Translate

Tuesday, August 29, 2023

Fragmentos sobre Copacabana

[Não, provavelmente eu não escrevo sobre Copacabana como a maioria a vê. Não. Na verdade eu mergulho Copacabana em Gotham City, chacoalho e tempero com a minha Copacabana que já não existe mais: a dos apartamentos. Basicamente dois: o do Fred e do Luizinho. Mais recentemente o da Katia. E a Copacabana dos apartamentos não é solar feito a praia, pelo contrário: pode ser dark e elegante, soturna mas charmosa. 

[A minha Copacabana também era triste e violenta, mas plural também. Tive uma vida de dias difíceis, mas nada comparado com 80 ou 90% das pessoas. Minha tristeza tinha a ver com a pobreza e a doença do meu pai, mas não foram grandes dramas embora incômodos. Isso não me impediu de lanchar bem, passear, praticar esportes, sair à noite (não era um esporte predileto), ver bons filmes, ter garotas bonitas por perto. Nunca tive ambições financeiras, então o essencial já me bastava. 

[Você mistura Copacabana com Gotham City quando tira o céu azul celeste e põe o gris. Mais sombra, mais nuvens, menos gente na rua, menos carros buzinando. A noite cai mais fria, as belas e deliciosas garotas das boates estão com os sorrisos cheios de cocaína para aguentar o tranco - as travestis também, na outra ponta do bairro. 

[Uma das cenas mais humilhantes que vi em Copacabana foi há quarenta anos. Eu era escoteiro e passávamos os sábados na sede do grupo, cedida pela Paróquia de Santa Cruz. As reuniões acabavam às cinco e meia da tarde. Depois disso, às vezes havia alguma quermesse por perto, alguma cabeleireira ou manicure prestava serviços a preços populares. Havia uma moça jovem negra que tinha uma limitação física nas pernas. Sem uma cadeira de rodas, ela andava pela região de quatro, com joelheiras servindo de sapatos e se apoiando com as mãos. Era uma cena terrível e ainda me pergunto como havia tanta gente na igreja e ninguém lhe conseguiu uma cadeira. Eu me sentia muito triste mas não tinha como ajudar. Passado tanto tempo, eu agora entendo como quase todos podem ver o sofrimento alheio com total indiferença: geralmente eles se escoram no nome de Deus. Involuntariamente ele se torna o escudo dos hipócritas. As senhoras ricas da igreja jamais olhavam para baixo: podiam correr o risco de enxergar a menina se arrastando pelo chão. Era a crueldade em carne viva. 

[Na casa de Fred ouvíamos discos, jogávamos cartas, conversávamos e deixávamos o tempo escorrer. Foram duas incríveis. As garotas eram lindas, havia um som da pesada e de doçura da adolescência e sua prorrogação. Tínhamos fé no futuro. Havia muito a ser feito. 

@pauloandel

No comments: