Friday, June 21, 2013

Noites de luta, céus do Estácio

ACONTECEU que Luiz e eu estivemos juntos novamente numa mobilização das ruas, depois de tantos anos. Nossos grandes heróis estão absolutamente mortos e sinteticamente vivos nas ideias que deixaram pelo caminho. Ontem à noite em frente à estação Uruguaiana, coração do mercado popular de tantos mistérios, trocamos um abraço em testemunho a uma multidão de jovens que tomou o local.  Houve quem dissesse que a PUC inteira tinha vindo, tamanha a quantidade de garotas bonitas. Alguns gatunos também. Lembramo-nos das aulas de economia: as ofertas ali estavam, era hora de equilibrar o mercado dos furtos com pequenos objetos contemporâneos: aparelhos de música, telefones estilo computador e algo que os valha. Rimos um pouco, entendemos a importância do momento, caminhamos pela Buenos Aires. O puteiro continuou a todo vapor: uma profissional mulata deu boa-noite aos vigilantes com carinho e afeto, subiu o escadão e partiu para a vida. Funk music no salão. Ah, Gomão!

Esquina de Rio Branco com Presidente Vargas, cerebelo do Brasil, Benedita da Silva passa com uma jovem que parecia sua parente. Não foi reconhecida, a multidão estava mais à frente, percebeu quando a fitamos e saiu sorrateiramente. A bela contrabaixista Eliza Schinner carregava um cartaz, cercada de amigos – ela sabe muito bem o que é o Brasil da estupidez e do preconceito. Dois jovens rapazes com seus blazers e cervejas pareciam estar em ritmo de azaração. Faz sentido. Uma, duas horas depois, eu e Luiz caminhamos com calma até a Cinelândia, como se fosse uma prévia de tudo o que estaria por vir. Tomamos o metrô, ouvimos alguma bomba explodir na estação do Estácio, o trem já não pararia na Praça Onze e nem desconfiei que os choques de ordem de Sandra Cavalcanti ainda fossem pancadas na multidão – sou um ingênuo. Agora, o que ninguém podia imaginar era que eu carregava comigo os originais de um livro subversivo sobre o atual futebol brasileiro – em 1968, isso daria cadeia, choque no ânus, nos genitais e talvez expulsão do Brasil – isso era chamado de revolução – o nome certo era tortura, involução, primitivismo.

PRAÇA Afonso Pena, muitos jovens, vários de roupas pretas, todos se preparando para ir ao centro, alguns com bebidas, outros com cartazes, outros namorando. Chegamos velozmente à casa de João e fomos bem-recebidos como sempre. Alguns petiscos, um brigadeirão, nossa leitura de textos que foi tão emocionante – eles quase não perceberam que eu chorei várias vezes com o que li deles e meu, inclusive em voz alta. Falei mal de escritores fajutos e pessoas de mau-caráter – tenho esse defeito: não consigo deixar de sacanear pessoas que sei serem ruins para com o próximo. Bebemos hectolitros de refrigerante, brincamos com os sensacionais bichos de estimação da casa, rimos, paramos a leitura, entramos em outros assuntos, retornamos, vimos o Rio com o coração em chamas no peito da Tijuca e quando se viu eram três da manhã, hora de ir embora. Luiz tomou seu táxi. Eu resolvi pegar o meu na rua Haddock Lobo e, minutos depois acusei o golpe que custaria uma noite de sono.

Então dei por mim, não tinha dinheiro em espécie para pagar uma corrida de táxi, apenas cartões, algo quase inútil em se tratando de Rio de Janeiro, ainda mais depois de uma noite de luta. O primeiro motorista disse não, o segundo, o terceiro, o quarto e a solução precisou ser a espera de um ônibus. Para piorar, a bateria do celular descarregou. Nada que fosse tão grave nos anos 80, por exemplo. Um senhor de seus cinquenta anos, negro, respeitável, camisa antiga do Botafogo, encostado no único carro estacionado em frente ao Club Municipal. O cartaz anunciava o novo show de Elymar Santos, então pensei: Bola gosta disso.

- Daqui a pouco passam o 415 ou o 433.

- Para mim só o 33 serve.

- Olha o 15, meu amigo. Bom dia e bom descanso.

O senhor tomou o carro coletivo. Metros à frente, um catador de rua amassava diversas latinhas. Nenhum carro deslizando no asfalto. Quase nenhum ruído. Olhei para o céu do Estácio e senti uma solidão enorme, muito maior do que a cotidiana. Apenas a lua mostrando seu brilho e quase nada. Eu ainda não sabia dos crimes que a polícia tinha cometido novamente contra os civis. A solidão do Estácio, com seu largo logo à frente. A canção eterna de Luiz Melodia. Eu e Ana Klein, linda, jovem, pobre e com todo o futuro pela frente, tudo perdido há vinte e cinco anos. Um exército e seus generais de merda que mataram, torturaram, estupraram e ainda ousaram dizer que tudo era em nome de Deus e da família. Meus pais mortos, Xuru morto, Fred morto e uma angústia que não sei explicar, tudo misturado com o sentimento de que é preciso mudar alguma coisa neste país. O negrume da noite em tons mais delicados, pensei na minha namorada, na minha amante, na mulher que eu amo tanto e queria que as três fossem uma ao mesmo tempo. A solidão que sempre foi minha, logo minha, eu que sempre tive tanta gente ao meu redor e bem ao lado. Minha mãe falava disso quando eu era pequeno e fazia tudo para ficar sozinho. Hoje estou e não quero. O mundo está ao meu lado e não quero. Quem pode me salvar? Num súbito, o 433 vazio invadiu minha vista. A trocadora, uma mulata bonita e jovem, quase cochilando, sorriu com meu bom dia. Os trabalhadores, agredidos pela polícia ou não, já dormiram. Eu sou o espírito que anda.

Quatro da manhã, um casal sai feliz do motel Snob. Senti pequena inveja. Passei pela lanchonete fechada, encontrei a Cruz Vermelha e sofri ao ver o mendigo que há anos habita ali com sua barba e cabelos enormes, um saco de objetos que carrega com um sentimento de casa, os olhos esbugalhados na madrugada sem uma cama, sem abrigo, sem nada. Se eu não fosse um merda teria como reverter aquela situação. Calei e sofri. Minutos depois, dois garotos fumavam maconha nos arredores do prédio onde moro – nenhuma rebeldia nisso, apenas uma bobagem.

Já dentro de casa, porta trancada, espetei o celular no carregador, preparei o banho, pensei na vizinha que perdi, coloquei Ed Motta para tocar baixo. A água gelada espantou cem quilos de solidão por meia hora. Deitei na cama de tantos anos, olhei para o teto branco, pensei em quem penso todo dia. Houve uma revolução lá fora, mas eu permaneci o mesmo dentro de mim: querendo impossíveis, lutando contra moinhos de vento, pedindo milhões a quem mal pensa em me dar uma esmola. Quando desmaiei até chegar aqui, a música no ar vivia dos seguintes versos: “Hoje quando eu bem te vi/ Fiquei mudo, quase quase morri/ E agora estou feito zumbi/ Rosa deusa do meu jardim/ Esmeralda, eterna gipsy queen/ Iemanjá num manto de cetim/ Eu nasci pra ser/ Louco por você/ O universo conspirou/ A favor do amor/ E de nós dois”. Coisas de Rita Lee, que sabe do riscado. Despertei do desmaio, sou um espírito que ainda, agora continuo aqui. Eis minha triste sina.


@pauloandel

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