Translate

Friday, August 04, 2023

Do Aterro ao Caravelle

I


Pedi o carro e, minutos depois, estava no Aterro. Às vezes a gente se esquece de como aquele caminho é bonito. Você descer direto até o Túnel do Pasmado e depois o novo, seguir até a praia e espiar os mistérios do Atlântico Sul. 


Burle Marx queria o Aterro inteiro sem luz elétrica. Achava que o parque ficava mais romântico. Não dava, ainda mais hoje, mas as luzes em nada atrapalham a beleza do parque, colada à geografia descomunal do Pão de Açúcar. 


Como é bonito. 


É o Rio de Janeiro que todos os cariocas merecem. 


Dura uns sete minutos de carro até o túnel, mas que valem um mês. 


Já estou com saudades.


II


Se o Aterro é bonito, Copacabana instiga. Eu era criança e, quando passava do terreno onde seria o Rio Sul, brincava de pensar que o túnel do tempo me levaria para outra época, até desembocar na Princesa Isabel. Hoje em dia, velho de doer, ainda tenho a mesma sensação. Talvez porque no fundo, bem no fundo, em certas coisas a gente nunca deixa de ser criança. 


Eu deveria estar desesperado, lutando contra uma ânsia justificada pelo suicídio, mas basta olhar para a esquerda do carro e tudo passa por alguns instantes, de forma alucinógena. É o mar, é o Atlântico Sul espumando na boca de Copacabana. Entorpecido pela vista, aproveito os pouquíssimos minutos para namorar minha terra natal. As areias desertas são mistério, as traves já testemunharam craques e craques, assim como as redes de vôlei e futevôlei. Senhor! Onde foram parar minhas musas maravilhosas, as crushs de hoje em dia, as garotas lindas que nos faziam suspirar? 


Força e Saúde, Racing, Juventus, Bairro. Tudo é vivo demais depois de quarenta longos anos. 


O motorista é gente boa. Faço logo o pix da corrida para não atrasá-lo. Ok, eu sei que há muita tristeza e miséria nas ruas de Copacabana, talvez como nunca antes, mas hoje eu vou dar uma única chance à minha pequena alegria.


Então vejo direitinho os falecidos caminhando na calçada ou atravessando a Atlântica, ou ainda jogando altinho. Muitas gente boa se foi. Eu fiquei para chorar, mas é um consolo rever a praia onde nasci e vivi. 


III


Domingos Ferreira é a rua do Edifício Master, consagrado no documentário de Eduardo Coutinho. E também dos galetos, do Sesc, do falecido primeiro Bob's, do Istambul e, claro, do Caravelle (é a pizzaria mas nos acostumamos com o artigo definido masculino). 


Meus amigos estão lá. Talvez sejam os últimos, os únicos, não sei dizer. Só sei que vamos rir a valer com besteiras e incorreções políticas nas próximas três horas. Já estão Cler e Raul, Gomez vai atrasar como sempre, Luiz dará uma passada por conta de intempéries.


São coisas simples. Pizza napolitana incomparável, Malzbier, chope, depois uma lasanha dividida por quatro. Gomez chega atrasadíssimo (como nos últimos 40 anos), Luiz aparece, a gente fala, fala, fala e ri. Só besteiradas, que não repetimos com mais ninguém. O Xuru não veio porque foi embora há muito tempo, mas a gente se recusa a vê-lo como morto - é como se ele pudesse descer a qualquer maneira do prédio ao lado e viesse dar uma risadinha. Doce ilusão, doce. 


Rio tanto que esqueço dos pensamentos suicidas. A gente devia se ver mais vezes, porque tudo passa rápido e daqui a algum tempo - que espero estar longe - vai faltar mais alguém na mesa, porque assim é a vida. Temos liga de longa data, vem dos anos 1980. Rir é o melhor remédio, o melhor entorpecente. Fracassei em quase tudo, mas numa eu acertei em cheio: ajudei a juntar uns caras que parecem andar juntos para sempre, se sempre houver.

No comments: