NOITES NO CAMPO - 1
DAS DORES
A gente conversou poucas vezes, devido à natural separação entre os escoteiros e os seniores, ao menos naquela época. Mas ele era um bom sujeito, divertido, na dele. Quando sorria, lembrava o Brasil verdadeiro: o menino negro, morador de favela, lutando contra dificuldades mas com uma sinceridade imensa em sua boca cheia de dentes.
Tinha o apelido de Das Dores, referência a um personagem do programa de humor de Chico Anysio. Lá vem Das Dores, lá vai Das Dores. Ele ria e seguimos em frente. Se não estou enganado, ele tinha uma irmã bonitona que chegou a ser escoteira, mas posso estar me confundindo porque o tempo passou.
Estávamos acampados no Forte Imbuhy, uma das maravilhas do estado, cravado em Niterói. Pode ter sido a Semana Santa de 1984, um ano em que, para mim, parecia que tudo ia dar certo: beijos numa garota linda, todas as notas acima de 8, o Fluminense atropelando todo mundo. E uma temporada com uns dez acampamentos. Imbuhy é o máximo: silêncio, uma linda praia particular e os mistérios do Atlântico Sul. Lá longe eu via Copacabana e pensava: se tivesse uma lancha, dava para chegar muito mais rápido em casa.
Talvez na quinta, quase certamente. Os escoteiros iam fazer feijoada e, consequentemente, precisavam de panelas grandes para o arroz. Eu estava de bob na beira d'água com o Fred, curtindo a folga, quando o Das Dores passa pela gente, começa a acontecer um zum-zum-zum, um fuzuê e, a seguir, o caos.
Areia é um bom componente para tirar gordura de objetos. A gente já sabia, mas a garotada descobriu lá. Virou moda arear as panelas com areia e depois lavá-las lá na bica perto dos banheiros, a uns 500 metros de distância.
O problema é que o Das Dores teve uma ideia falha de economia de escala: em vez de arear a panela com calma, aos poucos, ele a encheu de areia, limpou e... a jogou na água, achando que a natureza faria o resto do serviço. O problema é que, com o peso da areia, a panela imediatamente afundou e, trinta segundos depois, foi tragada pelas águas do Atlântico. Eu mesmo, que era bom nadador, tentei resgatá-la sem sucesso.
Num acampamento, perder uma panela grande é um desastre. Resultado: a feijoada saiu, mas os seniores só almoçaram no fim da tarde, pois tiveram que emprestar as suas panelas para que os juniores fizessem o almoço primeiro. Cheios de fome, queríamos matar o Das Dores, mas só por dez segundos: ele era gente boa.
Um raio cai duas vezes no mesmo lugar? Cai. No dia seguinte, sexta, era dia de peixe com arroz e salada. É claro que ninguém esperava que o Das Dores não tivesse entendido a zebra da véspera, mas deveríamos. Impávido, ele foi para a praia lavar a panela, repetiu a mesma besteira e é claro que o recipiente foi morar em Atlântida, o reino perdido do mar. Ao mesmo tempo que os escoteiros ficaram enfurecidos, Das Dores tomou uma suspensão de um dia mas ninguém queria o mal dele, não era a nossa.
No sábado, o pessoal foi liberado para ir para a praia. Só o Das Dores estava punido, coitado. Eu e Fredão estávamos lavando alguns pratos na bica perto dos banheiros, bem cuidados pelo cabo "Queijo Minas" (depois eu conto essa história), que por sinal era um sujeito engraçadíssimo. Dia ensolarado.
Lá vem o Das Dores, chega perto, abre o sorriso largo e diz "Pode deixar que não vou perder mais panela não". Rimos, claro. Aí ele pediu um pouco de detergente, passei pra ele. Em cinco segundos que nos distraímos, ao olharmos para o lado Das Dores tinha feito xampu com o ODD azul, e a cabeça celeste espumante.
"Tem problema, pessoal?"
Foi o tempo de Fred se abaixar, encaixar a mangueira na bica e acertar um jatão d'água na cabeça do Das Dores. Ele ria, pedia desculpa. A gente ria e não se tocava que ele não entendia certas coisas porque não era orientado. Éramos garotos.
Pouco tempo depois, infelizmente ele se afastou. Deu um tempo, ia voltar, esperávamos que ele viesse para os seniores, não veio. Dizem que se meteu com o tráfico e dançou. Fomos derrotados. Ficou a lembrança daquele sorriso imenso debaixo da espuma azul do ODD.
@pauloandel
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