ACONTECEU que Luiz e eu estivemos
juntos novamente numa mobilização das ruas, depois de tantos anos. Nossos grandes
heróis estão absolutamente mortos e sinteticamente vivos nas ideias que
deixaram pelo caminho. Ontem à noite em frente à estação Uruguaiana, coração do
mercado popular de tantos mistérios, trocamos um abraço em testemunho a uma
multidão de jovens que tomou o local.
Houve quem dissesse que a PUC inteira tinha vindo, tamanha a quantidade
de garotas bonitas. Alguns gatunos também. Lembramo-nos das aulas de economia:
as ofertas ali estavam, era hora de equilibrar o mercado dos furtos com
pequenos objetos contemporâneos: aparelhos de música, telefones estilo
computador e algo que os valha. Rimos um pouco, entendemos a importância do
momento, caminhamos pela Buenos Aires. O puteiro continuou a todo vapor: uma
profissional mulata deu boa-noite aos vigilantes com carinho e afeto, subiu o
escadão e partiu para a vida. Funk music
no salão. Ah, Gomão!
Esquina de Rio Branco com
Presidente Vargas, cerebelo do Brasil, Benedita da Silva passa com uma jovem
que parecia sua parente. Não foi reconhecida, a multidão estava mais à frente,
percebeu quando a fitamos e saiu sorrateiramente. A bela contrabaixista Eliza Schinner
carregava um cartaz, cercada de amigos – ela sabe muito bem o que é o Brasil da
estupidez e do preconceito. Dois jovens rapazes com seus blazers e cervejas
pareciam estar em ritmo de azaração. Faz sentido. Uma, duas horas depois, eu e
Luiz caminhamos com calma até a Cinelândia, como se fosse uma prévia de tudo o
que estaria por vir. Tomamos o metrô, ouvimos alguma bomba explodir na estação
do Estácio, o trem já não pararia na Praça Onze e nem desconfiei que os choques
de ordem de Sandra Cavalcanti ainda fossem pancadas na multidão – sou um
ingênuo. Agora, o que ninguém podia imaginar era que eu carregava comigo os
originais de um livro subversivo sobre o atual futebol brasileiro – em 1968,
isso daria cadeia, choque no ânus, nos genitais e talvez expulsão do Brasil –
isso era chamado de revolução – o nome certo era tortura, involução,
primitivismo.
PRAÇA Afonso Pena, muitos jovens,
vários de roupas pretas, todos se preparando para ir ao centro, alguns com
bebidas, outros com cartazes, outros namorando. Chegamos velozmente à casa de
João e fomos bem-recebidos como sempre. Alguns petiscos, um brigadeirão, nossa
leitura de textos que foi tão emocionante – eles quase não perceberam que eu
chorei várias vezes com o que li deles e meu, inclusive em voz alta. Falei mal
de escritores fajutos e pessoas de mau-caráter – tenho esse defeito: não
consigo deixar de sacanear pessoas que sei serem ruins para com o próximo. Bebemos
hectolitros de refrigerante, brincamos com os sensacionais bichos de estimação
da casa, rimos, paramos a leitura, entramos em outros assuntos, retornamos,
vimos o Rio com o coração em chamas no peito da Tijuca e quando se viu eram
três da manhã, hora de ir embora. Luiz tomou seu táxi. Eu resolvi pegar o meu
na rua Haddock Lobo e, minutos depois acusei o golpe que custaria uma noite de
sono.
Então dei por mim, não tinha dinheiro
em espécie para pagar uma corrida de táxi, apenas cartões, algo quase inútil em
se tratando de Rio de Janeiro, ainda mais depois de uma noite de luta. O primeiro
motorista disse não, o segundo, o terceiro, o quarto e a solução precisou ser a
espera de um ônibus. Para piorar, a bateria do celular descarregou. Nada que
fosse tão grave nos anos 80, por exemplo. Um senhor de seus cinquenta anos,
negro, respeitável, camisa antiga do Botafogo, encostado no único carro
estacionado em frente ao Club Municipal. O cartaz anunciava o novo show de
Elymar Santos, então pensei: Bola gosta disso.
- Daqui a pouco passam o 415 ou o
433.
- Para mim só o 33 serve.
- Olha o 15, meu amigo. Bom dia e
bom descanso.
O senhor tomou o carro coletivo. Metros
à frente, um catador de rua amassava diversas latinhas. Nenhum carro deslizando
no asfalto. Quase nenhum ruído. Olhei para o céu do Estácio e senti uma solidão
enorme, muito maior do que a cotidiana. Apenas a lua mostrando seu brilho e
quase nada. Eu ainda não sabia dos crimes que a polícia tinha cometido novamente
contra os civis. A solidão do Estácio, com seu largo logo à frente. A canção
eterna de Luiz Melodia. Eu e Ana Klein, linda, jovem, pobre e com todo o futuro
pela frente, tudo perdido há vinte e cinco anos. Um exército e seus generais de
merda que mataram, torturaram, estupraram e ainda ousaram dizer que tudo era em
nome de Deus e da família. Meus pais mortos, Xuru morto, Fred morto e uma
angústia que não sei explicar, tudo misturado com o sentimento de que é preciso
mudar alguma coisa neste país. O negrume da noite em tons mais delicados, pensei
na minha namorada, na minha amante, na mulher que eu amo tanto e queria que as
três fossem uma ao mesmo tempo. A solidão que sempre foi minha, logo minha, eu
que sempre tive tanta gente ao meu redor e bem ao lado. Minha mãe falava disso
quando eu era pequeno e fazia tudo para ficar sozinho. Hoje estou e não quero.
O mundo está ao meu lado e não quero. Quem pode me salvar? Num súbito, o 433 vazio
invadiu minha vista. A trocadora, uma mulata bonita e jovem, quase cochilando,
sorriu com meu bom dia. Os trabalhadores, agredidos pela polícia ou não, já
dormiram. Eu sou o espírito que anda.
Quatro da manhã, um casal sai
feliz do motel Snob. Senti pequena inveja. Passei pela lanchonete fechada,
encontrei a Cruz Vermelha e sofri ao ver o mendigo que há anos habita ali com
sua barba e cabelos enormes, um saco de objetos que carrega com um sentimento
de casa, os olhos esbugalhados na madrugada sem uma cama, sem abrigo, sem nada.
Se eu não fosse um merda teria como reverter aquela situação. Calei e sofri. Minutos
depois, dois garotos fumavam maconha nos arredores do prédio onde moro –
nenhuma rebeldia nisso, apenas uma bobagem.
Já dentro de casa, porta
trancada, espetei o celular no carregador, preparei o banho, pensei na vizinha
que perdi, coloquei Ed Motta para tocar baixo. A água gelada espantou cem
quilos de solidão por meia hora. Deitei na cama de tantos anos, olhei para o
teto branco, pensei em quem penso todo dia. Houve uma revolução lá fora, mas eu
permaneci o mesmo dentro de mim: querendo impossíveis, lutando contra moinhos
de vento, pedindo milhões a quem mal pensa em me dar uma esmola. Quando
desmaiei até chegar aqui, a música no ar vivia dos seguintes versos: “Hoje
quando eu bem te vi/ Fiquei mudo, quase quase morri/ E agora estou feito zumbi/
Rosa deusa do meu jardim/ Esmeralda, eterna gipsy
queen/ Iemanjá num manto de cetim/ Eu nasci pra ser/ Louco por você/ O
universo conspirou/ A favor do amor/ E de nós dois”. Coisas de Rita Lee, que
sabe do riscado. Despertei do desmaio, sou um espírito que ainda, agora continuo
aqui. Eis minha triste sina.
@pauloandel
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