Meu bairro nunca termina. Hoje mesmo, em meio à pandemia e sua mistura kistch de realismo fantástico com pragmatismo, onde a miséria e a riqueza dividem a mesma calçada, fico sabendo de um ladrão preso por furtar a mochila de um tenente do Exército na altura da Rodolfo Dantas. Hum. Bom, até aí seria apenas mais uma das ocorrências policiais de Copacabana, que carrega livros de histórias e heróis ambíguos como Mariel Mariscott e Carbonelli. Ou delegadas e inspetoras gatas de arrepiar. A diferença está no fato de que o meliante não tinha mãos - isso, exatamente isso, não tinha as duas mãos, logo já se pode pensar que um furto desta natureza só poderia acontecer onde aconteceu. É a cara do bairro muitas vezes, onde o caos e a desgraça podem terminar em risadas.
Lembro de outra história de muitos anos: quando existia o Banco Nacional na esquina da Avenida Copacabana com a Princesa Isabel, hoje um Itaú - as grandes corporações se fagocitam! - nunca perdem! - os bandidos chegaram armados e com muita atitude. Limparam geral os caixas e deram no pé. Um carro os esperava na saída e parecia que o crime compensaria muito. Encheram o bagageiro de malotes e se mandaram em alta velocidade. Mas um segundo levou os criminosos bem sucedidos à bancarrota: em vez de virar à esquerda da UFRJ e voar baixo pelo Aterro do Flamengo, o motorista inventou de entrar à direita na Avenida Pasteur e avançou voado até a Praia Vermelha. Resultado: os sentinelas militares da região deram o papo na polícia e, quando os bandidos trapalhões perceberam que a única saída de fuga seria o Atlântico Sul, tiveram que se render. No dia seguinte, os jornais destacaram que a quadrilha foi muito pilhada na cadeia pelos outros presos, chamando-os de "burros pra caralho" (nenhum trocadilho com o governo vigente).
Quero voltar logo a Copacabana assim que os riscos diminuírem. Rever a praia, os amigos, tomar um guaraná gelado com Augusto Arromba e lembrarmos de grandes histórias infanto-juvenis com outros camaradas - onde estão? - e pensarmos na nossa vila querida que o progresso extinguiu para o metrô da Siqueira Campos. Tinha de tudo: boas casas, escola, futebol de asfalto com golzinho, garotas bonitas, a vida escorrendo a granel nas delícias da juventude.
Ou passear pelo Centro Comercial de Copacabana com suas lojas dark side e um clima incomparável que só conhece quem já viu de muito perto - o tempo não passou lá. Valeria a pena ir com meu camarada Floriano Romano, professor e artista consagrado, para que lá ele pensasse em novas experiências sonoras avant-garde. Depois, naturalmente um chope. No prédio do CCC por muito tempo havia um sem par de maravilhosas garotas de programa, dezenas, com atendimento padrão: carinhoso e veloz. Todos os clientes jovens corriam o risco de gozação se encontrassem no elevador um dos condôminos famosos: o jornalista Ibrahim Sued.
Um lanche na Sorveteria Bolonha, esquina de Batata Ribeiro com Constante Ramos, cinquenta anos de bons lanches e um mate delicioso. Hambúrguer de primeira, o velho Xuru adorava ir lá. O Epocler mora perto.
Dizem que Copacabana está em decadência há décadas, e como tudo sobre o bairro tem pelo menos duas versões, pode se dizer que é verdade e mentira ao mesmo tempo. Sim, muitos herdeiros residentes no bairro não têm grana, a população envelheceu e sai menos de casa. E o bairro acumula uma imensa população em situação de rua. Mas o charme e a história são irresistíveis. Em que outro bairro do mundo uma travesti e um coronel reformado discutem futebol no elevador até que entra uma velhinha, escuta os dois e brada "Vocês são dos meus!", até que o trio chegue à rua e descubra que todos vão para o mesmo lugar: a feira. O jornalista Rodrigo Alves entende do riscado.
Ivan Lessa, o cronista imortal, sacaneava Copacabana desde os tempos em que morou no prédio do antigo restaurante Transa. Mas ele jogou muita bola e botão nas esquinas, frequentou a praia incomparável - que já tinha a língua preta na areia em frente à Constante Ramos - e a experiência de morador do bairro temperou sua escrita impecável. A mesma Copacabana de tantos astros e estrelas internacionais, das noites loucas e baratas, dos puteiros provocantes, do ir e vir entre mil ônibus e um comércio de metrópole.
Muita coisa mudou. Outras têm a vocação da eternidade: o Copacabana Palace e o Shopping dos Antiquários estão lá, o Meridien trocou de nome mas sempre será Meridien. O Pavão Azul, que era um boteco humílimo, virou uma potência gastronômica carioca na Hilário de Gouveia. Ali perto, o Restaurante A Polonesa mantém seu charme decenal.
A Barbarella acabou de desistir, agora ocupa o imaginário erótico de Copacabana junto com La Cicciolina, Help, Erotika, Balcony e outras arenas do amor. A Miami Peep Show, que tragédia!
O cineasta - e poeta - Luiz Carlos Lacerda pensando em casa sobre a poesia beat das esquinas cruas da madrugada do Rio, enquanto escreve um novo roteiro e mantém a paciência com os fãs que lhe pedem um livro de memórias, vital para se entender a cidade dos anos 1960 em diante. Num súbito, recorda madrugadas incríveis no down by law de Copacabana, conversas imperdíveis no Beco da Fome com sua amiga Leila Diniz - mito, realidade e beleza numa mulher que desafiou definições e lhe proporcionou um grande filme - até pensar também em poemas, frases e muitos achados que lhe trazem à tona os anos de sua juventude no bairro. Então interrompe a redação do roteiro, espia à mesa um livro de poemas de Maiakóvski traduzido por Boris Schnaiderman, encontra versos que falam de amor e liberdade, faz releituras por alguns instantes e num súbito, fecha o livro e volta a digitar o roteiro porque o cinema é como a vida - ação, câmera e hoje, porque não espera.
Do outro lado da Baía de Guanabara, o poeta Jocemar Barros prepara haicais sobre Copacabana. Em Teresópolis, o poeta Felipe Fleury esculpe versos rebuscados e românticos, rasgantes, que remetem ao Leme, dorso de Copacabana. A mil e duzentos quilômetros de distância, o multi artista, herói do metal e intelectual Carlos Lopes é um digno representante da essência underground de Copacabana. Em Bonsucesso, o fotógrafo Silvio Almeida planeja um ensaio Gotham City bem nas barbas de Copacabana. E não há noite em que o lutador Antonio Carlos Gonzalez não atravesse o bairro com seu carro possante, encarando a paisagem da Babilônia carioca.
São muitos nomes com seus olhares e miras em direção ao bairro que nunca termina, que nunca é derrotado mesmo quando os três dados caem com a face um.
Não existe decadência num lugar que instiga artistas e arte de todos os lados.
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