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Monday, November 15, 2021

república

república. hum, ahn, bom, ninguém falou da república hoje. talvez seja porque ela só exista em poucos corações fraternos, bem poucos. quando era criança, meu ideal de república era ninguém passar fome nem dormir na rua, o que eu achava fácil porque produzimos muita comida e temos muita terra, mas não é assim que as coisas funcionam. depois cresci, fiquei adulto, envelheci e a cada hora que passa estou mais longe da minha república. o que me sobrou foi um punhado de boas conversas com camaradas, tentar salvar alguém dos escombros, salvar a mim mesmo do delírio suicida. o que sobrou foi quase nada. a república não pode prosperar com crianças famintas sem carinho de pai e mãe, não pode prosperar em cantos de loucura da cidade em nuvens de crack, não pode prosperar com um homem se arrastando num vagão do metrô enquanto vinte e cinco pessoas olham para seus smartphones como se nada estivesse acontecendo. a república é minha lágrima silenciosa no escuro do quarto antes das onze da noite. a república é a caixinha de mentos da moça solitária tentando vender na porta do restaurante, onde cem gramas custam mais de duas caixinhas de mentos. a república caminha tristonha por entre os grandes prédios de sua antiga capital, cheios de lembranças, tingidos com melancolia e quase desertos de corações em paz. a república é a fresta da cortina azul por onde entra a réstia de luz às cinco da manhã para mais um dia em vão. somos quase todos desprezados e caminhamos firmes a caminho da morte, a nossa única certeza, até que nos enterrem e dentro de duas semanas apenas nossos parentes lembrem-se de nós. eu escrevi cinco mil páginas, escrevi outras dez mil fazendo contas, escrevi cartas de amor inúteis, parabéns esquecidos e abraços sem retorno. a república, ainda não. não, ainda não.