Saí do trabalho com Jocemar e caminhamos pelo que sobrou da Rua da Carioca. Breu, silêncios, portas fechadas. Onde está o Bar Luiz? E a Guitarra de Prata. O Cine Íris sobrevive com seu nicho de fanáticos pela sexualidade, é um zum-zum-zum da transa e as pessoas são felizes, pouco importando se de maneira efêmera ou permanente.
Nossos passos são rápidos e logo estamos no mijódromo, mistura de grade e canto que fica bem no começo da Carioca, perto da loja de malas e a outra, de facas e canivetes. O odor de urina é de matar. A cidade nem liga para a pressão de seus cariocas, apertados por natureza: muitos acham que só pessoas em situação de miséria precisam de banheiro público. Todo mundo deveria urinar em paz, ora.
O Largo da Carioca, que costumava ter multidões às seis da tarde, está frio e esvaziado. O Rio, que já vinha sofrendo desde o golpe de 2016, foi à lona com a pandemia e nunca mais se recuperou. São mais de 10.000 unidades fechadas, salas e lojas, um corte de 80.000 pessoas. Não há rua em que não se leia uma placa de "aluga-se" ou "vende-se". Ninguém se importa.
O que nos resta é espiar livros e discos na banca do Olivar. Fica num dos pontos mais privilegiados do Rio, em frente à. Estação Carioca do metrô. Você pode achar belas oportunidades lá por dois reais cada: Jamiroquai, Altamiro Carrilho, Heraldo do Monte, Rubem Braga, Carlinhos Oliveira. Olivar precisa comprar 500 livros por dia para garantir o giro. Dia desses um cliente quase infartou ao encontrar um cd de Fela Kuti.
Jocemar vai para Niterói, eu preciso jogar na loteria porque é meu único antídoto contra o suicídio. Minha saída é o VLT Central, passando pela Visconde de Inhaúma - a casa lotérica de lá fica aberta até às 19 horas. Chego com folga, sou bem atendido pela bela caixa, faço a fezinha da minha turma e decido dar um pulo rápido no Paladino, para espairecer por alguns minutos. Sou cliente há mais de 20 anos e o único da minha antiga turma a frequentar. A visita foi para não perder a viagem, já que almocei tarde. Assim, vale conferir uns bolinhos de bacalhau com soda limonada.
Os tempos mudaram para melhor no Paladino. Antigamente quase não se via mulheres no salão, mas agora elas dominam a cena. Riem, conversam, estão livres. E eu, tão sozinho, converso com a minha amada pelo Whatsapp - ela já está a caminho de casa, a 50 quilômetros daqui. Sou a única pessoa sozinha numa mesa, mas isso me faz bem: antes só do que mal acompanhado. Só. Não por muito tempo, apenas o suficiente para rangar os bolinhos de bacalhau e tirar fotos: o CD de Altamiro Carrilho, gênio da flauta brasileira, ou de Bill Evans, monstro sagrado do jazz. Ficar sozinho tem suas vantagens: as conversas paralelas podem ser interessantes, escutar outras histórias, outros personagens desconhecidos. E no Paladino com mesas 100% femininas, o que não falta é personagem para todo lado, enquanto respondo Marina e vejo recados no WhatsApp, tudo ao mesmo tempo com a pimenta e o azeite nos deliciosos bolinhos de bacalhau. É sexta, é o fim da semana, é o descanso e recolhimento, mas também medo dos problemas, que não são poucos.
Meia hora depois, me despeço do Paladino lotado e vou para a estação do VLT. Um rapaz em dificuldades pede uns trocados, eu só tenho uma única nota de dez reais e dou, ele agradece aos céus e me sinto um pobre diabo por não poder ajudar ninguém direito - eu me sinto muito humilhado há muitos anos - eu sou um popular de bermuda e chinelos gastos, falando para ninguém -, ele segue feliz pela penumbra, eu espero o trenzinho e cai a noite no coração do Centro, a metros da Rio Branco, a grande avenida onde o que mais se lê é "aluga-se!" por todo lado, em vão. Eu carrego comigo Bill Evans e Altamiro Carrilho, a noite carioca tem um quê de jazz e choro, alguma melancolia - por ali, logo serão dezenas de pessoas em situação de rua. Por um instante me lembro de um grande show de Altamiro com João Donato no Teatro João Caetano, vi no domingo de manhã, faz muito tempo.
Aluga-se, aluga-se, vende-se. Tão difícil quanto ver os anúncios nas janelas e portas da Rio Branco é acreditar que, um dia, aqueles espaços voltem a ser ocupados. O futuro trouxe as compras delivery, as pessoas saem cada vez menos de casa, muita gente não tem um tostão, então como o capitalismo dominante vai funcionar? Menos mal que o trenzinho passa na esquina com a Presidente Vargas e dali se pode ver toda a grandiosidade da cidade, que tudo prometia mas não tem cumprido.
[Num segundo o noroeste breve remete aos garotos na marquise que um dia foram vítimas da Chacina da Candelária.
DESCENDO a Rio Branco, a rua está escura, a noite já está presente, alguns transeuntes vêm e vão enquanto poucos letreiros acesos chamam atenção. É sempre legal ver a fachada do Edifício Edison Passos, Clube de Engenharia, quase na esquina com a Sete de Setembro - tem uma grande placa de cimento em curva. Uma quadra depois, o deserto discreto do Largo da Carioca abriga os grandes sanduíches do Bob's, o novo estilo das lojas do Edifício Avenida Central - muita alimentação, nenhuma livraria. E grandes camelôs de livros, discos e chocolates, todos perto do Olivar. Perto da entrada do metrô Carioca, uma grande movimentação lembra até o Rio de antigamente.
Pensei em tomar um sundae de morango no Santos Dumont, aproveitando o percurso do VLT, mas eu já carregava comigo um bolinho de pote que comprei com a Carla, na Rua dos Inválidos, então acabei desistindo da operação. O aeroporto é sempre um bom lugar para lanchar. Pena que não tenha livros e discos. Então salto na Cinelândia, o trenzinho fica deserto e a velha praça dos grandes cinemas do passado só tem salvação nas luzes do Amarelinho - o Verdinho acabou, o McDonald's não empolga e a luz da região está muito escassa.
Caminho para o ponto regulador do ônibus 247. Logo aparece um, guiado por uma motorista loura e isso é uma vitória sobre preconceitos históricos. Somos quatro ou cinco passageiros na fila de embarque. Outro dia mesmo, éramos duas filas de cinquenta pessoas com três ônibus estacionados ali, vigiados do alto pelo charmoso relógio do Edifício Mesbla - agora, Lojas Americanas praticamente fechadas.
Rapidamente embarcamos, a motorista desce para comprar um saco de pipocas e, antes de sair, conversa com a vendedora. Um passageiro demonstra incômodo com a conversa, está apressado. Ele nem percebe a profundidade do que ela diz: volta e meia, paga do próprio bolso passagens para pessoas carentes indo a hospitais e delegacias. Nesse mundo de gente tão lutadora e pobre, só quem entende a dor do outro é capaz de ajudar. Enfim, o ônibus arranca e para do outro lado do Passeio Público, onde quatro ou cinco garotos estudantes, espertos, sentam juntos e começam a cantar funks populares com excelente afinação, bem na porta de um dos palácios da música brasileira - a Sala Cecília Meirelles, onde já vi grandiosos shows e me arrependo de não ter ido a Chucho Valdés & Gonzalo Rubalcaba, pois tinha o ingresso mas fiquei chateado com minha demissão do emprego. Uma pena.
A loura dirige bem, o 247 passa rápido pela boemia da Lapa, ainda está cedo e em poucos minutos é minha vez de saltar, no perturbador edifício do antigo IML. Eu queria parabenizar a motorista e lhe dizer de sua boa condução, mas ela tem pressa no trabalho e os poucos passageiros querem ir embora logo. Então desço os degraus com alguma dificuldade devido a dores no pé, penso que uma palavra mal colocada pode ser interpretada como assédio, me calo e desisto. De longe, agradeço.
A visão tétrica do IML fica para trás. Na farmácia, um velhinho conversa com um atendente na porta. É preocupante que o galeto ao lado esteja fechado numa sexta-feira à noite, espero que não tenha falido.
Em novo corte a noroeste, pessoas em pleno sofrimento aproveitam a marquise do que sobrou do Bar das Quengas. Pelo menos a padaria do outro lado da rua oferece luzes à esquina.
@p.r.andel