Translate

Sunday, February 25, 2024

Lindoya

Nesta madrugada, descobri que a água mineral Lindoya passou a ser engarrafada em 1972. Curioso, porque eu me lembro muitas vezes de meu pai pedi-la em botequins quando parávamos para nos refrescar, justamente em volta de 1973, 74, então ela era uma novidade e eu não sabia. Isso era antes dele ter adoecido com álcool.

Gostei do nome desde que o ouvi pela primeira vez. 

No botequim, a garrafa era de vidro. Bebíamos em copos americanos. 

Naquela época havia poucas lanchonetes. Você ainda encontrava alguns armazéns e também lojas com animais prontos para abate. Coitados. E não há hipocrisia alguma nisso. Não é porque o peixe e o frango são gostosos que vou deixar de ter pena deles. Voltando, também tinha padarias e vários botequins, botecos estilo pé sujo. Hoje eles são cada vez mais raros, substituídos pelos bares gentrificados. 

Em Copacabana eu lanchava no Rick da Figueiredo Magalhães, cujo proprietário era Ricardo Amaral, o rei da noite. O misto quente deles era delicioso, crocante como deve ser. Também lanchava misto quente no Boni's, que continua intocado na esquina de Siqueira Campos com Avenida Copacabana. 

O que fez meu pai sucumbir ao alcoolismo? Fácil: derrocada financeira, desgosto pelo irmão exilado do Brasil, tristeza e problemas psicológicos vindos ainda da infância como órfão de pai e mãe. Agora é fácil entender isso, mas naquela época eu só sofria e ponto. Ainda lembro dele calmo e silencioso com uma garrafa de Lindoya em cima do balcão. Eu bebia também, além de uma Coca Cola que hoje chamam de KS. 

Tudo isso me veio à tona porque acabei de tomar um gole de água e descobri que a garrafa de casa era Lindoya. Cada dia tem uma marca na padaria. Agora as garrafas são recicláveis e quase estouram à toa, de tão fininhas. E fico assustado porque qualquer lembrança já tem quarenta ou cinquenta anos. Tudo bem, a vida é breve e precisamos aceitar o processo.

Oh, Susanna!

Um dos grandes baratos na internet é justamente você conseguir rever pessoas e personalidades que estão sumidas da mídia há certo tempo, gente que você não viu nem ouviu mais.

Por exemplo, um dia desses eu estava passeando pelo Instagram quando me deparei com ninguém menos do que a Susanna Hoffs. Belíssima, sessentona, cantando e postando fotos de seu cotidiano, respondendo aos fãs com toda educação e simpatia. Naturalmente alguém vai perguntar quem é Susanna Hoffs, por motivo justo. Os olhos e ouvidos mais atentos dos anos 1980 vão responder: era a cantora das Bangles, banda de pop que nem era lá essas coisas todas, mas que fez um sucesso enorme para canção “Walk like an egyptian”. E, claro, o grupo tinha quatro integrantes gatas que deixavam os adolescentes em puro êxtase - e Susanna era a referência.

Outro caso: no Facebook, você pode seguir a página de Ferrugem, que não é o sambista tricolor, mas sim o mitológico ator mirim que dominou a TV brasileira nos anos 1970 e 1980. Ferrugem ainda continua em plena atividade em rádio, podcasts etc, embora não esteja na TV aberta com regularidade. 

Enquanto isso, a própria TV tem usado o expediente de resgatar artistas populares que, de alguma forma, já não têm a mesma visibilidade de outrora. É o caso de Serginho Groisman. O apresentador tem investido em programas temáticos nas noites de sábado. A turma da Jovem Guarda, os veteranos do sertanejo, o pessoal da música romântica em inglês. Sábado passado mesmo rolou de Perla a Ednardo, passando por Márcio Greyck, Tony Tornado e Adriana. Silvio Brito incendiou a galera ao vivo e o próprio Tony, aos inacreditáveis 94 anos, fez uma apresentação emocionante de "BR-3”, o clássico que o consagrou instantaneamente no V Festival Internacional da Canção de 1970. 

Quando a gente revê essa turma viva e ativa, um pensamento é inevitável: temos um exército de grandes artistas que não somente precisam ser redescobertos, como também têm pressa porque a ampulheta tem cada vez menos areia desabando. Já escrevi o mesmo aqui sobre o rock internacional. São muitos os septuagenários e octogenários ainda em atividade. Ao mesmo tempo que é maravilhoso ter tanta gente boa, todos sabemos que daqui a algum tempo vai ter uma grande revoada, por que o tempo não para e é inevitável. 

Outra coisa também faz pensar: continuidade. Quem está fazendo a nova grande música popular brasileira? Deve ter muita gente boa nos porões da internet que nunca vimos ou ouvimos falar. Os tempos mudaram, você já não tem mais os grandes festivais, nem a grande consagração popular, o rádio é diferente. Assim, é certo que a nova música brasileira não terá ídolos do mesmo tamanho que ainda temos. Lá fora basta dizer que, nos grandes festivais de rock pelo mundo, quem ainda dá as cartas são as bandas veteranas, chamadas de “rock clássico”, com seus integrantes geralmente acima dos 70 anos. 

Tudo bem. Sem lamentações. Vamos aproveitar. Que seja eterno enquanto dure. Susanna Hoffs ainda é muito gata. 

Wednesday, February 21, 2024

um dia de depressão

Está tudo bem. No seu pequeno mundinho todos estão felizes, até porque eles não se importam com ninguém além de si mesmos. Ninguém tem qualquer sofrimento. A vida até parece uma festa. Será que é isso mesmo? Às nove da manhã? 

Então você olha para o teto e tenta pensar numa saída, mas ela não existe. É seu dia de folga e é como se fosse jogado fora. Você chora, se desespera, sabe que tem problemas praticamente insolúveis, sabe que talvez o melhor seria que tudo acabasse mas você não tem forças nem para cometer suicídio. Enquanto você chora desesperadamente, pessoas que sabem do teu sofrimento mandam mensagens de auto ajuda ou falam de coisas que são inalcançáveis para você. Elas sabem que você está na merda em todos os sentidos, mas o que isso importa para elas? Nada. Absolutamente nada. E você sabe disso. Se você morrer hoje, elas vão colocar carinhas de choro, dizer "meus sentimentos" sem sentimento algum e, se você tiver sorte, alguém cuida do seu enterro. É o máximo.

Você olha para o teto e tenta pensar numa saída, mas ela não existe sem o apoio de terceiros. Alguns deles, quando precisaram, tomaram muito tempo e trabalho teu, mas agora você é simplesmente um pária, um mala que deve ser evitado e silenciado. As mais hipócritas falam até de democracia e inclusão, mas não para o seu caso. Você não tem mais utilidade. 

E quando você olha para o teto, tem a exata noção de que só se salvará por muita sorte, inclusive porque já não tem nenhum amigo, pelo menos vivo, e os espíritos não têm dado conta de te dar a mão. 

Olhe para trás. Quanta coisa foi feita e vivida, mas agora parece tudo em vão, porque você não tem forças para limpar a casa, lavar a roupa, arrumar o caos, sequer pagar as contas, podendo escolher se prefere pular pela janela ou morar na calçada, depois de tanto trabalho e estudo, tanta aplicação, tanta generosidade que não significou nada que não seja derrota. 

O teto. Ele esconde o céu, o infinito. Melhor assim. 

A janela e a cortina fechadas, melhor assim. 

Espie as redes sociais, com seus patetas ditando normas de comportamento. Você precisa ser forte. Ninguém deve saber da tua tristeza ou derrota. Você precisa ser superior e enganar a todos, inclusive a sim mesmo. 

Quando se dá conta, o dia passou, você não almoçou, não tomou os remédios, não se cuidou e talvez este dia a menos seja até alívio. É melhor chorar sozinho do que ouvir idiotices em vão, palavras vazias que muitas vezes são ditas apenas porque o orador quer se sentir bem. Os religiosos de araque dizem que você precisa de socorro espiritual, porque essa linguagem é sempre mais cômoda para eles. Tudo que você queria era uma pequenina casa sem luxo, com uma TV, celular, alguns livros e discos, geladeira e cama. Só. Você queria ver a TV em paz, sem notícias permanentes sobre assassinatos, chacinas e guerras que fazem muita gente sofrer loucamente. Você só queria ir uma vez ou outra ao cinema ou ao museu, ou a algum show barato, algum drinque num bar modesto, mas você não tem nada disso. Duas calças, dois pares de tênis, um chinelo, duas bermudas, camisas. Bastava isso. Ter dois ou três amigos de verdade, amores de verdade, camaradagem e solidariedade de verdade, mas nada disso existe. Uma família? Era boa, mas acabou. Só ficaram as lembranças. 

Abra o WhatsApp. Está tudo bem. Todos estão felizes. Você teve azar: num mundo de hipocrisia, justamente você foi o escolhido para dizer o que realmente sente. 

(continua)




Monday, February 19, 2024

No Leme

(original 05/2020)


O que será que está acontecendo no bairro que nunca dorme? 

[o que foi feito dos moradores do edifício Elmar, demolido nos anos 1980?

A pizzaria Sorrento está fechada para sempre. 

O silêncio do Leme é uma montanha sem sinais aparentes de rajadas de tiros. 

O quartel não mudou: é silencioso pela própria natureza. 

No caminho dos pescadores há uma placa em homenagem ao ator e ex-lutador Ted Boy Marino, que foi morador do bairro por muito tempo. Mais à frente o mar pode ser desafiador e mortífero, tal como numa noite de 1988, quando levou o bailarino Graham Bart para o nunca mais. É preciso ter cuidado com as ondas impetuosas. 

O escritor Valterson Botelho dorme tranquilo em seu apartamento cheio de homenagens ao Fluminense, perto do Sindicato do Chope, vizinho de Nelson Rodrigues Filho, outro baluarte. Telê Santana também morava pelos arredores. Um reduto de tricolores. 

No Sindicato, pouco antes de se tornar uma mega celebridade nacional, Zeca Pagodinho gostava de beber chope garotinho em pé. Numa mesa próxima, jovens ex-alunos da UERJ gostavam de fazer piada pedindo testículos de boi à milanesa, só para verem as reações das respeitáveis mesas vizinhas. 

[Como foi possível o edifício Elmar ter empenado? Agora o supermercado Zona Sul está lá. Que fim levaram os moradores? 

Grandes jogos de futebol de praia: Copaleme, Areia, Embalo, Colorado. Babilônia e Chapéu Mangueira formando craques para o mundo. 

Ali atrás, na Gustavo Sampaio, é fácil ver Jairzinho, seja trazendo o pão ou sorvendo um trago. Tricampeão mundial em 1970, é o único jogador que marcou gols em todas as partidas de uma Copa do Mundo. Nós temos os nossos maiores da Terra, e eles vão à padaria! 

Antes, muitos outros viveram o charme do irmão de Copacabana em seus apartamentos e/ou nas boates locais, nos anos 1950, 1960 e 70: os atores Jardel Filho e Anselmo Duarte, o menestrel Juca Chaves, a Miss Brasil Martha Rocha, as cantoras Marlene e Emilinha Borba, o pintor Candido Portinari, a escritora Clarice Lispector, o showman Chacrinha, o dramaturgo Nelson Rodrigues, o presidente Juscelino Kubitschek, o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, a musa Marina Montini, o maestro Egberto Gismonti, o monumental Milton Nascimento, as atrizes Beth Goulart e Rogéria, a multi artista Zezé Motta, a dark singer Waleska. Até Robert de Moto deu as caras por lá, Omar Shariff também. E quem mais poderia definir melhor o cenário do que Elke Maravilha? 

“O Leme é uma cidade pequena dentro de uma cidade grande. Não é um bairro de passagem, tenho vizinhos. Cheguei, gostei e fiquei”.

[Marina Montini, a musa de Di Cavalcanti 

Noites inesquecíveis no Sacha's, Vogue, Fred's, Régine's e outros, muitas vezes registradas pelo colunismo social de Jacintho de Thormes ou Ibrahim Sued. La Fiorentina ainda está firme e forte. O Marius também. O Bar do David no Chapéu Mangueira. 

Quando se chega à esquina da praia com a avenida Princesa Isabel, fica o imponente Hotel Hilton, portal do Leme. Mas não adianta: a sede da mais famosa cascata de fogos do réveillon carioca vai se chamar Meridien para sempre. 

@pauloandel


A jovem que não disse adeus

(original 01/2019)

Por alguns meses de 1973, morei com meus pais em Cascadura. Até hoje sei qual é o prédio e, se não estiver enganado, morei no penúltimo andar, sem elevador e com poucos andares. Estudei no Colégio Pinguinho de Gente, o primeiro em minha vida, ali perto. E foi em Cascadura que, pela primeira vez, me lembro de ter tirado fotos coloridas com minha mãe. No mesmo prédio, minha mãe inventou minha primeira namorada, Ilana. Eu tinha cinco anos de idade...

Eu tinha a Lúcia, que cuidava de mim. Lembro que ela falava pouco e ria bastante, mas envergonhada. Colocava a mão na boca e ria. Acho que tinha vindo de Minas. Naqueles tempos todos fazíamos refeições à mesa juntos. Ela não era uma funcionária, uma babá, mas uma familiar. E minha mãe pensava o mesmo: lembro vagamente de tentar demovê-la de usar o uniforme que a Lúcia fez questão na hora da contratação, sem sucesso. Minha mãe, cuja vida dá um livro dos bons, humilde e sofrida, precisava de uma funcionária mas nem de longe agia como uma patroa: tivemos várias em casa e testemunhei. Mas dela minha mãe gostava demais. 

Certa vez, eu estava triste porque o Multi-Homem tinha sumido. Lúcia havia ido ao mercado e minha mãe estava enlouquecida porque não achava o brinquedo. Meia hora depois, Lúcia volta, minha mãe pede a ela pra achar o desgraçado e a vê quase rindo, mexendo numa latinha de Nescau pequeno, abrindo e... tirando um Multi-Homem recortado de alguma revistinha ou figurinha, que não tinha mais de um centímetro de tamanho. Minha mãe caiu na gargalhada, todo mundo riu e voltei a brincar com meu herói de papel. 

Éramos felizes dentro do possível, eu acho. Meu pai saía bem cedo, só voltava para o jantar. Minha mãe às vezes o ajudava, noutras vezes estava em casa. E Lúcia acompanhava minhas aventuras com o Multi-Homem, o Zé Colmeia, o Fred e outros seres míticos. 

Numa manhã, Lúcia desceu para fazer compras. Já tínhamos tomado café, eu não tinha aula por algum motivo. Minha mãe lhe deu a lista e o dinheiro, ela desceu mas antes fez questão de colocar o uniforme, que a mãe detestava. E desceu. Lá perto, no Largo de Cascadura, tinha algum supermercado. 

O tempo começou a passar, Lúcia não voltava, deu uma, duas, três horas e nada. Minha mãe, bem nervosa, me puxou pela mão e descemos para procurá-la. No caminho, comprou fichas para telefonar no orelhão (só ricos tinham telefone em casa) e pedir socorro a meu pai. Ele largou a loja em Madureira com o sócio e veio. Os dois estavam desesperados e sei porque, apesar da pouca idade, tinha sido a primeira vez que eu os via daquele jeito.  Quando escureceu, eles me deixaram na vizinha, a mãe da Ilana, e foram para a delegacia. Os dois desesperados e tristes. Para piorar, meu pai era fichado como subversivo devido à militância de meu tio, a época exilado em Israel. 

"Minha senhora, como é que eu vou saber de uma empregada que sumiu? Isso é coisa de homem, fugiu de paixão". 

(Uma resposta tão estúpida que tem tudo a ver com o Brasil negacionista).

Quem ia contestar policiais numa delegacia em plena ditadura de Médici?

Voltaram desolados. No dia seguinte, meu pai não foi trabalhar: peregrinou pelo bairro em busca de alguma pista. Ninguém sabia dizer, ninguém viu, ninguém sabia. Eu fiquei triste mas em minha ingenuidade de criança achei que ela logo voltaria. E minha mãe chorava, chorava, aquilo me deixava tão triste quanto agora, quando relembro o acontecimento. Ela desapareceu com a roupa do corpo, deixou suas coisas, documentos, nenhum contato de parentes, nada além de alguém dizer que era de Minas. Nada. Semanas e semanas de perguntas, agonia, eu vendo meus pais sofrerem em vão. 

Meses depois, voltamos para Copacabana. Fui morar na Santa Clara, estudar no Pernalonga (de onde fui convidado a me retirar por "comunismo"). Voltamos a ter funcionárias em casa, mas nunca mais para cuidar de mim. Muitas vezes depois, minha mãe chorou ao recordar a história. Até meu pai, que muitas vezes abafava suas emoções por completo, se emocionava. 

Esta é uma história de 1973. São 46 anos em tese. Meus pais estão mortos. Nunca mais vi Lúcia. Talvez eu seja o único sobrevivente daqueles meses de pequenas felicidades, trabalho, estudo a começar e o mundo pela frente. Ou um mundo interrompido, voluntária ou criminosamente falando, o mais provável. Vivi para contar e chorar disso. 

Já ouviu falar que naquele tempo era bom, não é? 

Mentira escrota. 

Todo mundo da minha infância e juventude sabe de alguém ou ouviu falar de alguém que subitamente desapareceu (foi "desaparecido").

Vejo meus pais chorando de novo. Imaginem a minha dor. Mas amanhã vai ser outro dia.  

Só gostaria que Lúcia soubesse que foi muito importante na minha vida. Ainda me lembro direitinho do Multi-Homem de um centímetro.

Sunday, February 18, 2024

A ruiva da Siqueira Campos

Ela era linda. Volta e meia estava de vestido curto preto, que contrastava com sua pele clara e os cabelos from hell - as mulheres são belas de todos os jeitos, mas as ruivas têm um charme à parte. 

Era batata. Mesmo. Frita. O bar ficava na Siqueira Campos, embaixo da casa de um amigo meu da faculdade, então volta e meia marcávamos lá para comer e beber algo, às vezes voltando da aula. Chamava-se Fry Chicken e, de acordo com o nome, sua especialidade era frango frito - delicioso, aliás. Ótimo atendimento, preço justo. Ali perto ficava o Let It Be, lendário bar de shows da Copacabana mais underground, digamos assim, quase na esquina com a Travessa Santa Margarida. 

Quando o amigo marcava para que eu o esperasse lá, invariavelmente eu chegava e lá estava a ruiva dos sonhos. Isso aconteceu muitas vezes e ela estava sempre sozinha à mesa, algo não tão comum no começo dos anos 1990. 

Ai, minha maldita timidez: às vezes parecia que ela olhava para a gente ou para mim, mas até aí nenhuma surpresa porque o bar estava quase sempre vazio, embora fosse ótimo. Claro que eu jamais iria à sua mesa: perdi a conta das garotas que me beijaram e depois me perguntaram porque eu não tinha tomado a iniciativa. Bom, o que importa é que ela era linda demais, charmosa demais e misteriosa. Vinha, sentava, bebia um pouco, quase não comia. Em algumas ocasiões escutava o walkman - que sons a encantavam? Naquele tempo eu ouvia de tudo, feito hoje: Alice in Chains, Stone Temple Pilots, Tom Jobim, Candeia. 

É, é verdade: ela olhava sim, mas acho que era por curiosidade em saber quem estava na outra mesa. Nunca sorria. O ar severo deixava seu rosto delicado ainda mais belo. Frequentemente parecia escrever coisas. 

Na outra mesa, eu falava bobagens desinteressantes por meses com meu amigo ou ficava mudo, sozinho. Sonhando com a carteira assinada no estágio e o diploma ainda distante - dois anos depois ele veio. 

Depois de umas vinte vezes, o platonismo acabou: parei de frequentar o bar porque me mudei, ele próprio fechou depois de algum tempo - uma tremenda injustiça, porque era ótimo - e ficou por isso mesmo. Anos depois, meu amigo fez chacota: "Lembra daquela gata que ficava te olhando? Agora está na novela". Fez sucesso, ficou mais linda, continua por aí. O tempo só lhe fez bem. 

Oh, bares de Copacabana onde um jovem e desconhecido candidato a cronista admirava uma linda jovem branquinha de cabelos cor de fogo, num vestidinho preto - ou de camiseta branca simples - enquanto ela parecia fitar o horizonte enquanto ouvia sons secretos e escrevia num diário. Era o começo dos anos 1990, onde os jovens de vinte e poucos anos de idade sentiam-se invencíveis, mas na verdade eram mesmo uns românticos enrustidos. 

Se fosse hoje, chamariam a linda jovem ruiva de crush. 

@pauloandel

Originalmente publicado em 2020

Triste fim de Lima Barreto (por Di Cavalcanti)

(compartilhado pelo escritor e poeta Ricardo Soares)


- Lima Barreto, olhe aqui o Di Cavalcante.

Foi assim que o Schettino me levou até o grande romancista do Triste Fim de Policarpo Quaresma.

Lima Barreto olhou-me com seus olhos mortos e um sorriso de mofa no canto dos lábios:

- Vi os seus Fantoches da Meia-noite, com o prefacinho do Ribeiro do Couto. Agradeço-lhe o exemplar que me deixou.

Estávamos sentados num cafezinho da rua Sachet. Eu me sentia um pouco  contrafeito entre o livreiro e o escritor. Fiquei calado.

Foi Lima Barreto quem resolvera abrir-se a respeito do meu álbum de desenhos que Monteiro Lobato acabava de editar. Para ele, o Lobato demonstrara ter muita coragem, “porque no Brasil essas coisas de livros de luxo não dão resultado, aqui só vinga o futebol.”

Tinha raiva de futebol.

Schettino falou do prefácio de Ribeiro do Couto.

- Está bom o prefácio – disse Lima Barreto com certa secura.

Procurei desviar a conversa para outro assunto. Comecei a falar dos subúrbios cariocas, de meu desejo de fazer desenhos sobre a vida daqueles recantos tão pitorescos. E, através da evocação dos subúrbios , animou-se minha primeira conversa de botequim com Lima Barreto.

Os Fantoches da Meia-noite saíram em fins de 1921. Em fevereiro de 1922 realizou-se a Semana de Arte Moderna. Acredito que meu primeiro encontro com Lima Barreto data de meados de 1922. Foi também nessa época que conheci Capistrano de Abreu, por intermédio de Paulo Prado.

Ano extraordinário aquele, cheio de grandes aventuras! Abandonei São Paulo logo depois da Semana. (...)

Soldado na Vila Militar e morando em Botafogo, eu acordava de madrugada para chegar as seis horas no II Regimento. Era um inferno! E posso dizer, hoje, que era um inferno adorável.

Numa dessas minhas viagens para a Vila Militar, encontrei no trem Lima Barreto, que voltava para casa, cambaleante, sujo, cheirando a cachaça. Meus companheiros, reservistas como eu, olharam com desdém para aquele triste mulato e ficaram surpresos de ver que eu o acolhia com simpatia e mesmo com respeito.

- Quando chegar Engenho de Dentro, avise-me! – disse o boêmio espichando no banco e caindo num torpor barulhento, entre arrotos e uivos.

Queria saltar no Engenho de Dentro para continuar bebendo.

Estava no fim da vida o grande Lima Barreto. Muitas vezes conversei com ele na Livraria Schettino. O livreiro era o seu grande amigo.

Certa manhã, em minha companhia, Schettino abriu a pequenina loja da rua Sachet. E eu vi, espantado, emocionado, com estes olhos que sabem ver , o Lima Barreto emborcado sobre um montão de livros que ele atirara das estantes ao chão. Serviam-lhe de cama e estava roncando.

Schettino olhou com os olhos rasos de água. E eu confesso que, ao recordar aquela cena, me vem um nó na garganta.

O drama da vida de Lima Barreto sempre me comoveu profundamente. As inúmeras vezes que conversei com o grande romancista, não raro em companhia de Enéas Ferraz, Schettino, Agripino Griecco, pude observar que atrás daquele desleixo se escondia alguma coisa de muito puro, nobre, forte. Sua revolta era contra a sordidez e as aparências hipócritas da sociedade, não contra o homem. Para este, ele guardava todas as simpatias, dedicando aos humildes todo o seu amor.

Hoje, Lima Barreto esta ao lado dos nossos mestres do romance: Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Manoel Antônio de Almeida. A nova geração sabe admira-lo. Seus livros são reeditados. Seu nome é lembrado sempre.

Teve um triste fim o grande Lima Barreto. Enéas Ferraz me telefonara.

- Você não vai ao enterro do Lima?

Subi a rua esburacada do subúrbio. Ele morava em Todos os Santos.

No porão da casa, o pai louco gritava. Chovia muito quando saímos com o caixão pesado escorregando de nossas mãos. O vagão mortuário levou-o da estação suburbana ate a Central.

Lembro-me da cara branca de adolescente afoito de Enéas Ferraz a olhar para o caixão do seu ídolo. E me lembro também de dois guardas-civis solenes, um deles irmão do morto, montando guarda ao corpo no vagão sacolejante.

Da Central, num carro de terceira classe, o corpo seguiu ate o cemitério São João Batista. Era pequeno o acompanhamento. No cemitério, entre os amigos humildes do morto, entre os que tinham a cara inchada pelo álcool e cortada pela insônia, vi alguns intelectuais. Felix Pacheco, Olegário Mariano, Agripino Griecco.

A chuva não parava. A terra caia, enlameada, sobre o caixão negro.

Nunca me esquecerei do grande Lima Barreto, que eu conheci já nos seus últimos anos de vida. Lembro-me dele com uma ternura imensa.

Como uma caricatura dolorosa, e como se eu o estivesse vendo, encostado a uma porta modesta de botequim, a sorrir para a imbecilidade anônima dos bem-confortados...

Di Cavalcanti, Folha da Manhã, 27/6/1943

Wednesday, February 14, 2024

Tem, mas acabou

Acabou. 

Acabou a grande festa tão esperada, tão importante para aliviar o nó na garganta de tanta gente. 

Acabou a farra, a rua, a azaração, o da vida nada se leva, a paixão de ocasião, o tesão livre, a cantoria para espantar os males. 

Ainda tem alguns biscuits no final da semana ou sexta-feira, mas acabou. 

Tem, mas acabou. 

Depois dos dias de fantasia, bons até para quem não é da folia e prefere o repouso recluso, a gente para, olha o dia ensolarado mas sabe que acabou. A realidade está de volta, e para 99,999999% das pessoas ela não é nada fácil, muito pelo contrário: é dura, injusta e perversa. 

Para alguns, fica a lembrança de dias de alegria e sonho. Para outros, só o sentimento de felicidade sem maiores recordações. E torcer pela próxima, pela próxima, pela próxima felicidade porque no fim das contas a gente vive assim, adiando o viver para o próximo fim de semana, o próximo feriado, o próximo Carnaval. No mundo moderno, viver é postergar, é escavar Serra Pelada devastada sonhando com uma pepita impossível. 

A gente vive adiando o sonho, as coisas, as realizações, contando muitas vezes só com a sorte que não virá. É uma equação injusta. 

A festa acabou, o ano finalmente começou. E ele não tem o mundo perfeito dos comerciais de TV, a vida perfeita dos perfis nas redes sociais. Pelo contrário: o fim da festa é o infeliz anúncio de que estamos quase todos de volta à merda. Alguns fingem que não estão, mas chega a ser engraçado como tentam disfarçar o indisfarçável - e não é vergonha alguma ser pobre, anônimo e até fracassado profissionalmente porque é o que o grande irmão capital nos impõe, de cima pra baixo. Afortunado é quem consegue escapar dessa máquina de opressão e humilhação.

Vem aí o ano novo, duríssimo para muita gente, talvez o último para muita gente em pleno voo. A gente nunca sabe, mas é sempre amargo se despedir de quem deveria ficar por aqui mais tempo - e ele, tempo, escorre, voa longe, é implacável. Quando olhamos para a mesa, várias  cadeiras ficaram vazias.

Ano tão novo que nem tem mais a velha apuração do Carnaval na Sapucaí. Foi-se o tempo. 

Para quem puder, feliz ano novo. Todos sabemos que não é fácil, mas o jeito é sonhar porque sem sonho tudo fica difícil demais. Sonhar e seguir em frente até onde der. Com menos peso, menos gente falsa e procurando algum mínimo senso gregário, esse nobre elemento tão raro no cotidiano. 

@p.r.andel

Sunday, February 11, 2024

Damo Suzuki, gigante

No final dos anos 1960, o rock da Alemanha começou a se espalhar pelo mundo e a influenciar muitas bandas em diversos países. Nomes como Neu!, Can e Kraftwerk marcaram a história da música popular para sempre.

O Can misturava elementos do jazz de vanguarda com psicodelia e minimalismo. Uma receita única, mas que repercutiu no som de muita gente bamba, como por exemplo David Bowie, Radiohead e Talking Heads. 

Especialmente quando incorporou seu segundo vocalista, o japonês Damo Suzuki, descoberto pelos integrantes originais quando cantava na rua (vivia em comunidade hippie), e convidado a participar do conjunto para uma apresentação no mesmo dia, o Can estraçalhou de vez. Fez três álbuns dos mais importantes do rock, a saber: “Tago Mago” (1971), “Ege Bamyasi” (1972) e “Future Days” (1973). Todos liderados pelo estilo não linear de Damo, cantando em inglês, japonês e uma língua própria, inventada, que casou perfeitamente com a ousadia artística do Can. 

A seguir, Damo deixou o grupo. Iria se tornar Testemunha de Jeová e casar. Afastou-se por bom tempo da música, mas depois retornou o seu trabalho cada vez mais experimental. Quando precisava viajar para se apresentar em outros países, tocava sempre com músicos locais, sem ensaios, no puro feeling. 

Curioso é que, por várias declarações dadas ao longo do tempo, Damo Suzuki parecia não ter ideia da importância que teve para a história da música, ou que talvez não se importasse. Em relação ao próprio Can, disse: “Não sei porque falam tanto disso, foi uma época de minha vida, muito boa, que durou uns seis anos, mas isso é 10% da minha vida, é a menor parte”. Claro que o tempo da produção artística não é necessariamente o tempo cronológico. 

Tive uma experiência ótima com Damo Suzuki há uns 10 anos. Quando ele veio tocar no Brasil se apresentou no Rio de Janeiro, mas perdi a data do show, que foi muito mal noticiado. Indignado, resolvi mandar um e-mail para o cantor, só para dizer de minha frustração por não tê-lo visto. Esperava uma resposta protocolar da assessoria de imprensa, para minha surpresa foi o próprio Damo quem escreveu. Simpaticamente, mas também com certa dose prudente de ceticismo, ele me disse que não sabia quando voltaria ao Brasil, porque dependia de várias coisas, estrutura, calendário para se apresentar em vários lugares e fechar uma agenda, mas agradecia meu contato e interesse. Foi lamentável que eu não pudesse ter ido ao show, fiquei bem triste, mas ao mesmo tempo fui compensado: no mundo das celebridades, que muitas vezes não chega nem perto dos fãs, um dos maiores artistas do meu tempo me responder um e-mail foi gratificante. Um artista de verdade, sem vaidade nem concessões, de espírito livre. 

Damo Suzuki faleceu semana passada discretamente, no sábado de carnaval. Tinha 74 anos e vinha tratando de câncer há tempos. Não deu tempo para o novo show no Rio. 


Thursday, February 08, 2024

Notícias populares 2

A ESCATOLÓGICA GANG DO PIRIRI

RIO DE JANEIRO - No fim da noite de ontem, foi desmantelada e presa uma quadrilha especializada num crime dos mais emporcalhados que se tem notícia na cidade: a famigerada "Gang do Piriri". Policiais da 5a DP no Centro detiveram os nacionais Celso Canário de Mendonça, o "Sujismundo"; Pedro Paulo Garapa, o "Rapinha", e Marcelo Antônio, o "Fiofó", nas imediações do Edifício Riqueza, na Praça Tiradentes, quase na esquina do Teatro Carlos Gomes. 

Não há precedentes no modus operandi da gang apreendida, que focava seus assaltos em senhoras com bolsas, sentadas em lugares públicos em vários pontos da cidade. Um dos criminosos se aproximava da vítima, baixava a calça e simplesmente disparava um jato de diarréia com o próprio ânus. Atônita com a selvageria, a vítima geralmente saía correndo horrorizada, deixando a bolsa defecada para trás. Então, um outro bandido usando luvas plásticas furtava a bolsa fedida. Os meliantes utilizaram esse expediente em diversos bairros do Rio, sempre com êxito até a prisão. 

Em depoimento, um dos bandidos declarou que, para conseguir uma dor de barriga ideal na hora da ação criminosa, quem fosse abordar a bolsa consumia antes uma mistura de churrasquinho de rua, milk shake crocante de famosa lanchonete e conhaque popular. Questionados sobre o absurdo, disseram cinicamente que era uma maneira de praticar os crimes sem qualquer violência física. Celso Canário, o "Sujismundo", considerou normal o tipo de abordagem à base de diarréia, até para evitar maiores desgastes (SIC).

Informou a Rádio Sardinha FM. 

Wednesday, February 07, 2024

Notícias populares 1

RIO DE JANEIRO - Foi preso no fim desta tarde o ex-policial e traficante Márcio Edivanilton Seranha, vulgo Cara de Sagui, no interior de um famoso "Balança Mas Não Cai" no bairro de Copacabana, mais especificamente nos arredores da praça Serzedelo Corrêa, vulgarmente conhecida pelo mau apelido de "praça dos paraíbas". A prisão se deu de maneira um tanto inusitada: Sagui estava numa fila de atendimento sexual típica da localidade, recheada de quitinetes divididos em boxes do sexo, quando começou a discutir com outro cliente na fila, até ameaçá-lo de morte e descobrir que o oponente era um PM, que imediatamente lhe deu voz de prisão. Após certo tumulto,  policiais do bairro foram acionados e a prisão de Sagui acabou efetivada sem maiores delongas. Famoso por sua influência no Morro da Hemorróida, Sagui é uma espécie de todo poderoso mesmo alegando que já não tem mais envolvimento direto com o crime - atualmente se apresenta como proprietário de uma sex shop também situada em Copacabana.

(Informou a sucursal carioca do jornal Nheta)

Sunday, February 04, 2024

Ainda me lembro

Quem gosta de futebol sabe que as lembranças não são apenas as dos grandes títulos. Às vezes basta uma grande jogada, um drible estupendo ou mesmo uma vitória simples para guardar lugar na eternidade do coração. Foi o que me bateu dias atrás, ainda que não tenha sido exatamente o que se pode chamar de vitória simples. 


Fez trinta e cinco anos discretamente no começo de fevereiro. Vasco e Fluminense pela Copa União de 1988, disputada com atraso em 1989. Era mata mata: quem passasse, chegava às semifinais. O Vasco tinha um timaço, o melhor do Brasil, e o Flu lutava para remontar sua equipe outrora tricampeã carioca e campeã brasileira. Foram dois jogos. No primeiro, o Flu venceu por 1 a 0, gol contra do bom volante Zé do Carmo. Na volta do Maracanã, meu amigo Xuru sobe a Siqueira Campos, passa pela pizzaria Bella Blú e encontra quem? O próprio Zé, que comia uma pizza. Foi lá como vascaíno enfurecido e aporrinhou o pobre jogador, até que se entenderam e brindaram um chope. O Rio era assim. 


No segundo jogo, um Carnaval de emoções. Jogaço. Flu 3 a 2, depois de uma prorrogação alucinante. Uma das maiores partidas entre os dois times na história. Quem foi ao Maracanã ficou literalmente chapado. Vale a pena buscar o jogo no YouTube e revê-lo. Enfim, uma noite de gala no Maracanã, com o Flu indo para as semifinais do Brasileirão 1988. 


Mas aí está o grande lance do futebol: deixar a marca eterna de um grande jogo sem estar vinculada a um título. E mais ainda: a época. Como eu estava naquela época? Junto do jogo, todo o cenário vem à tona. Bem, o Brasil não era fácil nem o Rio de Janeiro vivia num mar de rodas, mas pessoalmente falando eu vivia um tremendo momento. Auge dos vinte anos, três a quatro corridas por semana, futebol na praia à tardinha. Começo da faculdade, grandes shows e filmes, garotas maravilhosas. Maracanã raiz, extremamente popular. Tardes na casa do Fred, com muito carteado e grandes LPs na vitrola. Copacabana ainda nos seus grandes lances de farta boemia e galera nas ruas. O dinheiro era quase nenhum e o sonhado emprego era impossível - sem vagas -, mas minha vida era muito boa. Simples demais, boa de montão. 


Pra fechar, ainda tinha um componente especial: eu vivia meus dois últimos anos como escoteiro regular, então tome grandes acampamentos fora do Rio em sua maioria. Outros não, como no esplêndido Forte Imbuhy em Niterói - ok, é outro município mas afetivamente é Rio (risos). 


Quantas coisas reunidas pela simples lembrança de um grande jogo de futebol, hein? Meu entorno, minha vida. Ser um jovem torcedor no final dos anos 1980 em Copacabana tinha um sabor todo especial. Ainda vou escrever um livro sobre isso. Será que dá? Acho que vale a pena! 


São dias de folia

Ê, folia. 

Bem-vinda. 


O mundo para, o Brasil dança, o Rio samba e a gente passa alguns dias felizes, sonhando com a felicidade eterna que sabemos ser ilusória. 


Muita gente viaja, muita gente se solta nas ruas e muita gente, não declarada, passa o carnaval curtindo dentro de casa. Foliões sem folia. Eu os reconheço e me identifico com eles, pois também sou assim. Durante muitos anos, quando era jovem, eu curtia viajar. Primeiro era a turma dos escoteiros, depois a turma da faculdade. Já faz tempo. Agora eu tenho meu Bloco do Eu Sozinho, onde desfilo tentando ler livros, ouvindo discos mas também atento a tudo que tem Carnaval na TV - quero saber tudo de todas as escolas e ao contrário do futebol, onde minha paixão é o Fluminense, na FTSapucaí eu sou volúvel - posso trocar de escola numa mesma noite. Já fui Ilha, São Carlos (agora Estácio), Vila Isabel, Mocidade, Mangueira, Viradouro e Tuiuti. E Império Serrano. Gosto da Portela, mas não torci muito. Pro Salgueiro também não, embora “Peguei um Ita no Norte” seja um clássico eterno. Já fui Caprichosos também, no tempo de Andreia dos Anjos - será que confundi tudo? 


Acontece que o tempo me fez alérgico a multidões, logo eu que vi mil shows e Maracanãs de antigamente lotados. Quanto mais vazio, melhor. Então continuo apaixonado pelo caleidoscópio de cores da Apoteose, e fico com os olhos grudados na tela. Só nós, mais nada além de bons sanduíches ou refeições completas, tudo bem. Às vezes compro uma cerveja, geralmente é refresco mesmo. 


Durante muito tempo em que viajei no Carnaval, eu voltava na quarta-feira de Cinzas, ia ao escritório na quinta e viajava de novo para curtir até domingo. Sei lá, o pós-feriado tinha um sabor especial, de prorrogação da felicidade, acho. Aquele plus. 


Nos últimos vinte anos, os blocos retomaram as ruas do Rio e viraram uma febre de multidões, depois de um longo hiato. Pouca gente se lembra como foi o renascimento da folia de rua carioca, à época sustentada por grandes pilares como a Banda de Ipanema, Simpatia é Quase Amor e congêneres. A verdade verdadeira: no verão de 2003 o carioca estava literalmente durango. A cidade, acostumada a migrar muita gente para a Região dos Lagos e Serrana, registrou um recorde de cariocas que não viajaram. Começou então com o negócio de levar um isopor com latinhas de cerveja pra rua e curtir os pequenos movimentos. Um samba, uma marcha, um pequeno bloco e outro e outro. Três anos depois, já havia tantos que a cidade recuperou um de seus paradigmas carnavalescos, e é assim até hoje. Mas o que provocou o miserê dos cariocas em 2003? O pessoal não lembra, mas vamos resumir em três letras: FHC. 


Durante outro tempo, forçaram a barra para ter futebol no Sábado de Carnaval. Durou alguns anos, depois parou, será que tem agora em 2024? Bom, jogo na TV já tem todo dia. Tudo bem, o pessoal adora e estou nessa. 


Friday, February 02, 2024

tomara

daqui a pouco bate cinco da manhã. é uma noite quase agradável, sem calor. quase porque, tirando isso, um sanduíche de lombinho e um refresco de laranja, pequeninos luxos diante de tudo que vivemos, a vida é uma berda. claro que há cousas boas também, mas racionalizando o processo, se você é um ser que ainda traz em si o tal instinto gregário, a vida é uma berda. eu, por exemplo, li outro dia num grupo de colegas sobre amizade e expus meu ponto de vista: trocar mensagens no whatsapp é prova de amizade? TNC. pode ser coleguismo no máximo, amizade é outra coisa, é jogar junto, é passar a bola e recebê-la. se você não se importa com o destino de alguém, que amizade é essa? todos ficaram em silêncio, que pode ser de aprovação ou rejeição à minha opinião, mas isso não tem importância nenhuma pois não vou mudar de opinião. já fui muito amigo de gente que não vale nada, de gente que me traiu, que fez cara de paisagem nas minhas horas mais difíceis ou inventou uma desculpa qualquer. tudo bem, eu não tenho ódio nem rancor, apenas me afasto e isso fica muito claro. cada um na sua. até nunca mais. bye. o mundo já tem ódio demais e gente falsa demais. meu silêncio acaba sendo o cartão de visitas. e todo mundo que é tratado com respeito e consideração mas passa à condição de indiferença, sente. e sente pra caraio. é justo. bom, agora o silêncio da madrugada é cortado por uma pessoa com o coração em chamas, gritando. alguém em desespero com a situação de rua. gritou e parou. não importa: o trauma fica. ao menos para quem realmente pensa no outro. então somos isso: indiferenças. será que vai me bater o sono às 04:50h? tomara. tomara.