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Monday, May 30, 2022

Eles não sabem nada de Copacabana

Domingo à noite, perto das nove, nove e pouca, deixo a casa de Katia na Barata Ribeiro e peço um Uber na portaria do prédio. Enquanto o carro não vem, espio a calçada onde tricolores e flamenguistas vêm e vão, voltando do Maracanã ou dos bares. É o futebol, nosso ópio admirável que faz apaixonar. 

A um minuto do embarque, o motorista cancela a corrida. Já na rua, com mais gente do que eu esperava, resolvi não pedir outro carro imediatamente e, mais do que isso, andar sobre os paralelepípedos da minha infância por alguns instantes. 

Metros adiante, o Edifício Richard, número 194, um respeitável condomínio que ganhou muitas manchetes no passado, quando era simplesmente o 200. Era um microcosmo do bairro, ou melhor, ainda é. Detestado pela burguesia barroca, admirado pelo underground, teatro do submundo, hoje casa de grandes intelectuais, escritores, professores e também de algum pecadinho, porque ninguém é perfeito. 

Desde o golpe de 2016, Copacabana ganhou uma estranha pecha, a de capital do nazifascismo tupiniquim, tudo porque os amantes da terra plana e do milicianismo político resolveram fazer suas passeatas na Avenida Atlântica, aos domingos. É certo que muitos simpatizantes da arminha ainda moram por ali, e não se pode descontar apartes históricos de um bairro cheio de elevadores de serviço por toda parte, mas na essência Copacabana nunca foi uma aldeia reacionária. Eles, os que insistem em depreciar a Princesinha do Mar, não sabem absolutamente nada de Copacabana, talvez um dos únicos lugares do mundo onde ricos e pobres ainda compartilham os mesmos espaços públicos. 

Tudo começa pela praia, que possui sua geografia política própria mas incorpora todas as tribos: gatinhas, marombeiros, craques da pelota, bonecas e muita gente que vem da cidade inteira, mas que ao chegar à terra copacabanense age como se fosse local - quantas musas do bairro não iam embora da praia via 434, 474, 415 e outras linhas de ônibus?

Se a população envelheceu e a boemia encolheu, paciência, mas não há como apagar a história de bares e boates memoráveis, dos inferninhos aos templos da bossa nova, chegando até aos botecos sobreviventes - os catedráticos de Copacabana sabem muito bem que o Pavão Azul, antes de se tornar uma potência, era um botequim humílimo mas sempre de iguarias inesquecíveis. Recém-chegado, o Parada de Copa já é um digno herdeiro da tradição do Cervantes. O Sniff's não resistiu depois da pandemia, mas acumulou histórias em meio século no Shopping dos Antiquários - deu até livro. 

Copacabana não é para amadores e calhordas, nem para ressentidos com o bairro mais famoso do Brasil, tão plural que abrigava golpistas e ditadores junto a revolucionários, democratas, estudantes, camelôs, artistas, desocupados e quem mais viesse. Palco plenamente possível da festa de "A rainha diaba", filme protagonizado pelo brilhante Milton Gonçalves, que acaba de nos deixar. 

Os detratores de Copacabana nunca viram o goleiro Renato voando em defesas para o time de praia do Lá Vai Bola, nem Tião Macalé reclamando da arbitragem numa outra partida de areia. Nunca viram o esplendor de Rogéria sendo saudada por populares à rua como verdadeira personalidade do bairro. Nunca souberam de Lina, a moradora de rua que lia o New York Times na calçada com excelente pronúncia. Nunca lancharam hambúrguer com mate na Sorveteria Bolonha, nem pizza no Sumol às duas da manhã, esquina de Barata com Figueiredo. 

Nunca viram os garotos jogando botão debaixo da escada rolante fajuta do shopping, nem Clóvis Bornay cumprimentando a todos gentilmente na porta do Coruja Bar. Não sabem sequer que o Parque Peter Pan tinha uma linda e maravilhosa baleia na entrada, por onde as crianças entravam e se encantavam. E nunca poderiam uma imaginar uma bicha maravilhosa discutindo um Fla x Flu de antigamente com um general aposentado no elevador - isso, até chegar à portaria, onde o funcionário do prédio, vascaíno, se mete no debate esportivo. 

Depois de um pequeno lapso de razão, lembro que preciso ir embora, que amanhã é um novo dia e a segunda-feira não perdoa. Aperto os botões e um carro me levará dentro de três minutos. Eu não moro mais em Copacabana, mas ela não sai de mim. 

@pauloandel

Saturday, May 14, 2022

Cenas do Centro do Rio 2022

Depois de comermos pastéis com laranjada na Chic's da rua dos Andradas - estamos sempre comendo -, resolvemos caminhar até o Largo da Carioca, eu, Vitor S Barros e Jocemar Barros . Não levou mais do que dez minutos. Nos despedimos, eles foram a caminho da Praça XV e eu pensei em fazer minha velha visita ao Santos Dumont para tomar um sundae de morango em meio ao silêncio da praça de alimentação do aeroporto - quem chega ao Rio quer se mandar para casa ou hotel. Então peguei meu VLT favorito e fui. 

Uns vinte metros depois da entrada e você fica inebriado com o som de jazz e bossa nova do conjunto que se apresenta no SDU às sextas, das seis da tarde às oito da noite. Logo você está perto do palco e já conheço quase todos os músicos de vista, com exceção de um que conheço desde sempre: Sérgio Barrozo, contrabaixista com quase 60 anos de carreira, já tocou com os gigantes da música brasileira. Sérgio é nosso Ron Carter, nosso Charles Mingus e deveria ter uma estátua sua em praça pública. Seis ou sete pessoas aplaudem o conjunto. Outras acabam celebrando a apresentação de passagem. 

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Subo uma pequena escada rolante e desisto do sundae. A loja de mate promete sanduíches  da pesada num cartaz promocional. Ao mesmo tempo, dali dá para ouvir o belo som do conjunto lá fora. E por falar em música, carrego quatro CDs comigo: um, raro, de Paulo Lepetit ao lado do saudoso Gigante Brazil, um de Herbie Hancock - The Joni Letters, um tributo a Joni Mitchell, afora outros dois que ainda vou me lembrar. No mais, sigo com meus confortáveis chinelos, meu bermudão azul e reparando no clima tenso que alguns passageiros exibem em seus semblantes de desembarque, loucos para se mandar porque querem ou aproveitar o que o Rio tem de bom, ou escapar da ruindade. 

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Dois sujeitos estão com seus notebooks em ação nas mesas da lanchonete. Aguardo pacientemente pelo atendimento. Quando a moça vem, penso que já são quase sete da noite e ela já deve estar morta de cansada pelo trabalho extenuante. 

Peço o lanche, vou para a mesa de fundo e, quase ao mesmo tempo, os dois clientes se mandam. Meus sais: acabei de lanchar com Jocemar, sou um esfomeado irresponsável. Não, não, longe disso: engordei por excessos mas me cabe o perdão de já ter passado fome algumas vezes na vida, inclusive quando supostos amigos faziam vista grossa para o acontecimento. Vida que segue. Já falei algumas vezes que, no passado e com saúde, fui atleta em treinamento para a São Silvestre - sonhava romper o ano correndo na madrugada urbana de São Paulo. 

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Há anos que ouço falar desse disco de Paulo Lepetit com Gigante Brazil. Finalmente está em minhas mãos. Sou fã de Paulo como músico e facebooker. A Isca de Polícia é um negócio sério demais. Saudade de vê-los em ação. A última vez foi no CCBB. Já Gigante é saudade. 

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O sanduíche é bom, tecnicamente bom, o pão é gostoso mas o recheio deixa a desejar. Sou cliente do Paladino e do Parada de Copa, acostumado a recheios generosos, de matar a fome. 

O mate estava uma porcaria. 

Pelo menos carreguei um pouco o celular. 

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Ao descer, passo novamente pelo palco dos shows de sexta, agora com música ambiente porque é intervalo. 

Numa mesa na lanchonete ou restaurante à esquerda do palco, Sérgio Barrozo traça um sanduíche e parece feliz da vida. Não nos esqueçamos: ele é nosso Mingus, nosso Ron Carter, e merece todas as reverências. 

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A sexta-feira à noite do Aeroporto Santos Dumont é fria e vazia. Sexta-feira, 13 de maio, dia de superstições. E reflexões. 

Uma breve espiada e logo se percebe o quanto precisamos evoluir em termos de inclusão negra por ali. 

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Deveria ter pego um Uber, mas simplesmente esqueci, então logo chego ao VLT e fico apreciando a beleza noturna da região, as árvores, os prédios da Beira-Mar. Troco mensagens com Marina, o Fabiano Soares - que é um tremendo escritor - diz que virá ao sebo na terça.

As curvas do percurso me lembram o Tivoli Park por algum motivo. O trecho do Aeroporto à Cinelândia é imperdível pela bela arquitetura ali reunida. 

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Bem ao lado do acesso do metrô na Santa Luzia tem uma turma comendo churrasquinhos e bebendo cerveja. Jovens mulheres bonitas e seus pares. Por um instante, parece até que a pandemia não nos abateu. 

O Rio é a cidade de cidades misturadas, versou o poeta Fausto Fawcett. Nada parece ser tão preciso para descrever a Cinelândia atual. Do Starbucks na esquina até o Amarelinho, o MC Donald's se salva aberto e cheio. Nas marquises e bancos, muita gente em situação de rua e, na amostra local, a população negra é de 100%. As reflexões sobre 13 de maio são inevitáveis e dolorosas. Somos uma sociedade muito atrasada e desigual. 

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No tempo que me resta, olho para cima e o relógio do Edifício Mesbla me oferece um tom de Gotham City, não apenas a cidade dark de Batman mas também a letra profunda de Macalé e Capinam. 

Perto de mim, pessoas descem delicada mas  apressadamente pelas escadas do metrô. Taxistas caçam passageiros. Os últimos clientes das Lojas Americanas deliciam-se com suas sacolas cheias de promoções. Garotos e jovens perdidos carregam suas caixas de Mentos para vender aos transeuntes, muitos deles sem um níquel sequer. Há um burburinho na entrada do Teatro Riachuelo e, bem em frente, na fila do ônibus 247. A miséria, a indiferença e o consumo dividem o mesmo espaço à rua, como se tudo parecesse normal. 

O leão e o tigre andando lado a lado na mesma calçada, assim disse Jack Kerouac em "Crônicas de Nova York" em alusão a Tom Wolfe. 

@p.r.andel

(continua algum dia)

Thursday, May 12, 2022

o final de um livro breve

 "...e chegava a ser incrível que o senhor J. J. Johnson continuasse tão calmo diante de seu cenário de penúria, pensando que tudo iria dar certo de repente, talvez misturando realidade e delírio, talvez tão chocado que sequer percebesse a gravidade do momento, ou talvez porque não tivesse a menor preocupação com o que pode significar sucesso ou fracasso, ambos menores do que a vida, a sucessão dos dias, o ir e vir de dias e noites que muitas vezes nenhum de nós percebe porque estamos ocupados demais, focados em nossa individualidade e pouco afeitos ao próximo, ao verdadeiro amor, à delicadeza e o entendimento necessário de que a passagem por esta terra não pode nem deve ser um processo egoísta, mesquinho, laureado pela escrotidão. 

Calmo, lúcido, atravessando os dias mesmo com uma bala de revólver apontada para a própria cabeça, o senhor J. J. Johnson é um nobre cidadão e pouco importam suas roupas poídas, sua falência, sua incapacidade de se adaptar ao mundo dos vencedores com ternos de cor neutra, sua aversão ao estilo de vila do mundo corporativo, geralmente desprezível e alheio aos mendigos que sofrem debaixo da fachada de uma grande corporação capitalista. A nobreza não vem das grandes posses e sim da gentileza, da amabilidade e da ética, esse verdadeiro elixir da vida que se esconde em pequenos abrigos e nos livros, nos versos e até nas cenas de um filme qualquer na TV à madrugada, quando a muito jovem Scarlett Johansson contracena com o veterano John Travolta em um ambiente de pobreza, solidão e poesia. 

Em certo momento, o que parece fragilidade em J. J. é, na verdade, um pouco de todos nós. Onde está o que é realmente sucesso ou fracasso? Quem sabe definir exatamente esses conceitos? São números ou vivências? 

Os grandes salões do high society estão cheios de fracassos, as longas noites estão cheias de lágrimas silenciosas e, sem qualquer exagero ou arroubo, são muitas as lápides luxuosas que hospedam o silêncio permanente da empáfia e da arrogância."

Sunday, May 01, 2022

trabalho

o trabalho. eu trabalho há muitos anos. fiz coisas fáceis e difíceis. vi muito desrespeito, assédio moral, humilhação, maldade. muito. algumas das piores pessoas que conheci na vida foi em ditos ambientes de trabalho, ou de projetos, tanto faz. 

em trabalhos voluntários e remunerados, testemunhei uma reação bizarra diversas vezes: num grupo onde alguém se destaca a ponto de melhorar a coletividade, integrantes passam a boicotá-lo justamente para que não ganhe mais espaço. o coletivo sabota em nome do particular. 

a imagem que carrego do trabalho é o moço lavando o chão da pastelaria ao término do expediente, a senhora carregando as bolsas de roupa no trem, o rapaz esmagado no ônibus tentando ouvir música no fone. o moço que traz a comida, o moço que cuida da portaria, a moça que registra a compra, a moça que vem ao balcão. vi tudo isso muitas vezes, em paralelo ao chamado mundo corporativo, onde é comum pessoas grosseiras fingirem educação ou extremamente ignorantes fingirem erudição. 

o mundo só poderia ter dignidade se todos tivessem um trabalho e dele pudessem sobreviver. todo mundo precisa de um trabalho, ter uma casa, uma cama, comida, fogão, rádio, tv. só que isso não existe. no exato momento em que escrevo aqui, cerca de 70 milhões de pessoas são humilhadas no brasil: não têm emprego ou têm ocupações tão precarizadas que arriscam a própria sobrevivência diariamente. 

há 40 anos eu sonhava em ter um trabalho para ajudar meus pais em casa. recebi nãos e humilhações. depois estudei, cresci, trabalhei, trabalhei, fiz coisas demais. escrevi milhares e milhares de páginas, fiz milhares e milhares de contas, viajei milhares de quilômetros de ônibus e avião, participei de centenas de reuniões. mesmo depois de tudo isso, ainda me falta encontrar a dignidade.