortos e muito vivos
Que vagam nas cabeças falantes
Dos que não se conformam
Com a mediocridade na vida.
Nem estão mortos
Como se pensa –
É reparar uma velha vitrola
Os vinis que amadurecem
Fotos e letras e fitas
Fazem pensar
Que eles ainda parecem
Por aqui
E isso faz bem:
Você tem medo de John Coltrane
E Jim Morrison e Renato Russo?
Você tem medo de Elis Regina
E Leonel Brizola e Sérgio Macaco?
Quem se arrepende de pensar
No Ivan Lessa?
No Martin Luther King?
Mortos, mortos e muito vivos
Que vagam nas cabeças falantes
Dos que não se conformam
Com a mediocridade na vida.
Paulo-Roberto Andel, 21/06/2012
Seis minutos de Otto
Não precisa falar
Nem saber de mim
E até pra morrer
Você tem que existir
Não precisa falar
Nem saber de mim
E até pra morrer
Você tem que existir
Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro, são flores de um longo inverno
Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro, são flores de um longo inverno
Isso é pra morrer
6 minutos
Instantes acabam a eternidade
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel
E você me falou de uma casa pequena
Com uma varanda, chamando as crianças pra jantar
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel
D'um quarto de hotel
Num quarto de hotel
Não precisa falar
Nem saber de mim
E até pra morrer
Você tem que existir
Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro, são flores de um longo inverno
Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro meu amor, são flores de um longo inverno
Isso é pra morrer
Você me falou
E eu estava lá e falei
Isso é pra morrer
6 minutos
Instantes acabam a eternidade
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel
E você me falou de uma casa pequena
Com uma varanda, chamando as crianças pra jantar
Isso é pra morrer
6 minutos
Instantes acabam a eternidade
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel
E você me falou
Num quarto de hotel
Num quarto de hotel
Nem saber de mim
E até pra morrer
Você tem que existir
Não precisa falar
Nem saber de mim
E até pra morrer
Você tem que existir
Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro, são flores de um longo inverno
Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro, são flores de um longo inverno
Isso é pra morrer
6 minutos
Instantes acabam a eternidade
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel
E você me falou de uma casa pequena
Com uma varanda, chamando as crianças pra jantar
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel
D'um quarto de hotel
Num quarto de hotel
Não precisa falar
Nem saber de mim
E até pra morrer
Você tem que existir
Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro, são flores de um longo inverno
Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro meu amor, são flores de um longo inverno
Isso é pra morrer
Você me falou
E eu estava lá e falei
Isso é pra morrer
6 minutos
Instantes acabam a eternidade
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel
E você me falou de uma casa pequena
Com uma varanda, chamando as crianças pra jantar
Isso é pra morrer
6 minutos
Instantes acabam a eternidade
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel
E você me falou
Num quarto de hotel
Num quarto de hotel
Wednesday, June 20, 2012
Tuesday, June 19, 2012
Cabeça, cabeça, cabeça dinossauro!
Cabeça Dinossauro é o terceiro
álbum de estúdio da banda brasileira de rock Titãs, lançado em junho de 1986.
História
Lançado em finais de junho de
1986, não só marcou a estréia da parceria da banda com o produtor Liminha como
também garantiu o primeiro disco de ouro para a banda, em dezembro do mesmo
ano[1].
A prisão de Arnaldo Antunes e de
Tony Bellotto, nos finais de 1985, por porte de heroína, e a clara vontade da
banda querer buscar uma unidade sonora – mais precisamente, pesada -
influenciaram na mudança estética que a banda tomou neste LP, após a expressão
de uma sonoridade um tanto confusa (que poderia revelar algumas boas canções)
nos dois álbuns anteriores.
A capa foi baseada em um esboço
do pintor italiano Leonardo Da Vinci, intitulado A expressão de um homem
urrando. Um outro desenho de Da Vinci, Cabeça grotesca, foi para a contracapa
do disco.[2]
Ainda que remetesse muito ao punk
rock, o disco mostra que os Titãs interviam ainda no reggae
("Família"), no funk ("O Quê?", "Bichos Escrotos"
e "Estado Violência") e até mesmo em um cerimonial dos índios do
Xingu (na faixa-título). Nas letras, vários pilares da sociedade foram
discutidos acidamente, expressas a começar pelo título das canções:
"Polícia" (de Tony), "Igreja" (de Nando Reis), "Estado
Violência" (primeira colaboração do baterista Charles Gavin como compositor
dentro da banda). Há também críticas acerca do estado capitalista ("Homem
primata") e os tributos abusivos pagos pela população
("Dívidas").
A banda deu caráter antológico à
obra ao resgatar "Bichos Escrotos", canção que tocavam desde 1982 e
que só pôde ser gravada nesta ocasião. Mesmo assim, a censura vetou a faixa nas
rádios por conta do verso "vão se foder", o que não desencorajou
algumas rádios a tocarem uma versão com a tal frase vetada, às vezes até a
própria versão original, o que acarretava um pagamento de multa.
Das 13 faixas do álbum, 11 foram
executadas em rádios - como únicas exceções as faixas "A Face do
Destruidor" e "Dívidas".[carece de fontes]
Em 1997, a revista Bizz elegeu
Cabeça Dinossauro como sendo o melhor álbum de poprock nacional, isto quando a
banda ainda daria um salto maior comercialmente, com o Acústico MTV.
Em 2012, com o retorno da banda a
Warner Music e com a turnê de comemoração dos 25 anos de Cabeça Dinossauro, o
álbum foi relançado com as 13 canções originais, mais as versões demo delas e a
inédita Vai pra Rua, de Arnaldo e Paulo Miklos.[3]
Titãs
Arnaldo Antunes - voz
Branco Mello - voz
Charles Gavin - bateria e percussão
Marcelo Fromer - guitarra
Nando Reis - baixo e voz
Paulo Miklos - voz, baixo em
"Igreja"
Sérgio Britto - teclados e voz
Tony Bellotto - guitarra
Participações especiais
Liminha - guitarra em
"Família" e "O Que"; percussão em "Cabeça
Dinossauro"; DMX, Drumulator e efeitos em "O Que"
Repolho - castanhola em
"Homem Primata"
Produção musical
Liminha - produtor, direção
artística e musical
Vitor Farias - produtor,
engenheiro de gravação
Pena Schmidt - produtor
Bernardo - assistente de estúdio
Ricardo Garcia - masterização
Gravado no Estúdio Nas Nuvens,
Rio de Janeiro-RJ, em março e abril de 1986
Produção gráfica
Sérgio Britto - capa
Vânia Toledo - fotos
Silvia Panella - arte final
José Oswaldo Martins - corte
Regravações
Polícia: A canção foi regravada
pela banda mineira de thrash metal Sepultura, incluindo-a como faixa bônus da
versão brasileira do disco Chaos A.D. (1993). Na edição de 1994 do festival
Hollywood Rock, os Titãs chamaram os membros do Sepultura (também participantes
do evento) para participarem da performance da faixa ao vivo. Em algumas
ocasiões, o guitarrista Andreas Kisser participa de shows do Titãs tocando
guitarra nessa canção.
Por sua vez, Os Paralamas do
Sucesso, em algumas ocasiões, citam trechos de "Polícia" em sua
canção "Selvagem". A banda liderada por Herbert Vianna ainda regravou
as duas canções junto com a banda paulista, no CD e DVD Paralamas e Titãs
Juntos e Ao Vivo, também com a participação de Andreas Kisser.
Estado Violência: Esta canção,
uma das menos conhecidas do grande público, foi regravada pelo Biquini Cavadão
em seu álbum de covers 80 (2001).
Família: O grupo de pagode Molejo
adaptou a letra para o ritmo de samba, na versão gravada no álbum de 1998. A
introdução de teclados da versão original foi utilizada em uma das faixas, com
o aval dos Titãs.
Cabeça Dinossauro e Porrada: O
grupo de Rock Sanatore gravou releituras dessas músicas em junho de 2011 para
comemorar os 25 anos do lançamento do LP Cabeça Dinossauro. Por ser um single
promocional, essas músicas não são comercializadas, mas podem ser encontradas
no Youtube com facilidade.
Sunday, June 17, 2012
Saturday, June 16, 2012
Macalé!
Gotham City
Aos 15 anos eu nasci em Gotham City
E era um céu alaranjado em Gotham City
Caçavam bruxas nos telhados de Gotham City
No dia Independência Nacional
Eu fiz um quarto bem vermelho em Gotham City
Sobre os muros altos da tradição de Gotham City
No cinto de utilidades as verdades Deus ajuda
A quem cedo madruga em Gotham City
Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal
No céu de Gotham City há um sinal
Sistema elétrico e nervoso contra o mal
Os mortos-vivos eles perambulam em Gotham City
Agora eu vivo o que eu vivo em Gotham City
Chegou a hora da verdade em Gotham City
E a saída é a porta principal
Aos 15 anos eu nasci em Gotham City
E era um céu alaranjado em Gotham City
Caçavam bruxas nos telhados de Gotham City
No dia Independência Nacional
Eu fiz um quarto bem vermelho em Gotham City
Sobre os muros altos da tradição de Gotham City
No cinto de utilidades as verdades Deus ajuda
A quem cedo madruga em Gotham City
Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal
No céu de Gotham City há um sinal
Sistema elétrico e nervoso contra o mal
Os mortos-vivos eles perambulam em Gotham City
Agora eu vivo o que eu vivo em Gotham City
Chegou a hora da verdade em Gotham City
E a saída é a porta principal
Wednesday, June 13, 2012
Os Andrades - Oswald e Mário
Oswald de Andrade
Brasil
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
— Sois cristão?
— Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
— Sim pela graça de Deus
Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval
Relógio
As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão
Erro de português
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
O Sul-Americano Calabar
Torcida indígena a favor de um imperialismo "civilizador". Leitor pequeno-burguês, não será você?
No Brasil há duas correntes de opinião: os que acreditam que a guerra holandesa acabou e os que sabem perfeitamente que ela continua, através de fundings, empréstimos e tomadas de poder por este ou aquele grupo calabarista.
66. Botafogo etc.
Beiramarávamos em auto pelo espelho de aluguel arborizado das avenidas marinhas sem sol. Losangos tênues de ouro bandeiranacionalizavam o verde dos montes interiores. No outro lado da baía a serra dos Órgãos serrava. Barcos. E o passado voltava na brisa de baforadas gostosas. Rolah ia vinha derrapava entrava em túneis. Copacabana era um veludo arrepiado na luminosa noite varada pelas frestas da cidade.
Oswald de Andrade (1890-1954) é um dos mais significativos autores modernistas da literatura brasileira. Participou da Semana de Arte Moderna, editou o jornal "O Homem do Povo" e ajudou a fundar "O Pirralho" e a "Revista Antropofágica". É de sua autoria o Manifesto Antropófago de 1928.
Mário de Andrade
Eu sou
trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no
meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou
trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
A costela de Grão Cão
Eu sou um
escritor difícil
Que a muita gente enquisila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar de uma vez:
E só tirar a cortina
Que entra luz nesta escuridez.
Que a muita gente enquisila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar de uma vez:
E só tirar a cortina
Que entra luz nesta escuridez.
Mário de Andrade (1893 -
1945) foi um poeta, romancista, musicólogo, historiador, crítico de arte e
fotógrafo brasileiro. Um dos fundadores do modernismo brasileiro, ele
praticamente criou a poesia moderna brasileira com a publicação de seu livro
Paulicéia Desvairada em 1922. Andrade exerceu uma influência enorme na
literatura moderna brasileira e, como ensaísta e estudioso — foi um pioneiro do
campo da etnomusicologia — sua influência transcendeu as fronteiras do Brasil.
Tuesday, June 12, 2012
Monday, June 11, 2012
Mais do Ivan Lessa
Darwin e as macacas lésbicas (21/02/2003)
O naturalista inglês Charles Darwin, autor de um dos livros seminais da humanidade, A Origem das Espécies,
publicado em 1859, argumentava que a reprodução de um ser vivo em
outro, crescendo e se multiplicando milhares de vezes, ocasiona
mudanças, tanto em animais quanto em plantas.
Era a propalada Teoria da Evolução entrando em campo, onde ainda bate bola até hoje.
O macaco foi um dos animais mais estudados por Darwin. Concluiu que nós, humanos, dele descendemos, o que muita gente ainda não aceita, nem no sul dos Estados Unidos ou no norte do Brasil.
Entre mil outras coisas, Darwin argumentava que as macacas, por serem fêmeas, eram recatadas, acoplavam-se para reproduzir raramente e escolhiam seus parceiros amorosos de acordo com a melhor propagação genética possível, ao passo que os macacos, como bons machões, eram promíscuos e disputavam no peito, na raça e na valentia suas conquistas.
Contrariando um bordão popular no Brasil dos anos 70, os macacos estavam e estão totalmente por fora.
Após anos de estudo nas selvas orientais, o dr. Paul Vasey, da Universidade de Lethbridge, no Canadá, chegou à conclusão científica de que o bissexualismo é comum entre as macacas japonesas, que, além do mais, vivem competindo com o macho da espécie pelos favores sexuais de outras macacas.
O dr. Vasey faz, no entanto, a ressalva de que o lesbianismo entre as macacas japonesas é uma forma, pouco sutil, é verdade, de atrair seus desinteressados parceiros amorosos.
Mais uma afronta a Darwin: o cientista canadense afirma que o homossexualismo é praticado em pelo menos 300 tipos de invertebrados, o que não era nem considerado, quanto mais explicado por Darwin.
Era a propalada Teoria da Evolução entrando em campo, onde ainda bate bola até hoje.
O macaco foi um dos animais mais estudados por Darwin. Concluiu que nós, humanos, dele descendemos, o que muita gente ainda não aceita, nem no sul dos Estados Unidos ou no norte do Brasil.
Entre mil outras coisas, Darwin argumentava que as macacas, por serem fêmeas, eram recatadas, acoplavam-se para reproduzir raramente e escolhiam seus parceiros amorosos de acordo com a melhor propagação genética possível, ao passo que os macacos, como bons machões, eram promíscuos e disputavam no peito, na raça e na valentia suas conquistas.
Contrariando um bordão popular no Brasil dos anos 70, os macacos estavam e estão totalmente por fora.
Após anos de estudo nas selvas orientais, o dr. Paul Vasey, da Universidade de Lethbridge, no Canadá, chegou à conclusão científica de que o bissexualismo é comum entre as macacas japonesas, que, além do mais, vivem competindo com o macho da espécie pelos favores sexuais de outras macacas.
O dr. Vasey faz, no entanto, a ressalva de que o lesbianismo entre as macacas japonesas é uma forma, pouco sutil, é verdade, de atrair seus desinteressados parceiros amorosos.
Mais uma afronta a Darwin: o cientista canadense afirma que o homossexualismo é praticado em pelo menos 300 tipos de invertebrados, o que não era nem considerado, quanto mais explicado por Darwin.
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2003/030221_ivanlessa1.shtml
Sunday, June 10, 2012
Sobre Ivan Lessa, meu querido ídolo
Fevereiro de 2003. Eu passava por dias bastante complicados.
Rompimento de namoro, meus pais adoentados, a morte de minha tia Ceiça, confusões pelo caminho, as pressões naturais da estatística.
Hora do almoço, resolvi espairecer na internet e busquei um refúgio seguro: a coluna de Ivan Lessa, publicada no JB, na BBC e outros. Defrontei-me com uma sensacional crônica a respeito de macacas – sim, as primatas – lésbicas. Experimentei um dos maiores momentos de riso em toda a minha vida e, num súbito, decidi que falaria com Ivan naquele instante: queria agradecê-lo por melhorar minha vida e, mais do que isso, pelas décadas em que me ensinou a escrever.
O primeiro passo, claro, foi Google. Depois, British Telecom. Um sujeito com a abreviatura I. Lessa, não poderia ter outro. Apertei as teclas e fui parar com minha voz em Londres.
Não dei tempo de Ivan pensar nos primeiros minutos. Falei de toda a admiração que tinha por ele desde criança, quando meu pai me deixava ler “O Pasquim” mas me dizia, sereno, que eu não contasse para ninguém – é que aquilo podia simplesmente dar cadeia. Ria muito de Edélsio Tavares xingando os leitores, depois fui entender a razão. Graças a Ivan, aprendi que escrever com enorme qualidade não precisa passar por sisudez, menos ainda por verborragia que queira simular falsa intelectualidade. Por causa do Ivan, meus amigos de colégio me achavam meio estranho quando eu repetia piadas sobre o presidente Figueiredo – e era estranho mesmo para um sujeito de dez anos de idade num pais em plena ditadura, sempre defendida pelos imbecis de plantão.
Então conversamos. A princípio, ele supreso em como o achei. Narrei o caminho eletrônico. Depois, falamos da Gomes Carneiro, o edifício Majestic onde morou a colossal Lila Bôscoli, mais seu marido Vinicius de Moraes – Ivan também passou por lá. E depois de futebol, o Botafogo, o Fluminense, ele falando dos jogos em General Severiano. E depois Graham Greene e Drummond, à época defenestrado pelo puxa-saco-mor Mainardiota – a quem muito xinguei. Ivan engoliu a seco, depois me mandou um e-mail dizendo literalmente que o sujeito “era um bom rapaz, estava apenas tentando fazer algum barulho”. No fundo, Ivan sabia que não era bem assim: nenhum dos Lessa escreveria qualquer mentira para receber dotes de qualquer conglomerado financeiro. Ah, sim e a história do brasileiro:
- Paulo, estou preocupado, já estamos há uma hora no telefone, isso vai sair uma fortuna, você quer que eu te ligue?
- De forma alguma, Ivan. Se pudesse, eu gastaria todo meu salário conversando com você. Pode deixar.
- Mas tem uma coisa que não me sai da cabeça: esse negócio de você ter ido ao Google, depois na BT... posso te fazer uma pergunta? Em suma, você é brasileiro?
(Risos)
- Sou sim. Nasci na rua do Bispo, vivi 25 anos em Copacabana, moro há 19 no coração da cidade. Nunca saí do Brasil.
- Paulo, isso que você fez não é coisa de brasileiro. Investigar, esmiuçar, tem algo errado aí nessa tua árvore genealógica.
(Risos e mais risos)
Duas horas de telefone, despedimo-nos, trocamos um grande abraço. É muito bom quando um fã aborda um ídolo e é muito bem-recebido.
Anos depois, Ivan veio de surpresa ao Brasil para uma matéria de estreia na revista Piauí. Se soubesse, eu teria ido atrás dele para conversarmos ao vivo. Não deu.
Como a vida não espera, Ivan Lessa morreu anteontem em Londres, aos 77 anos.
Comecei a lê-lo quando ele tinha menos de 40 e tinha acabado de chegar de vez à Inglaterra. Li-o mesmo quando não tinha maturidade intelectual para isso, talvez muito antes de qualquer outro amigo da minha turma. Muitos anos depois, quando deixei de ter vergonha e passei a expor meus textos em público, tanto os “literários” quanto os “esportivos” (tudo entre rigorosas aspas), pensei: faço isso porque um dia me tornei fã de Ivan Lessa.
Olho para trás e acho graça: é sempre bom quando algum amigo querido tem a coragem de dizer que algo que escrevi era parecido com o texto de Nelson Rodrigues, principalmente em termos de Fluminense. Eu mesmo não acho, mas orgulhosamente já passei por esta situação algumas vezes. Agora, qualquer coisa que eu escreva, principalmente se não for tão séria no estilo, é muito mais parecida com as imitações que faço do mestre Ivan do que de qualquer outro escritor – título, aliás, que ele detestava, mesmo muito merecido.
É que Ivan foi um dos maiores escritores da história da literatura brasileira. Um gênio, filho de dois gênios - Orígenes e Elsie. Você conhece outro caso assim?
Fez, do seu jeito, a crônica de fôlego curto, como ele mesmo definiu brilhantemente.
Meus pais me deram livros, livros, revistas, jornais, comecei a rabiscar sozinho em casa. Desenhar as letras, contornar seus pequenos mistérios. Mais tarde, aprendi a ler, aos pouquinhos.
Agora, aprender a escrever, não tenho dúvidas – exceto as de quem realmente tenha aprendido ou não -, foi com Ivan Lessa. Mais tarde, tive a honra de apertar a mão de pessoas como Rubens Figueiredo e Carlito Azevedo – e trocar dedos de prosa com eles -, donde concluo ser um homem de muita sorte no campo das letras.
Hoje, quase 35 anos depois daquelas folheadas em “O Pasquim”, aqui estou para rabiscar sobre este sujeito admirável que, sem saber, mudou a minha vida para sempre. Uma coisa é certa: mesmo que não consiga direito, dado o seu enorme talento, sempre o imitarei. Melhor do que os patifes que tentam imitá-lo mas não admitem. Ou não sabem.
Aliás, agora ele sabe.
Ou não.
Paulo-Roberto Andel
Rompimento de namoro, meus pais adoentados, a morte de minha tia Ceiça, confusões pelo caminho, as pressões naturais da estatística.
Hora do almoço, resolvi espairecer na internet e busquei um refúgio seguro: a coluna de Ivan Lessa, publicada no JB, na BBC e outros. Defrontei-me com uma sensacional crônica a respeito de macacas – sim, as primatas – lésbicas. Experimentei um dos maiores momentos de riso em toda a minha vida e, num súbito, decidi que falaria com Ivan naquele instante: queria agradecê-lo por melhorar minha vida e, mais do que isso, pelas décadas em que me ensinou a escrever.
O primeiro passo, claro, foi Google. Depois, British Telecom. Um sujeito com a abreviatura I. Lessa, não poderia ter outro. Apertei as teclas e fui parar com minha voz em Londres.
Não dei tempo de Ivan pensar nos primeiros minutos. Falei de toda a admiração que tinha por ele desde criança, quando meu pai me deixava ler “O Pasquim” mas me dizia, sereno, que eu não contasse para ninguém – é que aquilo podia simplesmente dar cadeia. Ria muito de Edélsio Tavares xingando os leitores, depois fui entender a razão. Graças a Ivan, aprendi que escrever com enorme qualidade não precisa passar por sisudez, menos ainda por verborragia que queira simular falsa intelectualidade. Por causa do Ivan, meus amigos de colégio me achavam meio estranho quando eu repetia piadas sobre o presidente Figueiredo – e era estranho mesmo para um sujeito de dez anos de idade num pais em plena ditadura, sempre defendida pelos imbecis de plantão.
Então conversamos. A princípio, ele supreso em como o achei. Narrei o caminho eletrônico. Depois, falamos da Gomes Carneiro, o edifício Majestic onde morou a colossal Lila Bôscoli, mais seu marido Vinicius de Moraes – Ivan também passou por lá. E depois de futebol, o Botafogo, o Fluminense, ele falando dos jogos em General Severiano. E depois Graham Greene e Drummond, à época defenestrado pelo puxa-saco-mor Mainardiota – a quem muito xinguei. Ivan engoliu a seco, depois me mandou um e-mail dizendo literalmente que o sujeito “era um bom rapaz, estava apenas tentando fazer algum barulho”. No fundo, Ivan sabia que não era bem assim: nenhum dos Lessa escreveria qualquer mentira para receber dotes de qualquer conglomerado financeiro. Ah, sim e a história do brasileiro:
- Paulo, estou preocupado, já estamos há uma hora no telefone, isso vai sair uma fortuna, você quer que eu te ligue?
- De forma alguma, Ivan. Se pudesse, eu gastaria todo meu salário conversando com você. Pode deixar.
- Mas tem uma coisa que não me sai da cabeça: esse negócio de você ter ido ao Google, depois na BT... posso te fazer uma pergunta? Em suma, você é brasileiro?
(Risos)
- Sou sim. Nasci na rua do Bispo, vivi 25 anos em Copacabana, moro há 19 no coração da cidade. Nunca saí do Brasil.
- Paulo, isso que você fez não é coisa de brasileiro. Investigar, esmiuçar, tem algo errado aí nessa tua árvore genealógica.
(Risos e mais risos)
Duas horas de telefone, despedimo-nos, trocamos um grande abraço. É muito bom quando um fã aborda um ídolo e é muito bem-recebido.
Anos depois, Ivan veio de surpresa ao Brasil para uma matéria de estreia na revista Piauí. Se soubesse, eu teria ido atrás dele para conversarmos ao vivo. Não deu.
Como a vida não espera, Ivan Lessa morreu anteontem em Londres, aos 77 anos.
Comecei a lê-lo quando ele tinha menos de 40 e tinha acabado de chegar de vez à Inglaterra. Li-o mesmo quando não tinha maturidade intelectual para isso, talvez muito antes de qualquer outro amigo da minha turma. Muitos anos depois, quando deixei de ter vergonha e passei a expor meus textos em público, tanto os “literários” quanto os “esportivos” (tudo entre rigorosas aspas), pensei: faço isso porque um dia me tornei fã de Ivan Lessa.
Olho para trás e acho graça: é sempre bom quando algum amigo querido tem a coragem de dizer que algo que escrevi era parecido com o texto de Nelson Rodrigues, principalmente em termos de Fluminense. Eu mesmo não acho, mas orgulhosamente já passei por esta situação algumas vezes. Agora, qualquer coisa que eu escreva, principalmente se não for tão séria no estilo, é muito mais parecida com as imitações que faço do mestre Ivan do que de qualquer outro escritor – título, aliás, que ele detestava, mesmo muito merecido.
É que Ivan foi um dos maiores escritores da história da literatura brasileira. Um gênio, filho de dois gênios - Orígenes e Elsie. Você conhece outro caso assim?
Fez, do seu jeito, a crônica de fôlego curto, como ele mesmo definiu brilhantemente.
Meus pais me deram livros, livros, revistas, jornais, comecei a rabiscar sozinho em casa. Desenhar as letras, contornar seus pequenos mistérios. Mais tarde, aprendi a ler, aos pouquinhos.
Agora, aprender a escrever, não tenho dúvidas – exceto as de quem realmente tenha aprendido ou não -, foi com Ivan Lessa. Mais tarde, tive a honra de apertar a mão de pessoas como Rubens Figueiredo e Carlito Azevedo – e trocar dedos de prosa com eles -, donde concluo ser um homem de muita sorte no campo das letras.
Hoje, quase 35 anos depois daquelas folheadas em “O Pasquim”, aqui estou para rabiscar sobre este sujeito admirável que, sem saber, mudou a minha vida para sempre. Uma coisa é certa: mesmo que não consiga direito, dado o seu enorme talento, sempre o imitarei. Melhor do que os patifes que tentam imitá-lo mas não admitem. Ou não sabem.
Aliás, agora ele sabe.
Ou não.
Paulo-Roberto Andel
Saturday, June 09, 2012
Friday, June 08, 2012
O amor de Clarice
Amor
Clarice Lispector
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
— O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
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